30/11/10

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... a Filomena consolou-a, não sei, disse, o seu pai apaixonou-se e viveu um grande amor, uma maravilha, trocou de país em nome do seu amor, outra maravilha, aprendeu uma nova língua, uma nova cultura, o que poucos homens têm o privilégio de fazer, nova maravilha, depois viveu feliz vinte anos, acreditando no comunismo, presumindo-se na vanguarda do mundo, vinte anos de existência maravilhosa, em seguida deu-se a queda, a felicidade tornou-se infelicidade, com a mesma força, a mesma intensidade, o gosto em desgosto, a alegria em tristeza, em suma, a ilusão em desilusão - acho que o João Carreira da Mota foi um homem cheio de sorte na vida, a maioria de nós vive mediocremente, repetindo a eterna rotinazinha do trabalho, ao almoço uma dose de bacalhau à lagareiro, depois o trabalho, ao jantar uma posta de salmão, à noite muita televisão, o círculo repete-se no dia seguinte, e no dia seguinte, o seu pai, disse a Filomena, foi um homem de vida cheia, a Yanna não tem por que chorar, o seu pai era um nada em Sintra, um canteirozito, igual a qualquer outro, tornou-se tudo em Sófia, dono da vida e do futuro, e voltou a ser nada em Plovdiv, atravessou o ciclo da existência: nada, tudo, nada, nem sofreu o nada decadente da velhice, a maioria de nós percorre a existência sobrevivendo no nada: nada, nada e nada. Yanna sorriu, agradeceu à Filomena, retirou da maleta de estudante um embrulho irregular, de papel verde amarrotado, usado, abriu-o, o tinteiro de prata, velho, carcomido, mostrou-nos, devia devolvê-lo ao Estado português, não é meu, eu reembrulhei o tinteiro, de valor insignificante, percebia-se que não era de prata, as avarezas de Salazar, ferro disfarçado de prata, uma peliculazinha de prata, meti-o na maleta de Yanna, guarde-o, disse, conte aos seus filhos a história do avô, mostrando-lhes o tinteiro que viera de Portugal, eles vão gostar de saber a história de João Carreira da Mota, o soldado revolucionário que por amor veio para a Bulgária.
Levantámo-nos, Yanna passou-me o envelope com as memórias da rainha D. Amélia, Miguel, disse, entregue na Torre do Tombo, no espólio de Oliveira Salazar, donde nunca devia ter saído, passou-me um envelope para a mão, abri, a declaração da descoberta do manuscrito após a morte do pai, assumo a responsabilidade; muito bem, disse eu, aproximámo-nos da porta envidraçada, a empregada abriu-a, curvada até aos joelhos, cheia de salamaleques bizantinos, espreitando gorjeta, que dei, farfalhuda, enfatizando a superioridade do Ocidente, depedimo-nos, a Filomena ofereceu a casa em Sintra a Yanna, sempre que viesse a Lisboa, ela não podia fazer o mesmo, a casa da avó era um cubículo de uma assoalhada, ela dormia na sala, num sofá, beijámo-nos, Yanna olhou-me fixamente, a sua compostura gélida tremeu, emocionada, uma lâmina de água sulcava os seus olhos, agarrou-me o braço, comovida, Miguel, disse, tenho de ser sincera, os meus pais não morreram num acidente de viação, suicidaram-se, jogando o carro por uma ravina de 100 metros, abraçaram-me muito fortemente no dia da partida para Plovdiv, beijaram-me demoradamente, disseram-me que este tempo não era já o seu, aconselharam-me a não ficar presa a cadáveres, eu não tinha percebido, o meu pai depôs as mãos nos meus ombros e disse, solenemente, faz a tua vida sem te preocupares com a política, calhou-nos um tempo em que só os medíocres e os oportunistas vivem para a política, Yanna, disse-me o meu pai, muito sério, foram estas as últimas palavras que lhe ouvi, não fiques presa a cadáveres.
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Miguel Real in "As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia", Publicações Dom Quixote,
Alfragide, 2010, pp 54 - 55.
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29/11/10

"Mil vezes noutros tempos/ e noutras circunstâncias, "

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"Observação de Baleias"

Volumosa, enormíssima,
a cabeça do cetáceo mergulha no azul das águas,
e súbito se levanta a cauda enérgica,
formando um T,
T de Telmo,
visível um instante;
e o velho baleeiro reconhece
o veloz, impressivo monograma,
em negro forte,
que sempre julga ser a sua marca,
a sua identidade,
espargindo no ar uma chuva subtil e luminosa.

