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“ Eneias e o Anjinho”
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Monsieur entrou ofegante: mochila logo à porta da sala, o
blusão atirado para cima dum sofá.
Vai sair os verbos e as
funções sintácticas!, disse. O.K!, puxa então a tua mesa para ao pé da minha!
Veio a mesa, veio a mochila vomitando compêndios, folhas A4, um estojo… Dá cá o
livro para eu escolher um texto. Ele deu. Eu escolhi. Começámos ambos à cata de
verbos que ele ia cantando nos mais diversos tempos, modos e pessoas. Quando
dei por encerrada aquela parte da aula, eis que ouço: não me perguntaste o mais
que perfeito do conjuntivo! E zás, varreu-se-me tudo: nem perfeito, nem
conjuntivo, nem nada… E quanto eu mais procurava, mais se adensava a branca. Eh,
não sabes o mais que perfeito do conjuntivo!, exclama o anjinho. Tá calado,
rapaz, não vez que estou cansado! Não sabes, não sabes: é aquele que tem o
“tivesse”, que vimos no outro dia. Há um a zero, pensei eu! Acabou!, pus eu
aquela cara agressiva que, às vezes, lá consegue ir convencendo. Agora vamos às
orações!, decreta Monsieur. Eu arrumo as gramáticas, as notas, as brancas… Ai
queres orações?, então começa já a dizer o Pai-Nosso!, finjo-me eu zangado. Eh,
é orações, mas não é dessas… E lá fomos em busca das orações perdidas. Era um
texto que falava de pescadores, de tubarões e de todo o tipo de actividades
marítimas. De repente surge-me algo do estilo: “(…) e tinham-nos trazido
estendidos sobre tábuas estreias”. Sujeito?, pergunto. Não tem! Não tem?! Espera,
espera… Torce-se na cadeira, sua, debruça-se sobre a página: tem, tem… Tem?!
Sim, está subentendido! Em que é que ficamos é inexistente ou está
subentendido? Eh, pá, já te disse: tá subentendido! Depois, nova luta por causa
do “nos”… Enorme discussão para o convencer que o “nos” não se referia a “nós”
mas aos tubarões, logo não podia ser complemento directo… Finalmente acabou o
primeiro round com um a zero.
No dia seguinte Monsieur
delimita logo as tarefas: temos de ver Os Lusíadas, porque também vai sair.
Lusíadas às 17h depois de um dia inteiro de volta do Realismo francês era
tarefa de leão, mesmo assim aceitei. Sabias, pergunta-me ele com ar erudito,
que o Camões não começa a contar logo do princípio, ele começa a meio, na ilha
de Moçambique, sabias? Respondo: não, não sabia, por isso é que tu estás aqui
pra me explicar! Não o deixo ir para a ilha de Moçambique sem primeiro
atacarmos a Proposição, a Invocação e a Dedicatória. Ele começa a ler… Pára aí!
Olha-me: que foi? É que eu quero saber se estás a ler Os Lusíadas ou a fazer um
relato de futebol. Ri. Retoma a leitura. Pára aí! Olha-me de novo: que foi
agora?Agora?!, agora não estás a fazer um relato de futebol, mas deves estar a
ler um mail… isso não tem ritmo, entoação, pontuação? Eh, pá, és um chato! E lá
atacamos as estrofes que eu pretendia. O anjinho sabia tudo: o Trajano, as
Tágides, o engenho, as rimas, todos os tipos de estrofes dos dísticos às oitavas,
mas… eis que cavei a minha perda: “cessem do sábio Grego e do Troiano”,
falei-lhe de Homero, fui à estante buscar a Ilíada e a Odisseia e fiz-lhe –
passe a redundância!- duas breve sínteses, mas quando cheguei ao Troiano veio
de novo a branca… Branca-branca que só me conseguia lembrar do Príamo, do
Paris, do Heitor, mas não era nenhum desses. Então oiço: eh, não sabes quem é o
Troiano! Eu penso: “prontus”, dois a zero! O anjinho ergue a cabeça para me
explicar: o Camões está a falar de Eneias, é que ele foi influenciado por
Virgílio, pela Eneida… Eh, não sabias! De um jacto levanto-me, vou à estante e
tiro o “Obras de Virgílio”, na tradução do Agostinho da Silva, e mostro-lhe a
Eneida toda sublinhada. Não me interessa, insiste o anjinho, não foste tu que
sublinhaste… não sabias quem era Eneias. E ria, ria… Eu também ria, mas para
dentro, a fingir-me zangado…
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