13/06/13



    A chave do sucesso inesperado de The Crying Game ( "o jogo das lágrimas"), filme de Neil Jordan, talvez se deva à variação que propõe sobre o motivo do amor cortês. Lembremos as grandes linhas da acção: Fergus, militante do IRA que tem à sua guarda um soldado britânico negro feito prisioneiro, liga-se de amizade com este; o soldado, no momento em que se prepara para morrer, pede a Fergus que vá visitar a sua noiva, Dil, cabeleireira nos subúrbios de Londres e lhe entregue as suas últimas lembranças. Depois da morte do soldado, Fergus abandona o IRA, instala-se em Londres, arranja um trabalho de pedreiro e vai visitar a amada do soldado, uma bela mulher negra. Apaixona-se por ela, mas Dil mantém uma espécie de distância irónica e soberana. Por fim, Dil acaba por ceder perante os seus avanços, mas antes de se deitarem os dois na cama, sai do quarto por um instante e, ao voltar, traz vestida uma túnica transparente; no mesmo instante em que relanceia avidamente o seu corpo, Fergus detecta nele um pénis: "ela" é um travesti. Frustrado, repele-a com brutalidade. Comovida e em lágrimas, Dil explica-lhe que pensara que ele conhecia desde o início a realidade das coisas (na sua obsessão por Dil, o protagonista - à semelhança do público - não leva em conta numerosos detalhes eloquentes (...). Esta cena de encontro sexual falhado estrutura-se como a inversão rigorosa da cena descrita por Freud como trauma primitivo do fetichismo: o olhar da criança, ao deslizar pelo corpo feminino até ao lugar do órgão sexual, surpreeende-se ao nada encontrar onde esperava ver alguma coisa (um pénis). No caso de The Cring Game, o choque produz-se quando o olho encontra alguma coisa quando nada esperava encontrar.
    Na esteira desta revelação dolorosa, a relação entre os dois inverte-se: descobrimos que Dil está apaixonadamente enamorada de Fergus, embora saiba que o seu amor é impossível. De Dama caprichosa e soberana, transforma-se na figura patética de um rapaz delicado e sensível que experimenta um amor desesperado. É neste ponto que emerge o verdadeiro amor, amor como metáfora no sentido preciso que lhe dá Lacan; somos testemunhas do momento sublime em que erómenos (o amado) se transforma em erastés (o amante), estreitando a mão de quem o ama e "retribuindo o seu amor". Este momento designa o "milagre" do amor, o momento da "resposta do real"; nessa medida, talvez nos permita compreender o que pensa Lacan ao insistir em que o próprio sujeito tem o estatuto de uma "resposta do real". Ou seja, até ao momento da inversão, o amado tem o estatuto de um objecto: é amado por qualquer coisa que está "nele mais do que ele próprio" e da qual ele não tem consciência; nunca me é possível responder à pergunta: "Que sou eu enquanto objecto para o outro? Que vê o outro em mim que causa o seu amor?". Confrontamo-nos, portanto, com uma assimetria: não só uma assimetria entre sujeito e objecto, mas uma assimetria que significa mais radicalmente o desacordo entre o que o amante vê no amado e o que o amado sabe de si.
    Deparamos aqui com o inevitável beco sem saída que define a posição do amado: o outro vê alguma coisa em mim e quer alguma coisa de mim, mas eu não posso dar-lhe o que não possuo, ou, como afirma Lacan, não há relação entre o que o amado possui e o que falta ao amante. A única maneira que o amado tem de escapar a este impasse é estender a sua mão ao amante e "retribuir o amor" - ou seja, trocar, num gesto metafórico, o seu estatuto como amado pelo estatuto de amante. Esta inversão designa o ponto de subjectivação: o objecto do amor torna-se sujeito no momento em que reponde ao chamamento do amor. E é só por meio desta inversão que o amor autêntico emerge: estou realmente enamorado, não quando estou simplesmente fascinado pelo ágalma do outro, mas quando experimento o outro, o objecto de amor, como frágil e perdido, como sentindo que "isso" lhe falta, e o meu amor sobrevive, todavia, a essa perda.
    Devemos pôr especial atenção em não descuidar a importância desta inversão: ainda que tenhamos agora dois sujeitos amantes em vez da dualidade inicial do amante e do amado, a assimetria mantém-se, uma vez que foi o próprio objecto a confessar a sua falta por intermédio da sua subjectivação.
    (...) E talvez no próprio amor cortês, o longamente esperado momento da realização mais alta, o momento da concessão pela Dama da Gnade, da mercê ao seu servidor, não seja a rendição da Dama, o seu consentimento no acto sexual ou qualquer misterioso rito de iniciação, mas simplesmente um sinal de amor da sua parte, esse "milagre" do Objecto que responde, estendendo ao suplicante a sua mão.
    E assim, para voltarmos a The Crying Game, que Dil se encontra doravante disposta a fazer seja o que for por Fergus, enquanto este se sente cada vez mais comovido e fascinado pelo carácter absoluto e incondicional do amor dela, de tal maneira que supera a sua aversão e continua a reconfortá-la...
 
 
   Zizek, Slavoj. As Metástases do Gozo, Seis Ensaios Sobre a Mulher e a Causalidade. Lisboa: Relógio D'Água, 2006, pp 34 - 36.
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