Mil vezes noutros tempos
e noutras circunstâncias,
contemplou com assombro a maravilha.
Remador bem poucos anos,
ainda jovem o fizeram
trancador de arpão certeiro,
admirado por isso, e festejado,
não só no Pico, mas nas ilhas próximas.

Tempos de glória, a que seguiram anos
de tristezas tamanhas!
Já Mestre Telmo lamentava a falta
de firmes vocações apaixonadas
em tão nobre domínio,
depois a morte de um filho muito amado
(herdeiro das funções de risco extremo)
num trágico acidente baleeiro.
Em todo o caso, agora - e não por isso,
naturalmente, mas porque diz quem sabe:
que as baleias escasseiam já um tanto -
foi a caça interdita,
num desespero de salvar-lhe a espécie.

De quando em quando,
sempre que o neto o convida
para um passeio no barco que possui
(moderno e muito bem apetrechado),
vai Mestre Telmo,
com seus binóculos de longo alcance,
sentado entre turistas poliglotas,
multicores.
Vai ver,
acompanhar de longe os belíssimos gigantes,
resfolgando,
felizes porventura,
nas ondas do Atlântico.

Chamam a isto, agora,
"observação de baleias",
vulgo Whale watching.

Norberto Ávila in "Percurso de Poeta", Edição do Autor, Lisboa, 2000, pp 60 - 62.
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26/11/10

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99

Lembro-me ainda de outra lição do meu pai.
Vigiai os crápulas - dizia - e vigiai os homens
que falam manso; há no excesso de fragilidade
exibida a preparação de uma maldade, pelo menos isso entendi.
Percebe os homens, caro Bloom, dizia-me o meu pai,
alguém se inclinará sobre a tua campa
para recolher rosas para a sua jarra.

100

Ninguém mata de tão longe como um homem,
e poderás dizer que esse facto prova
apenas a sua melhor pontaria ou tecnologia,
mas prova também a estratégia de uma espécie.
Não se ama a essa distância, por exemplo.

101

A condição humana é de uma mesquinhez absurda.
Os animais - um cavalo, por exemplo - falham quando escorregam
(a lógica das suas patas velozes é a rapidez
que não cai), para os homens em guerra, pelo contrário,
falhar é falhar na pontaria ao alvejar o inimigo
(e o massacre visto de longe parece apenas
uma obra-prima do xadrez).

(...)

108

Forte economia e fraca espada.
E eis o que é evidente: há mais inimigos
em tempo de paz do que em tempo de guerra.
Em tempo de paz cada exército
tem uma dimensão familiar, por exemplo,
sete elementos ( no caso de um casal
com cinco filhos) e o resto são inimigos.
São as minhas contas;
que posso fazer? - há muito perdi a ingenuidade.

109

A boa imagem do coração deve-se, em grande parte,
ao seu eficaz esconderijo. Sabe melhor isso
do que eu, Jean M. Os outros
são apenas alguém que nos olha.
Vigiar ou seduzir. Tudo o resto é cegueira.

Gonçalo M. Tavares in "Uma Viagem à Índia", Editorial Caminho,
Alfragide, 2010, pp 151 - 154.
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25/11/10

" E depois desabou de súbito no asfalto "

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"Desvario (He kissed me all over)"

(No passamento de Anna Nicole Smith,
deusa do amor.)

