18/10/12

"(...) deixar umas pegadas em vias de se apagarem numa vereda inúmeras vezes percorrida por outros..."


O poeta não tem para a poesia mais do que as palavras dos outros ou as palavras de outrem. Até porque não há outras. Há quem viva mal com isso, mas de facto nenhum de nós inventa a língua em que fala/ escreve. A língua que é matéria de que somos feitos, mediação e instrumentação do corpo-&-alma em que possuímos ou perdemos a verdade é a língua de outros que falam tumultuosamente dentro de nós e esperam que lhes falemos deles. (...) Imaginemos o que pode ser uma outra forma para este problema: imaginemos, com Francis Ponge, que "tudo se passa connosco (com os poetas), como com pintores que não tivessem à sua disposição para mergulharem os seus pincéis senão um mesmo e imenso balde onde desde a noite dos tempos todos tivessem tido que lavar as suas cores..." (...)
Para alguns de nós a poesia tem muitas moradas, ou nenhuma que lhe seja própria, pois seria nómada; ou o problema seria ainda outro - haveria poetas e poemas mas não haveria, como um sol imóvel, a poesia. Para outros ainda - e reconheça-se de uma vez que são diferentes as famílias e que as próprias semelhanças de família supõem uma diferença - a poesia só parece possível depois de uma experiência da sua impossibilidade, de uma ameaça de afasia, ou de pensarmos que a tínhamos perdido. Ou quando uma grande ilusão ou uma pequena mania obstinadamente nos conduzem e vencem, na iminência do início ou do recomeço, essa hesitação entre o peso do que já foi escrito e a hipótese arriscada de um outro possível, entre o que há de exigência na compulsão e o que há de cegueira na premeditação. E, então, quando na contingência e na obstinação, ela (a poesia) retorna ou insiste, o poema pode acender-se no brilho cego de uma absoluta necessidade, ou no estremecer de uma certeza sem garantias.
- Insistamos nesse limite: nenhum de nós inventa a língua em que escreve o poema; podemos apenas reconfigurá-la, desfigurá-la um pouco, estranhá-la ou fazer com que os outros a estranhem ou simplesmente que reparem num ritmo, num pequeno sistema de ecos, numa imagem que emenda uma recordação ou surge inventada e evidente.
- Quando conseguimos, há algo, uma coisa do mundo, que muda de forma. Ou de figura.
Podemos abrir um caminho no corpo amoroso e rebelde dessa língua, deixar umas pegadas em vias de se apagarem numa vereda inúmeras vezes percorrida por outros, escrever uns graffitti com tinta invisível nas paredes que uma cidade nos recusa, suscitar um ou outro encontro, por vezes, entre gente que nem sequer conhecemos. É certo que quando alguns conseguem o que a poesia promete a impressão que temos é a de que a linguagem está "em estado de nascimento" e nós, com ela, é como se recomeçássemos, ou como se de novo nos viesse alucinar a reclamação do direito a viver várias vidas numa só vida mortal, que foi um dos desejos de Rimbaud.
(...) Ora, de certa maneira, esse perpétuo nascimento da linguagem está inscrito no haver linguagem. O que a poesia faz não é mais do que inventar, a partir da comum faculdade de linguagem, ou da língua comum que supõe uma comunidade multiplamente clivada. Quando o poeta escreve (e são sempre pelo menos dois a escrever o que ele escreve), o que acontece ou pode acontecer é isso mesmo: a linguagem a repetir a sua origem, ou seja a funcionar. A experiência que fazemos da poesia é, assim, e de uma origem perpétua, ou seja, a de uma origem que se repete, segundo a diferença da história.
Essa experiência da linguagem, esse pensamento por figuras, a que chamamos poesia, pode abrir-se sobre a experiência do mundo ou ser ela mesma uma forma dessa experiência. Incomensurável embora, também o mundo é imaginável como uma tal origem.

    Gusmão, Manuel. Tatuagem & Palimpsesto: da poesia em alguns poetas e poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp 13 - 15.
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