Doente, desmamado à força aos nove meses, a febre e o embrutecimento impediram-me de sentir a última tesourada que corta os laços entre a mãe e o filho; mergulhei num mundo confuso, povoado de alucinações simples e de frustes ídolos. À morte de meu pai, Anne-Marie e eu despertámos de um pesadelo comum: sarei. Mas ambos éramos vítimas de um mal-entendido: ela reencontrava com amor um filho que jamais abandonara realmente; eu voltava a mim no regaço de uma estranha.
Sem dinheiro nem profissão, Anne-Marie decidiu regressar a casa dos pais. Mas o insolente passamento de meu pai desgostara os Schweitzer: assemelhava-se demais a um repúdio. Por não ter sabido prevê-lo nem preveni-lo, minha mãe foi tida como culpada; tomara, tontamente, um marido que não durarara.(...) meu avô, que tinha pedido a reforma, retomou o serviço sem uma palavra de censura; minha avó, por sua vez, mostrou discreto triunfo. No entanto, Anne-Marie, gelada de gratidão, adivinhava o vitupério sob a capa dos bons procedimentos: as famílias, sem dúvida, preferem as viúvas às mães solteiras, mas por pouco. A fim de lograr o perdão, Anne-Marie gastou-se sem medida, dirigiu a casa dos pais, em Meudon e depois em Paris, fez-se governanta, enfermeira, mordomo, dama de companhia, criada, sem conseguir desarmar o mudo agastamento de mãe.(...) Louise começou a sentir ciúmes da filha. Pobre Anne-Marie: passiva, teria sido acusada de constituir um fardo; activa, era suspeita de querer mandar na casa. Para evitar o primeiro escolho, precisou de toda a coragem; para evitar o segundo, de toda a humildade. Não passou muito tempo até que a jovem viúva regressasse à menoridade: uma virgem maculada. Não lhe recusavam o dinheiro miúdo: esqueciam-se de lho dar; usou o seu guarda roupa até ao fio sem que o meu avô se lembrasse de o renovar. Mal toleravam que saísse sozinha.(...)Os convites rarearam e minha mãe desgostou-se de prazeres tão custosos.
A morte de Jean-Baptiste foi o grande acontecimento da minha vida: devolveu minha mãe aos seus grilhões e deu-me, a mim, a liberdade.
Não há bom pai, é a regra; que não se faça disso agravo aos homens, mas ao laço de paternidade que apodreceu. Fazer filhos, não há coisa melhor; tê-los, que iniquidade! Houvesse vivido, meu pai ter-se-ia deitado sobre mim a todo o comprimento e ter-me-ia esmagado. Por sorte, morreu jovem(...); deixei atrás de mim um jovem morto que não teve tempo de ser meu pai e que bem poderia ser, hoje, meu filho. Foi um mal? Um bem? Não sei; mas subscrevo de bom grado o veredicto de um eminente psicanalista: não tenho Superego.
(...) Meu pai tivera a gentileza de morrer erradamente: minha avó repetia que ele se furtara às suas obrigações; meu avô, justamente orgulhoso da longevidade Schweitzer, não admitia que alguém desaparecesse aos trinta anos; à luz desse óbito suspeito, acabou por duvidar que o genro tivesse alguma vez existido e, por fim, esqueceu-o. Nem precisei sequer de o esquecer: despedindo-se à francesa, Jean-Baptiste recusara-me o prazer de o conhecer. Ainda hoje me espanto do pouco que sei a seu respeito(...) Mas em relação a esse homem, ninguém, na minha família, soube tornar-me curioso.(...) Mais do que filho de um morto, deram-me a entender que eu era filho do milagre. Daí provém, sem dúvida alguma, a minha incrível leviandade. Não sou um chefe, nem aspiro a sê-lo. Comandar e obedecer dão no mesmo. O mais autoritário comanda em nome de outro, de um parasita sagrado - seu pai -, e transmite as abstractas violências de que padece. Nunca na minha vida dei ordens sem rir, sem fazer rir; é que não estou roído pelo cancro do poder; não me ensinaram a obediência.
A quem obedeceria eu? Mostram-me uma jovem gigante e dizem-me que é a minha mãe(...): Amo-a: mas como havia de a respeitar, se ninguém a respeita?
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Jean-Paul Sartre In "As Palavras", Livª Bertrand, Amadora, s/d, pp 17 - 21.
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