O sorriso de um escarlate cintilante
desfeito
A voz ébria e rouca da mulher a arrastar-se
He kissed me all over, all over
O olhar vesgo
A boca túrgida afrontosamente esborratada
O andar manco
O salto do sapato estropiado
O corpo devassado e devastado
A avançar aos tropeções pela calçada
Eis a deusa do amor
He kissed me all over
Repetiu num suspiro
E depois desabou de súbito no asfalto
Louca de felicidade
He kissed me all over

Maria Lucília Meleiro in "O prisma das muitas cores, Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira" (Organização: Victor Oliveira Mateus, Prefácio: António Carlos Cortez),
Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 134.
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24/11/10

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"A vida é um milagre"

( após rever Kusturica)


Todas as viagens são permutáveis. Assim as falsas
alegrias, as clausuras, a ternura até - tudo matéria
de troca, de empréstimo, de aluguer a módico preço
desde que nos faça esquecer a solidão, praticar a fuga
para a frente, justificar a verborreia em que se não crê
mas exercita: estridente ruído que se propaga, embala
e atordoa. Enfim, tudo tão igual entre si e eu tão igual
aos outros. Tudo tão monotonamente igual! Basta
o mesmo solo, os dissolutos meios, a firme fragilidade
que toda a segurança traz - o mesmo para a noite!

Todas as noites são igualmente permutáveis. E cada um
perdido a seu modo, apesar do ódio que despertamos
a quem não vê - nocturnas malhas com que sempre teço
as minhas madrugadas, as mesmas com que insisto,
com que aceno e depois comigo adormecem como luz
que não perdoa. Tudo isto penso agora (ou sinto?)
a léguas de casa. Mas... gosto da minha noite, confesso.
Lá fora uma chuva miudinha bate-me à janela. Chuva
fora de tempo - tal qual eu, felizmente! Minha irmã chuva,
diria o de Assis, que sempre espreita através dos meus versos.

Lá fora, o latir de um cão ao longe. O roçagar dos pneus
no pavimento molhado. O barulho de uma persiana que se
soltou. O ramalhar dos jacarandás que, em sintonia, acompanham
as gotas a baterem-me nos vidros, nos pensamentos - os meus,
estes que se emaranham corpo adentro com um não sei quê
de erótico, de inexplicavelmente torturante e apaziguador
ao mesmo tempo. E há também o teu rosto, quase sem contornos:
sombra a dissolver-se na sombra. Há os passos arrastados
de vizinha de cima. Os acordes de Fantástica de Berlioz
que acendi na penumbra. Na realidade todas as noites
são permutáveis, mas eu... só a custo deixaria a minha.

Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, pp 38 - 39.
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11/11/10

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"Uma Canção"


Por detrás dos meus olhos há águas
Tenho de as chorar todas.

Tenho sempre um desejo de me elevar voando,
E de partir com as aves migratórias.

Respirar cores com os ventos
Nos grandes ares.

Oh, como estou triste...
O rosto da lua bem o sabe.

Por isso, à minha volta há muita devoção aveludada
E madrugada a aproximar-se.

Quando as minhas asas se quebraram
Contra o teu coração de pedra,

Caíram os melros, como rosas de luto,
Dos altos arbustos azuis.

Todo o chilreio reprimido
Quer jubilar de novo

E eu tenho um desejo de me elevar voando,
E de partir com as aves migratórias.

Else Lasker-Schuler in " A Alma e o Caos - 100 poemas expressionistas",
Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2001, p 249 (Selecção e Tradução de João Barrento).
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A poesia de Chico Buarque...

Por Eugénia Melo e Castro e Adriana Calcanhoto.

