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tenho andado com a impressão de que há uma nova vida à frente. Não sei se é bom, se é mau. Sei que é engenhoso, sem ser contudo inquietante. A inquietude é algo que se vai perdendo com a experiência. A sua escala vai diminuindo e a qualidade de vida aumentando, pese o preço que se vai pagando por isso: as derrotas, as decepções, as perdas que lhes estão associadas, todas na medida maior, caso contrário não produzem efeito na escala insidiosa do que já foi inquietante.
Quando se toca o fundo de uma série de histórias, acompanha-nos a respectiva dor e, ao mesmo tempo, um magnífico horizonte de recomeço. É precisamente dessa fórmula, desse encontro entre a dor e o recomeço que se pode diminuir a inquietude.
Ficarei por Paris até ao Natal. Tenho estado hospedado na suite da Patrícia, uma herança que ela agora usa para hospedar amigos. Esta independência tem servido para me confrontar com algum desconhecido. Chega-se a este ponto da vida com a impressão de que só se desconhece ciência e cultura. Ou seja, aquilo que as diferentes cátedras são capazes de nos injectar durante uns parcos tempos nos bancos rotineiros das universidades. Mas o espanto está no resto. Tem-me espantado o grau de desconhecimento sobre a humanidade dos humanos. Quero dizer, o que ainda não sei sobre o sorriso de milhões, sobre as lágrimas de outros tantos, sobre a insinuação do mundo, sobre o anseio que paira na tal humana humanidade que possui o universo. E isso tem-me dado um inumerável aumento de horizontes que é um pouco estranho à nossa idade.
Quando penso que já vivi a maior parte da vida, sinto uma certa avareza por perceber que o tempo é muito pouco para chegar satisfatoriamente a essas emoções e pensamentos que têm os outros e que nos mudam.
Há dias ouvi uma conversa entre uma rapariga e uma vendedora de flores em Saint-Michel que me povoou a manhã. A vendedora de flores tinha uma genuína apropriação emocional da sua profissão. Ela sabia sempre, pelo olhar que os clientes lançavam às flores, a quem se destinavam. Sabia o significado que lhes davam no momento da escolha: as esperanças, os refúgios, as perdas, a dedicação, sabia os códigos das flores no coração alheio. E isso é a tal humana humanidade de que te falava e para a qual já há pouco tempo para apreciar, para saber, mas que é um autêntico atlas.
Quando já se andou por quase todos os continentes, como é o meu caso, parece que já quase nada nos pode espantar. Mas não. Há um lugar muito maior do que o mundo para descobrir e para fruir. A poética que encerra a viagem até ao outro é também ela um desafio de navegação com aspecto tão de infinito quanto a vista que se tem dos promontórios em direcção à linha do horizonte.
Os dias começam-me de forma imprevista. Isto poderia ser uma boa definição da juventude. E, curiosamente, acontece-me.(...)
Martins, Pompeu Miguel. Ficar. Fafe: Editora Labirinto, 2012, p 65 - 66.
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