26/11/10

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99

Lembro-me ainda de outra lição do meu pai.
Vigiai os crápulas - dizia - e vigiai os homens
que falam manso; há no excesso de fragilidade
exibida a preparação de uma maldade, pelo menos isso entendi.
Percebe os homens, caro Bloom, dizia-me o meu pai,
alguém se inclinará sobre a tua campa
para recolher rosas para a sua jarra.

100

Ninguém mata de tão longe como um homem,
e poderás dizer que esse facto prova
apenas a sua melhor pontaria ou tecnologia,
mas prova também a estratégia de uma espécie.
Não se ama a essa distância, por exemplo.

101

A condição humana é de uma mesquinhez absurda.
Os animais - um cavalo, por exemplo - falham quando escorregam
(a lógica das suas patas velozes é a rapidez
que não cai), para os homens em guerra, pelo contrário,
falhar é falhar na pontaria ao alvejar o inimigo
(e o massacre visto de longe parece apenas
uma obra-prima do xadrez).

(...)

108

Forte economia e fraca espada.
E eis o que é evidente: há mais inimigos
em tempo de paz do que em tempo de guerra.
Em tempo de paz cada exército
tem uma dimensão familiar, por exemplo,
sete elementos ( no caso de um casal
com cinco filhos) e o resto são inimigos.
São as minhas contas;
que posso fazer? - há muito perdi a ingenuidade.

109

A boa imagem do coração deve-se, em grande parte,
ao seu eficaz esconderijo. Sabe melhor isso
do que eu, Jean M. Os outros
são apenas alguém que nos olha.
Vigiar ou seduzir. Tudo o resto é cegueira.

Gonçalo M. Tavares in "Uma Viagem à Índia", Editorial Caminho,
Alfragide, 2010, pp 151 - 154.
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