10/11/10

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- Estúpido de merda - disse eu. Tinha-me levantado, sem tencionar fazê-lo. - O Bobby não tem feito outra coisa nesta vida se não adorar-te. E tu não tens feito outra coisa se não abandoná-lo. Não tens o direito de falar assim com ele.
- Oh, e tu também me saíste uma bela prenda - disse ele. - Deixas que eu me apaixone por ti e depois começas a dormir com o meu melhor amigo. És mesmo a pessoa indicada para me dizeres aquilo que tenho o direito de fazer.
- Espera lá. Eu deixei que te apaixonasses por mim? Quem é que disse que estavas apaixonado por mim?
- Disse eu. Digo-o agora. Apaixonado por vocês os dois. E agora só quero que me deixem em paz.
- Jon - chamou Bobby. - Oh, Jon...
- Tenho de sair daqui - disse Jonathan. - Sinto que vou enlouquecer aqui dentro. Até logo.
- A tua mãe levou o carro.
- Então vou a pé.
Levantou-se do cadeirão e saiu pela porta da frente. A porta fechou-se atrás dele com um suspiro patético - o som da madeira barata encaixando numa moldura de alumínio.
- Vou atrás dele . disse Bobby.
- Não. Deixa-o ir, deixa-o refrescar as ideias. Ele volta.
- Não. Tenho de falar com ele. Tenho estado aqui sentado sem abrir a boca.
- O pai dele acabou de morrer - lembrei-lhe. - Ele não está no seu perfeito juízo. Precisa de estar sozinho.
- Não, tem estado sozinho há demasiado tempo - disse Bobby. - Precisa que eu vá atrás dele.
Bobby libertou-se das minhas mãos e correu para a porta. Não teria conseguido detê-lo mesmo que tentasse (...). Saí atrás deles. Não para intervir, mas simplesmente porque não queria ficar à espera deles, sozinha, naquela casa imaculada.
Pela altura em que saí de casa, Jonathan já estava a um quarteirão de distância. Era uma figurinha ridícula a caminhar apressadamente, de cabeça baixa, sob a luz de um candeeiro. Cheguei ao passeio a tempo de ouvir Bobby chamar por ele. Ao ouvir o seu nome, Jonathan começou a correr sem olhar para trás. Bobby desatou a correr atrás dele. E eu, nervosa por me deixarem sozinha naquela casa assombrada, corri atrás de Bobby.
Bobby era o mais rápido dos três. Eu nunca fazia exercício, estava grávida, e tinha uns sapatos de salto alto que me obrigavam a correr como a heroína de um thriller(...)
Dois quarteirões à minha frente, Bobby alcançou Jonathan(...) Vi Jonathan espernear (...) e atingir Bobby com um soco.(...) Caíram juntos, golpeando-se um ao outro com os punhos.
- Parem com isso - gritei. - Seus parvalhões. Parem, ouviram? - Quando cheguei ao pé deles estavam a rebolar pelo chão (...). Ao fim de uns momentos consegui agarrá-los aos dois pelo cabelo e arrepelei-os com toda a força. - Parem - disse eu. - Parem. Imediatamente.
Pararam. Não lhes larguei o cabelo até estarem separados e sentados frente a frente no alcatrão macio da rua. O golpe na cara de Jonathan sangrava. (...) - Idiotas - gritei. - Vocês são mesmo doidos, não são? Vocês os dois.
- Somos - respondeu Bobby. E, no mesmo instante, desataram ambos a rir.
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Michael Cunningham in "Uma casa no fim do mundo", Gradiva, Lisboa, 2003,
pp 245 - 247 ( Tradução: Rui Pires Cabral).
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09/11/10

"Mas a violência não consiste tanto em ferir e em aniquilar como em interromper a continuidade das pessoas... "

