" Os Nomes do Mar "
o mar cria seus próprios cavalos e torna-se pedra quando muito gelado. ele não conhece flor nem fogo e mesmo assim pode queimaduras e adornos. tem enguias e mães d'água, corais e algas. o seu chão constela-se de esponjas e anêmonas. o mar é pródigo em estrelas e proventos. mas não tem galhos para os pássaros nem cabelos para os afogados. o mar é um cofre de naufrágios. no seu fundo caminham escafandristas. entre moreias e meros seus sapatos levitam. o mar é duro e delicado como a carapaça de um crustáceo. em suas angras ele brinca de aquário. ele é aéreo nas nuvens e seu humor sujeita-se à lua. o mar arrasta ou empurra. e seus abismos devoram muitas âncoras. são os brincos que Iemanjá reclama. na praia a onda lambe a areia mas nunca há ânsia. o plâncton escoa na garganta e o píer é um palito que por ela avança. e se um farol a ilumina, ei-la sem amídalas. o mar é inteiro boca e saliva. e nunca cospe, apenas engole. quem pensa em ressaca o enxerga de fora. ou acredita em mentiras. o mar exige sorte além de perícia. o mar salga e salva. seu imenso é um cemitério de almas. o mar não se cala quando quer, por isso é bem maior que o céu. ele dá a volta ao mundo sem andar em círculos e move as nadadeiras do pensamento perdido. o mar pode ser lindo e sinistro. solares e umbrívagos são seus caminhos. e eles recolhem muita espuma pelas bordas. o mar é imêmore e guarda todas as horas. e só chega à costa para que alguém possa vê-lo. o homem que o vê é um peixe seco. de ar e sangue, e sem guelras. o homem é igual ao mar, concebe e faz guerras. deus separou a porção seca do mar e pôs o homem a viver nela. a terra separa as águas como a vontade faz com os homens. há nela duas árvores: a do conhecimento e a da vida. a lei é que certas frutas vermelhas são interditas. para ir de um lado a outro o homem tem pés. para atravessar o mar, navios e Moisés. em terra o homem é o lobo do homem. já o lobo marinho é bem mais tranquilo. é mimoso feito um ouriço recém-nascido e quando cresce não promete espinhos. frente ao mar o homem tem arroubos divinos: caminhar sobre as águas, multiplicar os peixes. mas sua vida terrestre é de carne e leite. o homem brinca de deus quando teima. ele se consome de porquês e se fabrica problemas. o homem brinca de deus mas vive no tempo. e no mar ele nomeia seus medos: mar morto, mar negro, mar vermelho. o homem é água e enredo.
Gonçalves, Marcus Fabiano. Arame Falado. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2012, pp 54 - 55.
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