(Nota - parece haver uma obsessão de rotulagem relativamente aos poetas que se debruçam, ou que não ignoram, o mundo interior, levam imediatamente com o estigma de românticos, pós-românticos ou ultra-românticos. Não estarão alguns deles mais próximo da psicanálise da Kristeva, do cognitivismo de Christophe André do que de Fichte, Holderlin e tantos outros? Fica a pergunta no ar. No entanto, irei postar alguns autores brasileiros: românticos (Casimiro de Abreu e Júlia da Costa) e simbolista (Auta de Souza)... Para se verem as diferenças!)
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" A Virgem Loura ( Páginas do Coração ) "
IV
Mas o que me acontecia quando eu era pequeno, aquilo que vos quero contar, é uma coisa que de certo tem acontecido a todas as crianças e em que bem poucas terão feito reparo.
Era uma mulher de uma beleza extrema e de uma graça encantadora que, sempre coroada de rosas e sorrindo-se ternamente, vinha todos os dias associar-se a nossos folguedos e partilhar nossas alegrias e pesares. Era uma virgem; dizia-o a pureza de seus belos olhos e a suavidade da fala.
Apesar de tantos anos, vou tentar pintá-la como a vi na infância. Se o retrato sair imperfeito e as cores esmorecidas, desculpem-me; a minha palheta não é variada, e ao tocar nessas páginas do coração, a mão treme e o pincel nodoa a tela.
V
(...)
-Era bela, - já vos disse,- e não acho com que a possa comparar.
- Uma vestal?
- Seria; mas seu rosto divinamente belo, nem sempre tinha essa suavidade angélica das vestais antigas (...)
Naquele tempo eu vi-a sempre bondosa, terna e ingênua.
Quando ela sacudia aquela cabeça digna da estatuária antiga, os seus cabelos, os seus lindos cabelos louros presos na fronte por uma grinalda, fugiam e flutuavam livres em graciosos anéis.
Trajava roupas talares, tão alvas e tão alvas, que todos nós temíamos manchá-las quando as tocávamos.
Era muito linda; mas o que eu sobretudo admirava, na minha ingenuidade infantil, era a pureza e o brilho de seus olhos azuis que refletiam a cor do céu. Como eram belos! Nas horas de oração, de joelhos a nosso lado, ela erguia esses olhos para Deus e conservava-os assim longo tempo num êxtase; então eu via que, suspensa de suas pálpebras tremia e brilhava uma lágrima como o cristal no lampadário do templo. E chorávamos também, e uníamos as nossas vozes frescas à sua voz melodiosa que entoava o cântico da infância sublime de simplicidade.
A minha virgem vivia sempre cantando; mas fazia-o com tal suavidade, com tal sentimento, que nós, suspensos e imóveis, ficávamos presos a esse doce gorjeio que nos despertava sensações desconhecidas.
...
X
Mas depois...a - Virgem Loura - volúvel e caprichosa como todas as mulheres, abandonou-me.
(...) Fatal dia! Negra hora!
Desde então fugiu-me a - Virgem Loura - e debalde a tenho procurado no clarão da lua, na luz das estrelas, nas ondas do mar, nas flores do prado, em tudo; nunca mais a vi!
(...)
- Mas quem era - a Virgem Loura?
- A de olhos azuis?
- Sim.
- Aquela que eu amava?
- Sim.
- Pois não adivinharam?!... Era a poesia.
Abreu, Casimiro de. Narrativas. Lisboa: CLEPUL da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2012, pp 65 - 71 ( Edição, apresentação e notas de Maria Eunice Moreira).
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