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Facilmente se concordará que importa muitíssimo saber se não nos iludiremos com a moral.
A lucidez - abertura de espírito ao verdadeiro - não consiste em entrever a possibilidade permanente da guerra? O estado de guerra suspende a moral; despoja as instituições e as obrigações eternas da sua eternidade e, por conseguinte, anula, no provisório, os imperativos incondicionais. Projecta antecipadamente a sua sombra sobre os actos dos homens. A guerra não se classifica apenas - como a maior entre as provas de que vive a moral. Torna-a irrisória. A arte de prever e de ganhar por todos os meios a guerra - a política - impõe-se, então, como o próprio exercício da razão. A política opõe-se à moral, como a filosofia à ingenuidade.
Não há necessidade de provar por meio de obscuros fragmentos de Heráclito que o ser se revela como a guerra ao pensamento filosófico; que a guerra não o afecta apenas como o facto mais patente, mas como a própria patência - ou a verdade - do real. Nela, a realidade rasga as palavras e as imagens que a dissimulam para se impor na sua nudez e na sua dureza. Dura realidade (eis um verdadeiro pleonasmo!), dura lição das coisas, a guerra produz-se como a experiência pura do ser puro, no próprio instante da sua fulgurância em que ardem as roupagens da ilusão. O acontecimento ontológico que se desenha nesta negra claridade é uma movimentação dos seres, até aí fixos na sua identidade, uma mobilização dos absolutos, por uma ordem objectiva a que não podemos subtrair-nos. A prova de força é a prova do real. Mas a violência não consiste tanto em ferir e em aniquilar como em interromper a continuidade das pessoas, em fazê-las desempenhar papéis em que já se não encontram, em fazê-las trair, não apenas compromissos, mas a sua própria substância, em levá-las a cometer actos que vão destruir toda a possibilidade de acto. Tal como a guerra moderna, toda e qualquer guerra se serve já de armas que se voltam contra o que as detém. Instaura uma ordem em relação à qual ninguém se pode distanciar. Nada, pois, é exterior. A guerra não manifesta a exterioridade e o outro como outro; destrói a identidade do Mesmo.
A face do ser que se mostra na guerra fixa-se no conceito de totalidade que domina a filosofia ocidental. Os indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem eles saberem. Os indivíduos vão buscar a essa totalidade o seu sentido (invisível fora dela). A unicidade de cada presente sacrifica-se incessantemente a um futuro chamado a desvendar o seu sentido objectivo. Porque só o sentido último é que conta, só o último acto transforma os seres neles próprios. Eles serão o que aparecerem nas formas, já plásticas, da epopeia.
A consciência moral só pode suportar o olhar trocista do político se a certeza da paz dominar a evidência da guerra. Uma tal certeza não se obtém por simples jogo de antíteses. A paz dos impérios saídos da guerra assenta na guerra e não devolve aos seres alienados a sua identidade perdida. É necessária uma relação originária e original com o ser.
Historicamente, a moral opor-se-á à política e terá ultrapassado as funções da prudência ou os cânones do belo, para se pretender incondicional e universal quando a escatologia da paz messiânica vier sobrepor-se à ontologia da guerra. Os filósofos desconfiam dela. Sem dúvida, tiram dela partido para anunciarem também a paz; deduzem uma paz final da razão que faz o seu jogo no meio das guerras antigas e actuais: fundam a moral na política. Mas, adivinhação subjectiva e arbitrária do futuro, fruto de uma revelação sem evidências, tributária da fé, a escatologia depende, para eles, muito naturalmente da Opinião.
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Emmanuel Levinas in "Totalidade e Infinito", Edições 70, Lisboa, 2000, pp 9 - 10
(Tradução: José Pinto Ribeiro - Revista por Artur Mourão).
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08/11/10

" Representei/ E cansei-me; e desatei a gritar tudo... "

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"Poema Vesperal"

Dizem que não tenho idade para estar cansado.
Digo que não tenho idade para estar cansado.
Mas eu estou irremediavelmente cansado...
Não sei se conheço ou não a Vida,
(Toda a gente diz que não, que é impossível...)
Contudo, estou cansado.

Representei
E cansei-me; e desatei a gritar tudo... toda a Verdade.
Febrilmente gritei, rasguei máscaras, cuspi máscaras...
Agora até disso estou cansado
E nem leio o meu Baudelaire... o Príncipe de Todos.

Experimentei "tomar alegria",
Ouvir danças bárbaras,
Ver danças bárbaras,
Grandes contorções modernas,
- Sabiam falso...

Mais tarde descobri morto aquele-menino-que-fui.
Chorei... tive saudades... ai!, puro menino saudável...

Cansei saudades e lágrimas também...

- Ainda procurei vibrar...
Vibrar!, vibrar!

Vibrou apenas minha carne
E até ficar axausta, também...

Estou muito cansado.

Só interessa ir para a cama
E dormir...

Dormir bem...

Cristovam Pavia in "Poesia", Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2010, pp 67 - 68.
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07/11/10

" Estou grave e calmo./ E não preciso de ninguém "

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"Requiem"

(ao menino morto, eu próprio)

A tarde declina com uma luz ténue.
Estou grave e calmo.
E não preciso de ninguém
Nem a luz da tarde me comove: entendo-a.
Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.

Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam
E voltam. São os mesmos:
Como os conheço desde a infância!
E a terra húmida das tapadas da quinta...
O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos
Gira transparente nesta brisa fria...
(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas das ervas...)

Oh, não há solidão nas neblinas de inverno
Pela erma planície...

E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em silêncio...
Agora sei que vives mais
Porque começo a sentir a tua presença, grande como o silêncio...
Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo.
Já me confundo contigo.

Cristovam Pavia in "Poesia", Publicações D. Quixote, Lisboa, 2010, p 31.
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06/11/10

" Une nuit,/ si tu appelles mon nom,/ je t'inviterai au pays des rêves."

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"Une nuit..."
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Une nuit,
de l'au-delà des ténèbres
comme une étoile
je viendrai vers toi.
Sur les ailes du vent coureur du monde,
je viendrai te chercher avec joie.
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Comblée de tendresse et d'ivresse,
comme un beau jour d'été,
je t'offrirai une jupe pleine
de tulipes sauvages de la montagne.
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Une nuit,
je frapperai à ta porte,
ton coeur tremblera dans ta poitrine.
La porte s'ouvrira et mon corps impatient
glissera dans tes bras chauds.
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Dans ces instants d'ivresse,
tu ne verras plus dans mes yeux
la moindre trace d'évasion.
Tu ne verras plus dans mes yeux
le regard éteint d'une enfant
en bataille avec la honte.
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Une nuit,
si tu appelles mon nom,
je t'inviterai au pays des rêves.
Je danserai comme les sirènes
sur les vagues de ton souvenir.
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Une nuit,
mes lèvre assoiffées
se brûleront avec joie
dans le feu de tes lèvres.
Mes yeux fixeront leur espoir
sur la destination de ton regard.
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Une nuit,
de Vénus, la déesse charmeuse,
j'apprendrai les jeux de l'amour.
Comme une lumière
née du ventre des ténèbres,
j'allumerai un feu auprès de toi.
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Ô toi,
les yeux rivés sur le chemin!
C'est moi qui viendrai vers toi.
Sur les ailes du vent coureur du monde,
je viendrai te chercher avec joie.
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Forough Farrokhzad in "La Conquête du Jardin (Poèmes 1951 - 1965)",
Lettres Persanes, Paris, 2008, pp 57 - 58
(Traduzido do persa para o francês por Jalal Alavinia
com a colaboração de Thérèse Marini).
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05/11/10

"Liberta-te da pedra! Rebenta/ a caverna que te escraviza! Lança-te "

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"Cariátide"

Liberta-te da pedra! Rebenta
a caverna que te escraviza! Lança-te
extasiada pela campina! Escarnece das cornijas -
olha: pela barba do sileno ébrio,
do seu sangue eternamente fervilhante
sonoro único perpassado de ecos,
goteja vinho no seu sexo!

Cospe na colunomania: mãos senis
e tocadas da morte as ergueram tremendo
para céus sombrios. Desmorona
os templos ante a nostalgia do teu joelho
a apetecer a dança!

Estende-te, desabrocha, oh, cobre do sangue
de grandes feridas o teu canteiro macio:
olha, Vénus com as suas pombas engrinalda
de rosas as ancas, como porta do amor -
olha o último sopro azul deste verão
que sobre marés de sécias é levado
às longes margens castanhas de folhagem;
olha o dealbar desta última hora, voluptuosamente enganadora,
da nossa meridionalidade
abobadada.

Gottfried Benn in " A Alma e o Caos, 100 poemas expressionistas", Relógio D'Água Editores,
Lisboa, Lisboa, 2001, p 267 (Selecção e Tradução de João Barrento).
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Lançamento de livro.


. Dia 27 de Novembro, pelas 16h00 - lançamento do livro "Regresso"
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Com:
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Introdução de ............ .......... Érico Nogueira
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Posfácio de ........................... Paulo Franchetti
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Texto da contracapa de ....... Marta López Vilar
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Quadro da capa de ............... Eduarda Costa Ferraz
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EM BREVE MAIS PORMENORES SOBRE A APRESENTAÇÃO DESTE LIVRO.
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04/11/10

" diz-me como farei para esquecer-te. "

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" Presumível Mensagem de Dido a Eneias"

Do coração me brotam as palavras
espontâneas,
resplandecentemente verdadeiras.

