Este novo livro de Alice Fergo parte de uma preocupação fundamental - a de narração: "Resumo em poucos meios o que suponho ouvir" (p. 10), "Para que me sigas não devo acrescentar mais nada." (p. 11), "Desdobro planos. Volto às fundações. Encontro a candura floral da polpa e, com dedos de leite, esfrego-a no corpo." (p. 26). Neste último excerto vislumbra-se a razão principal, e última, desta narratividade, bem como os intentos da procura que nesta obra se exibem: procuram-se as fundações, "o horizonte" (p. 13), "a nascente" (p. 25), "a cidade" finalmente conquistada (p. 53). Vê-se, portanto, que a busca empreendida, bem como a apresentação ao leitor do itinerário que ao eu-poético coube em sorte, têm por objectivo essa nascente de onde flui o rio referido no título do livro; esse solo matricial onde esta poesia pretende entrever o sentido do devir, da vida, metaforizados ambos na figura do rio.
O desvelamento desta aventura de ao mesmo tempo ser e dizer não é contudo linear, bem ao gosto de certas poéticas alicerçadas em paradigmas de cariz imediatista. Em Alice Fergo é a própria linguagem que é experienciada, pois a poeta sabe que a palavra, em seu elíptico falar, apenas por aproximação diz: "Difícil saber o guião todo. Incerto o travo das falas. Metade escuro. Metade claro" (p. 9), "Não vou contar o que imagino saber - um sentimento não se diz assim. As palavras mal recriam o que as funda. Servem a elipse" (p. 44). Consciente da vária perigosidade dos símbolos linguísticos e do grau de imprevisibilidade daquilo de que pretende falar, Alice Fergo recorre a alguns procedimentos formais que visam articular a complexidade daquilo que urge dizer com a beleza do modo como tal é feito; por conseguinte encontramos nesta obra - aliterações: "Brumoso. Bruxo..." (p.15), "A lua lambe os limos fétidos." (p. 16); oximoros: "...meninas velhas..." (p. 20); processos de tipo anafórico: "Digo o erro de amor. A ferida de ver (...); digo o mar alojado nas têmporas..." (p. 22), "E a água mói. E a água insiste. E a água não tem verbo que a escorra." (p. 45); personificações: "O rio vê tudo com uma visão faraónica e, de tempos a tempos, conta as águas pelas constelações do reino." (p. 27); enumerações (de seres concretos): "A concha. A cratera. A mulher que nascia de si pela evidência de um beijo..." (p. 28). A maestria na urdidura desta obra e, consequentemente, o excelente domínio do código linguístico, levam muitas vezes Alice Fergo a enveredar por sendas bem mais heterodoxas: "... nunca percepcionei o conflito à história. Intrigo-a" (p. 11) - atente-se à especular plurisignificação do verbo "intrigar" neste excerto; "Vou de muito longe " (p. 12) - mais do que ampliar a abrangência do verbo "ir", a poeta joga aqui com um processo de homofonia, nomeadamente com a palavra "voo"; adjectivação de carácter antitético e/ou contraditório: "... o amor é odioso..." (p. 19), "... um espinho doce." (p. 28), "... a impura sacerdotisa..." (p. 29); etapas de metaforização muitas vezes estabelecidas a partir de objectos do real imediato, do quotidiano: "Faço a sopa da minha existência." (p. 40), "Na rua um gato indiferente aos semáforos atravessa a luz." (p. 43); a afirmação de um léxico à revelia de uma tradição poética: "Sei de bisontes que pegaram no sono em salas rupestres..." (p. 54), esta associação do bisonte à força raramente foi usada na poesia portuguesa das últimas décadas - veja-se, por exemplo, a página 20 de "O jogo dos silêncios" de Maria Alberta Menéres. Depois de tudo o que temos vindo a dizer, não se pense que o novo livro de Alice Fergo tem por objectivo a demonstração de um qualquer virtuosismo formal, a frívola exibição de uma prestidigitação gratuita - é outra a nossa leitura: se a poeta usa todos os recursos que a língua lhe permite, é porque antevê árduo o seu duplo desígnio de procurar e de, ao mesmo tempo, narrar esse caminho que a sua lucidez lhe vai ditando: "Ó Minotauro, para quando o horizonte?!! (p. 13), "Volta não volta sangro-me." (p. 21), "O meu delírio não é negociável..." (p. 23). Este delírio do eu-poético, ou melhor, esta lucidez, não é mais do que a coragem de, no tempo, "junto às horas", procurar os momentos em que "se ilumina um rio"; viver e contar esses instantes-fulgor em que nosso solo matricial e dador de sentido afinal se deixa entrever.
