... a Filomena consolou-a, não sei, disse, o seu pai apaixonou-se e viveu um grande amor, uma maravilha, trocou de país em nome do seu amor, outra maravilha, aprendeu uma nova língua, uma nova cultura, o que poucos homens têm o privilégio de fazer, nova maravilha, depois viveu feliz vinte anos, acreditando no comunismo, presumindo-se na vanguarda do mundo, vinte anos de existência maravilhosa, em seguida deu-se a queda, a felicidade tornou-se infelicidade, com a mesma força, a mesma intensidade, o gosto em desgosto, a alegria em tristeza, em suma, a ilusão em desilusão - acho que o João Carreira da Mota foi um homem cheio de sorte na vida, a maioria de nós vive mediocremente, repetindo a eterna rotinazinha do trabalho, ao almoço uma dose de bacalhau à lagareiro, depois o trabalho, ao jantar uma posta de salmão, à noite muita televisão, o círculo repete-se no dia seguinte, e no dia seguinte, o seu pai, disse a Filomena, foi um homem de vida cheia, a Yanna não tem por que chorar, o seu pai era um nada em Sintra, um canteirozito, igual a qualquer outro, tornou-se tudo em Sófia, dono da vida e do futuro, e voltou a ser nada em Plovdiv, atravessou o ciclo da existência: nada, tudo, nada, nem sofreu o nada decadente da velhice, a maioria de nós percorre a existência sobrevivendo no nada: nada, nada e nada. Yanna sorriu, agradeceu à Filomena, retirou da maleta de estudante um embrulho irregular, de papel verde amarrotado, usado, abriu-o, o tinteiro de prata, velho, carcomido, mostrou-nos, devia devolvê-lo ao Estado português, não é meu, eu reembrulhei o tinteiro, de valor insignificante, percebia-se que não era de prata, as avarezas de Salazar, ferro disfarçado de prata, uma peliculazinha de prata, meti-o na maleta de Yanna, guarde-o, disse, conte aos seus filhos a história do avô, mostrando-lhes o tinteiro que viera de Portugal, eles vão gostar de saber a história de João Carreira da Mota, o soldado revolucionário que por amor veio para a Bulgária.
Levantámo-nos, Yanna passou-me o envelope com as memórias da rainha D. Amélia, Miguel, disse, entregue na Torre do Tombo, no espólio de Oliveira Salazar, donde nunca devia ter saído, passou-me um envelope para a mão, abri, a declaração da descoberta do manuscrito após a morte do pai, assumo a responsabilidade; muito bem, disse eu, aproximámo-nos da porta envidraçada, a empregada abriu-a, curvada até aos joelhos, cheia de salamaleques bizantinos, espreitando gorjeta, que dei, farfalhuda, enfatizando a superioridade do Ocidente, depedimo-nos, a Filomena ofereceu a casa em Sintra a Yanna, sempre que viesse a Lisboa, ela não podia fazer o mesmo, a casa da avó era um cubículo de uma assoalhada, ela dormia na sala, num sofá, beijámo-nos, Yanna olhou-me fixamente, a sua compostura gélida tremeu, emocionada, uma lâmina de água sulcava os seus olhos, agarrou-me o braço, comovida, Miguel, disse, tenho de ser sincera, os meus pais não morreram num acidente de viação, suicidaram-se, jogando o carro por uma ravina de 100 metros, abraçaram-me muito fortemente no dia da partida para Plovdiv, beijaram-me demoradamente, disseram-me que este tempo não era já o seu, aconselharam-me a não ficar presa a cadáveres, eu não tinha percebido, o meu pai depôs as mãos nos meus ombros e disse, solenemente, faz a tua vida sem te preocupares com a política, calhou-nos um tempo em que só os medíocres e os oportunistas vivem para a política, Yanna, disse-me o meu pai, muito sério, foram estas as últimas palavras que lhe ouvi, não fiques presa a cadáveres.
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Miguel Real in "As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia", Publicações Dom Quixote,
Alfragide, 2010, pp 54 - 55.
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