Se digo que te amo é que te amo.

Tu, que subitamente me esqueceste,
diz-me como farei para esquecer-te.

Norberto Ávila in "Percurso de Poeta", Ed. Autor, Lisboa, 2000, p 36.
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"Querida Bruna./ agora que (talvez) um ataque cardíaco te fez parar/ a batida ao teu coração/ puro e inocente "

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Querida Bruna:
depois de muito
contar recontar repisar
a minha impotência
para lutar contra a surda avareza
dos que nos obrigam a afastarmo-nos
.
depois de - passados 2 anos-
te recordar revisitar brincar
e mimar
saudosa
à distância
na impotente distância
.
depois de
- passados estes
dois
anos-
te reconhecer em cada cão que parava a cheirar-me
botas sapatos casacos
cada cão que
meloso
me pedia uma festa
um mimo
uma atenção
.
depois de todos estes
dois
anos
de sublime
acção
eis que me começaste a aparecer
nos sonhos.
.
não estranhei
convicta de que a razão
quadrada
me explicava, assim,
a emergência
dos recônditos e la
tentes sentimentos
saudosos
- de saudosa impotência.
Erro meu, impotente razão.
.
Foi à chegada ao centro comercial
- e só aí -
que percebi.
.
Eu explico melhor:
entrei
e dei de caras com as duas queridas amigas
que te ajudaram a melhorar de vida.
.
cumprimentámo-nos
- nada de novo
nem de estranho-
até que eu disse que era bem curioso encontrá-las
quando andava a pensar ir visitar-te:
"gostava de ir ver a Bruna", disse.
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parca razão
mente impotente
distraída do essencial.
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"a Bruna? deixe lá! há-de vir a ter outra cadelinha!"
ao que respondi, repetindo:
" a sério: queria mesmo, estou decidida
a ir vê-la."
.
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silêncio.
sábio.
(que eu não escutei)
.
.
"a Bruna?... maasss... a Bruna morreu!"
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e continuámos a conversa, amigavelmente
- eu, grata, gratíssima às almas que te acolheram.
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Querida Bruna.
agora que (talvez) um ataque cardíaco te fez parar
a batida ao teu coração
puro e inocente
cumpre-me
dizer:
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Obrigado, Mãe Natureza,
por cuidares, agora, da Bruna.
.
Obrigada, Bruna,
por me teres ensinado tanto
da tua
Mãe
Natureza.
.
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Maria Toscano (Inédito) - Coimbra, Parque Verde, 1 Novembro/ 2010.
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03/11/10

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               "Grodek"

Ao entardecer, as florestas outonais
ecoam de armas mortíferas, e as planícies douradas
e os lagos azuis, por sobre os quais rola
um sol sombrio; a noite abraça
guerreiros moribundos, o lamento selvagem
das suas bocas destroçadas.
Mas, em silêncio, num fundo de salgueiros,
juntam-se nuvens rubras, onde um Deus irado habita;
e o sangue derramado, e frescura lunar;
todos os caminhos desembocam em negra podridão.
Sob dourada ramagem da noite e sob estrelas
a sombra da irmã vacila pelo bosque de silêncio,
para saudar os espíritos dos heróis, as cabeças ensanguentadas;
e levemente, nos canaviais, soam as flautas sombrias do outono.
Oh, dor orgulhosa! Vós, brônzeos altares,
Uma dor portentosa alimenta hoje a chama escaldante do espírito,
Os filhos que ainda hão-de nascer.

Georg Trakl in " A Alma e o Caos - 100 poemas expressionistas", Relógio D'Água Editores,
Lisboa, 2001, p 241 (Selecção e Tradução de João Barrento).
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02/11/10

" enquanto o tempo passa e não me traz/ aquele por quem sou rainha e serva."

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No tempo bordarei a minha dor
no tempo (esse tapete) bordarei
o tempo que não passa e que passei
fiando e desfiando por amor.

