(...) recordando também um ensaio de Paul Valéry, no qual o escritor reproduz e comenta, com evidente anuência, a resposta dada por Mallarmé a Degas quando o pintor lhe confidenciou as dificuldades que experimentava ao enveredar pela expressão poética. De acordo com Valéry, Degas, que também se sentia atraído pela poesia e gostava de escrever versos, teria dado conta ao amigo das limitações com que se debatia nesse outro domínio da criação, classificando a poesia de "ofício infernal". E acrescentara: "Eu não consigo fazer o que quero e, no entanto, estou cheio de ideias". Ao que Mallarmé terá respondido: "Os versos, meu caro Degas, de modo algum se fazem com ideias. Fazem-se com palavras".
Pelo contexto em que é recordado este pequeno diálogo que o relato de Valéry iria imortalizar, é fácil compreender que ele serve como argumento para legitimar a concepção valeriana de linguagem poética e muito particularmente para reforçar a convicção, cara ao poeticista, de que esta constrói uma relação de indissolubilidade entre som e sentido. No entanto, Valéry também reconhece que essa relação não é perceptível num plano estritamente lexical e, entendendo que "a função do poeta é a de nos dar a sensação da íntima união entre a palavra e o espírito", irá relacionar este facto, alguns parágrafos adiante, com o modo como, no verso, as palavras agem sobre o leitor à maneira de "um acorde musical".
Tudo isto é bastante conhecido, tanto mais que as teses de Valéry viriam a ter fortes repercussões no desenvolvimento das poéticas e dos estudos de poética no século XX. Mas há, nesse ensaio, um aspecto que importa muito para o que pretendo dizer. É que o poeticista parece não poder explicar o que entende por esta aproximação entre o funcionamento do verso e o de um "acorde musical" sem transitar da palavra, valorizada por Mallarmé na frase que antes citara, para a sílaba. Se bem que Valéry comece por transcrever dois versos de Baudelaire (...) para dizer que "estas palavras" agem sobre o leitor sem lhe transmitirem muito em termos puramente informativos, a sua exposição evolui de tal maneira que o conceito de palavra é subitamente abandonado, sem qualquer justificação, e substituído pelo de sílaba - ainda na mesma frase -, concluindo o poeticista que "(a) impressão (provocada pelos versos de Baudelaire) depende em grande parte da ressonância, do ritmo, do número desta sílabas", e acrescentando que "resulta também da simples aproximação das significações".
Como devemos entender este deslize semântico que Valéry não só não explica como parece não querer sequer notar, já que a expressão "estas sílabas" surge como equivalente absoluto de um antecedente que era "estas palavras"? Creio que a relação de equivalência assim criada constitui uma explicitação interpretativa da afirmação de Mallarmé anteriormente citada, porquanto o que o poeta contrapunha às "ideias" de Degas era, na verdade, o que Valéry viria a chamar a indissolubilidade entre som e sentido. E é também a profunda consciência deste facto que leva Valéry a deslizar subtilmente para uma valorização das relações entre as sílabas, pois só elas criam entre si nexos - "ligações (racords) - relações (rapports)", como diria Mallarmé - que são aproximáveis de um acorde musical. Acorde que, neste caso, é essencialmente um acordo, uma consonância que pode autonomizar-se das palavras (embora sem deixar de implicá-las nesse movimento) para se situar no plano da organização integral do discurso, isto é, para se distribuir por todos os níveis de significância em que este se organiza - e daí também a referência de Valéry à "simples aproximação das significações".
Martelo, Rosa Maria. A Forma Informe: leituras de poesia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp 23-25-
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