26/06/13

 
 
                               
 
 
   Se eu fechar a escotilha ficas todo lá fora, sozinho contigo, sem deuses que te aturem, és demasiado grande para chegares a mim, não tens dedos que me agarrem nem olhos de ver ao perto. As tuas ondas poderiam ser rugas se eu quisesse, sabes que o posso fazer? És um bruto desajeitado que esmaga os brinquedos e faz birras a fingir ódio. Entretanto nós passamos, baixamos os olhos e rezamos baixinho para que tu vejas e tenhas pena, mas eu rio por entre as rezas e tu não me vês.
   Gosto de te ter perto, assim como estás agora, ao alcance de te querer. Se eu quisesse juntava-me a ti e seria mar também. Mas não quero, ainda não. Tenho os meus deuses para inventar e acredito ainda em cores que não são tuas. Um dia, um dia é o tempo de tudo o que haveríamos de ter sido, e eu ainda tenho dias para mundos maiores do que tu. Se eu quisesse, tu eras um segundo pequeno de uma vida por fazer, sabes que o posso querer?
   Agora durmo, agora és noite e tens a cor de tudo o resto ( o mar não dorme, pois não?). Não sonhas, mas és sonhado e não há nada que possas fazer.
 
 
  Camarneiro, Nuno. No Meu Peito Não Cabem Pássaros. Alfragide: Pub. Dom Quixote, 2011, p 18.
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