No tempo estas perguntas: onde e quando?
No tempo que se vai e não me leva
àquele por quem sou rainha e serva
fiando por amor e desfiando.

No tempo que se vai e se repete
no tempo bordarei o meu tapete
num fazer-desfazer que me desfaz.

Enquanto o tempo vai e não me leva
enquanto o tempo passa e não me traz
aquele por quem sou rainha e serva.

Manuel Alegre in " 30 Anos de Poesia", Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1997, pp 283 - 284.
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Nota - Este soneto é parte das falas de Penélope no livro de Manuel Alegre "Um barco para Ítaca" (1971), livro esse depois incluído nesta Antologia. Uma curiosidade: a Ditadura estava de tal modo podre, que a primeira vez que li "Um barco para Ítaca" cumpria eu o serviço militar e a obra circulava por aquelas bandas, em fotocópias.
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01/11/10

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      "Soneto Dominical"


Já não me aflige mais a pasmaceira
do domingo. Meus filhos mundo afora
e eu em casa pensando. A vida inteira
ensina-me a ser só. Não é agora

que eu hei-de reclamar. Segunda-feira
há-de chegar. Há-de chegar a hora
em que se apague a chama derradeira;
em que a vida me diga: vá-se embora.

Tudo tão natural. A árvore morta
já não abriga pássaros nos ramos
que, pouco a pouco, vão caindo ao chão.

Amei mal as mulheres. Mais amamos
nós mesmos, nosso ofício. Pouco importa
a vida; este domingo; a solidão.

Ildásio Tavares in "As Flores do Caos", Editora Labirinto, Fafe, 2009, p 31.
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Ildásio Tavares (25/1/1940 - 31/10/21010)

Da esquerda para a direita: Maria do Sameiro Barroso, Victor Oliveira Mateus, Luís Graça, António José Queirós e Ildásio Tavares, na Livraria "Pó dos Livros", em 2009, durante o lançamento do livro As Flores do Caos.

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Faleceu no passado dia 31 de Outubro, vítima de doença súbita, o Poeta brasileiro Ildásio Tavares. Pertencente à geração da Revista da Bahia, Ildásio Tavares era formado em Direito e em Letras, fez depois o mestrado na Southern Illinois University, o doutorado na Universidade Federal do Rio e o pós-doutorado na Universidade de Lisboa. Tendo leccionado Literatura Portuguesa na Universidade da Bahia, a sua obra estendeu-se por vários géneros: poesia, romance, teatro, ensaio, jornalismo. O seu primeiro livro de poesia, Somente um Canto, data de 1968 e em 2009 esteve em Lisboa para assistir ao lançamento do seu livro As Flores do Caos, publicado pela Editora Labirinto.
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E pronto daqui para a frente é quase
fui de um lado ao outro de imagens
lembrei beijinhos e as fotografias
percebi que tudo acabou depois de mudar
e fui ganhando os dias sempre tarde
à margem e na mesma maneira
tão quieta que agora espanta
e o durar é o segredo mas
hoje é o primeiro dia sem ti mesmo
e pronto de noite a família soube
começava a morrer a arranjar espaço
onde caísse devagar a terra e fofa
centenas e verdes montanhas em frente e
ao meio meu corpo enterrando o teu
são centenas e milhares de montes verdes
são trezentos e tal dias a passar a toda a gente
lindas as estrelas a ver e as nossas canções
perfeitas as canções a caminho de casa
e pronto olha deixo-te aqui muita coisa
eu acho que te deixo aqui mesmo tudo
vi também ao lado terras devastadas
árvores e casas tombadas o fim do mundo
uma palma vulnerável como numa caixinha
e dobrando lá dentro minha mão vazia
hoje é portanto esse dia
acho que uma coisa muito grande é isto
acabar o Natal comove um sorriso selvagem
e as vozes este dia em mais miúdos
mas eu acho que é mesmo tudo isto
olho longe o mar torto e encapelado
e fico a arrumar as tuas coisinhas

Hugo Milhanas Machado in " As Junções", Ed. Artefacto, Lisboa, 2010, pp 77 - 78.
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