09/11/10

"Mas a violência não consiste tanto em ferir e em aniquilar como em interromper a continuidade das pessoas... "

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Facilmente se concordará que importa muitíssimo saber se não nos iludiremos com a moral.
A lucidez - abertura de espírito ao verdadeiro - não consiste em entrever a possibilidade permanente da guerra? O estado de guerra suspende a moral; despoja as instituições e as obrigações eternas da sua eternidade e, por conseguinte, anula, no provisório, os imperativos incondicionais. Projecta antecipadamente a sua sombra sobre os actos dos homens. A guerra não se classifica apenas - como a maior entre as provas de que vive a moral. Torna-a irrisória. A arte de prever e de ganhar por todos os meios a guerra - a política - impõe-se, então, como o próprio exercício da razão. A política opõe-se à moral, como a filosofia à ingenuidade.
Não há necessidade de provar por meio de obscuros fragmentos de Heráclito que o ser se revela como a guerra ao pensamento filosófico; que a guerra não o afecta apenas como o facto mais patente, mas como a própria patência - ou a verdade - do real. Nela, a realidade rasga as palavras e as imagens que a dissimulam para se impor na sua nudez e na sua dureza. Dura realidade (eis um verdadeiro pleonasmo!), dura lição das coisas, a guerra produz-se como a experiência pura do ser puro, no próprio instante da sua fulgurância em que ardem as roupagens da ilusão. O acontecimento ontológico que se desenha nesta negra claridade é uma movimentação dos seres, até aí fixos na sua identidade, uma mobilização dos absolutos, por uma ordem objectiva a que não podemos subtrair-nos. A prova de força é a prova do real. Mas a violência não consiste tanto em ferir e em aniquilar como em interromper a continuidade das pessoas, em fazê-las desempenhar papéis em que já se não encontram, em fazê-las trair, não apenas compromissos, mas a sua própria substância, em levá-las a cometer actos que vão destruir toda a possibilidade de acto. Tal como a guerra moderna, toda e qualquer guerra se serve já de armas que se voltam contra o que as detém. Instaura uma ordem em relação à qual ninguém se pode distanciar. Nada, pois, é exterior. A guerra não manifesta a exterioridade e o outro como outro; destrói a identidade do Mesmo.
A face do ser que se mostra na guerra fixa-se no conceito de totalidade que domina a filosofia ocidental. Os indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem eles saberem. Os indivíduos vão buscar a essa totalidade o seu sentido (invisível fora dela). A unicidade de cada presente sacrifica-se incessantemente a um futuro chamado a desvendar o seu sentido objectivo. Porque só o sentido último é que conta, só o último acto transforma os seres neles próprios. Eles serão o que aparecerem nas formas, já plásticas, da epopeia.
A consciência moral só pode suportar o olhar trocista do político se a certeza da paz dominar a evidência da guerra. Uma tal certeza não se obtém por simples jogo de antíteses. A paz dos impérios saídos da guerra assenta na guerra e não devolve aos seres alienados a sua identidade perdida. É necessária uma relação originária e original com o ser.
Historicamente, a moral opor-se-á à política e terá ultrapassado as funções da prudência ou os cânones do belo, para se pretender incondicional e universal quando a escatologia da paz messiânica vier sobrepor-se à ontologia da guerra. Os filósofos desconfiam dela. Sem dúvida, tiram dela partido para anunciarem também a paz; deduzem uma paz final da razão que faz o seu jogo no meio das guerras antigas e actuais: fundam a moral na política. Mas, adivinhação subjectiva e arbitrária do futuro, fruto de uma revelação sem evidências, tributária da fé, a escatologia depende, para eles, muito naturalmente da Opinião.
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Emmanuel Levinas in "Totalidade e Infinito", Edições 70, Lisboa, 2000, pp 9 - 10
(Tradução: José Pinto Ribeiro - Revista por Artur Mourão).
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