09/12/10

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Cheguei a Fátima ao meio-dia, o santuário em obras, compressores e betoneiras cessavam o seu ruído sacrílego, os operários estiravam-se entre pilhas de pranchas de madeira e montículos de areia e cimento, sorviam da lancheira feijão seco com uma colher; olhar embrutecido pelo vinho, um corredor especial esperava-me, desimpedido, o crucifixo na mão, as contas enroladas no antebraço, o terço de prata oferecido por Pio XII, em quem pouco confiei, um Papa titubeante, severamente indeciso, esquecido dos princípios éticos cristãos, mais italiano do que supremo representante de Deus na terra, percebia-se a vaidade nas sedas imaculadas dos paramentos, nas sotainas engomadas e superiormente vincadas, nos sapatos vermelhos da tradição, na barba dupla ou triplamente escanhoada, diferente da do seu antecessor, Pio XI, a casula amarrotada, a mitra tombada na cabeça, Pio XII fora núncio na República de Weimar, conhecera Hitler pessoalmente, assistira à crescente subida eleitoral do Partido Nacional-Socialista, às manifestações medievais do ódio germânico contra os judeus, os ciganos e os homossexuais, não levantou o dedo em nome dos desprotegidos, dos que sofriam, dos humildes, carregados em camiões para abrirem estradas a picareta, passavam sob a varanda da nunciatura, roncando o seu poder maligno, nada fazia, nada fez, devia tê-lo feito, em nome dos antigos erros da Igreja, da ética universal, devia ter estado ao lado do Bem, mestre em palavras dúbias, como Pôncio Pilatos, orientava sem orientar, devia ter comandado o povo católico contra a Besta, Hitler, não o fez, assemelhava-se àqueles que em Portugal me tinham dito que entre a foice e o martelo e a cruz gamada, esta ainda continha a cruz, Hiltler seria recuperável com o tempo, os judeus não, os comunistas menos, foi de um seu confidente a famosa frase "o comunismo, um inimigo a exterminar", título de inúmeros jornais e livros católicos, o medo dos vermelhos abriu a porta a Mussolini e a Hitler, Pio XII considerava o socialismo, o comunismo e o anarco-sindicalismo consequências degeneradas do liberalismo e do ateísmo europeus, forçoso liquidar este, o capitalismo, para que por asfixia natural morressem socialistas e comunistas, Hitler, a Besta, na mente maquiavélica da Igreja, constituía o instrumento de liquidação do capitalismo, ficariam enfim frente a frente a Besta e a Cruz, o fim dos tempos, o Armagedão, todo o fervor da Igreja deveria assentar na morte do capitalismo, condenara os padres da Acção Católica que evangelizavam os operários, a Igreja devia retirar-se do mundo e deixar o mundo autoliquidar-se, no final emergiria triunfante, recolhendo os restos, preparando uma nova evangelização, um novo mundo, sob os cadáveres de milhões de europeus. As minhas relações com a Igreja foram sempre heterodoxas, em Portugal tinha dificuldade em relacionar-me com os bispos de ventre inchado como uma panela de gorgulho, especialistas em temperar refogados e apreciar o ponto de açúcar no caramelo, meu pai e avô recordavam como a Igreja se ratraíra no tempo do exílio, reduzida a uma relação formal de apoio,(...) aconteceu o mesmo na instauração da república portuguesa, bem podíamos, eu e o Manuel, ficar à espera do apoio da Igreja, foi preciso o negreiro Afonso Costa ter expulsado dois bispos para a Santa Sé cortar relações diplomáticas com Portugal, defendiam-se, como instituição, não defendiam a Monarquia, é assim que vejo a instituição Igreja, digo instituição, distinguindo fortemente a mensagem de Jesus da cúpula reitora da Igreja, defensora em exclusivo dos seus interesses, vim a este descampado de Fátima em busca do sagrado, o sentimento de protecção espiritual que experimentara na infância, no tempo de Leão XIII, o único Papa de quem me senti próxima, adaptou a Igreja aos tempos modernos, a encíclica Rerum Novarum, Das Coisas Novas, jogou a Igreja para os bairros dos trabalhadores, as fábricas, defendendo um capitalismo social de aproximação aos pobres, de comiseração para com estes (...) tanta esperança tivera eu de que o Luís Filipe, se tivesse chegado a governar, se a monarquia se tivesse prolongado mais dez anos, tornasse Portugal um país exemplar, como as monarquias escandinavas e inglesa, que libertaram os seus povos da fome e da ignorância...
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Miguel Real in "As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia", Publicações Dom Quixote,
Alfragide, 2010, pp 246 - 249.
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