As ruas à noite são mais compridas, sabe-se que são. À falta de gente, as ruas esticam-se em espreguiçares de alcatrão. Os homens acalorados sabem destas e de outras coisas, mas calam-se num conluio de silêncio. Um homem acalorado caminha por uma rua e depois por outra e vai por onde vai sem saber. As ruas guiam os homens, mais do que eles se guiam a si próprios.
Uma aragem, uma luz que promete o que nunca deu e vêem-se os homens vogando as suas barcas pesadas. Peixes cegos de fomes secretas, homens que seguem ruas com vontades de comer. Perdidos por sem. Sem saber, sem ter, sem querer, sem nada a perder.
Um homem perde-se e crê encontrar-se, são assim os homens. À noite as coisas pequenas fazem grandes achados porque os olhos estão mirrados e há fome por todo o lado. Aqui me perco, aqui te encontro, queres olhar-me nos olhos? Diz-me o que vês e depois mente-me com quantos tens tu na cara. Ficamos quites, eu vejo o que não existe e tu que dizes o que não pensas, ninguém perde e todos ganham. Todos que somos eu e tu, é noite, somos tão parecidos... Somos? Somos, estamos aqui.
Camarneiro, Nuno. No Meu Peito Não Cabem Pássaros. Alfragide: Pub. Dom Quixote, 2011, p 118.
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