Neste seu périplo poético vários são os estados de alma que podem ser encontrados na autora: a imprecação (cf. p. 13); a estranheza, "Dou corpo a enigmas. Recebo-os como se viessem à boca certa." (p. 29), "Estou a pontos de descobrir o que escondo, algures..." (p. 32); a nostalgia (cf. p. 16); o desalento e o desencanto: "... nua até ao infinito. Só." (p. 17), "O que poderá o futuro contra este exílio..." (p. 37), "Junto à lareira, nada que desarme as horas das suas armadilhas. Já tudo foi vivido pelos salteadores." (p. 66); a ironia amarga: "... aqui, a intriga, segundo o evangelho de Brutus." (p. 25), "Tudo me é familiar até ao fundo do prato." (p. 40); mas encontramos também momentos em que uma luminosa candura aflora: "Viagem pelos frutos dentro, aqui me tens! Aqui me entrego à substância quase divina dos dias e sou até quando." (p. 26); "Avó beija-flor - endiabrada voadora - se não te guardo, o futuro desmerece as asas do teu estro (...) Deixa que tudo arrefeça e volta noutro livro, devagarinho. Como as santas." (p. 33).
Se a narratividade se nos apresenta como um "cântico cercado" (cf. p. 63) e a busca empreendida por Alice Fergo nos aparece marcada essencialmente pelo desalento, já que os salteadores de tudo parece terem-se apoderado, dir-se-ia estarmos frente a uma poética marcada por um cepticismo radical. Mas é então que, exímia no manejo da arte poética, a poeta nos lança um último poema de cariz epigramático: "Sol. Corpo sideral em cima da mesa, a que vens?", reabrindo assim o leque de possíveis nessa dialéctica de desalento e persistência que afinal sempre houvera e que uma leitura outra facilmente recupera: "... ninguém duvidará da semente que absorve os pântanos e emerge à procura de um nome: nenúfar ou anjo ressurgido, assim nós" (p. 47). É como se a clarividência e a extrema mestria poética de Alice Fergo nos tivesse querido dizer, nesta sua conseguida obra: naquilo que em nós, e fora de nós, é, fundamentalmente desalento, talvez o sol ainda... Ou, como o título livro tão bem enfatiza: ainda aqui e ali, junto às horas, e apesar de tanta coisa acontecida, é possível que se ilumine esse rio que somos e onde somos chamados a estar.
A tese acima avançada remete-nos para o último nó temático deste texto-posfácio: o diálogo que este livro vem sempre mantendo com outros autores e áreas do saber. São várias as pontes estabelecidas com a História e a Mitologia. Quanto a autores existem situações de intertextualidade com Stendhal: "... por quem morres de morte serpentina entre a paixão do negro e do vermelho" (p. 27), de diálogo com a obra "As Cidades Invisíveis" de Italo Calvino (cf. p. 53). Mas é sobretudo com o discurso cinematográfico que essa forma de diálogo é mais nítida desde títulos de filmes tomados como referentes: "Johnny Guitar" (p. 41), "O Sabor da Cereja" (p. 51), passando pelos referidos momentos de intertextualidade, como o que é mantido com a pelicula "A Guerra das Rosas": " Talvez convalescenças da guerra das rosas e de outras lanças" (p. 46) e no poema "A palavra" com o filme homónimo de Carl Dreyer, "Agora, ela quer Deus, quer a sua palavra: quer o átomo da seda, o algodão doce, a música das árvores. Coisas assim, abençoadas, fáceis." (p. 62). Alice Fergo, que em vários dos seus poemas alude ao léxico cinematográfico ("The End" p. 4, "Ecrã a negro" p. 48...), diz-nos mesmo: "Quem lê, divaga, filma." (p. 31), "Filmo. Não legendo. Filmo. Absorvo a imagem e estimulo as fontes" (p. 42). Perante a radicalidade desta pretensão percebe-se o fascínio da poeta pela obra de Abbas Kiarostami, onde também um homem marcado pelo desalento e pelo desencanto acaba por reaprender a virtude da persistência ("Sei do sabor da cereja- almas de cerejeira são pecados encerados de sol." p. 54), aprendizagem essa mediatizada por uma figura anunciadora, que, após um ritual quase iniciático, lhe (re)ensina a olhar as estrelas. Em Kiarostami, como em Alice Fergo, quando tudo parecia absoluta esterilidade e anunciada desolação, eis que algo, rasgando o tão conhecido cenário, irrompe como "Visitação": "Sol. Corpo sideral em cima da mesa, a que vens?"
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Victor Oliveira Mateus in "Quando junto às horas se ilumina um rio" de Alice Fergo, Editora Labirinto, Fafe, 2009, pp 69 - 74.
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