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Desejava agora concentrar-me nos campos da Alta Silésia, a "Ruhr do Leste": o KL Auschwitz e as suas numerosas dependências (...). Trinta quilómetros antes de Auschwitz, já havia postos de controle SS que verificavam cuidadosamente os nossos papéis. Chegávamos depois ao Vístula, largo e turvo. Avistava-se ao longe a linha branca dos Beskides, pálida, tremulando na bruma do Verão (..). Um posto de controle barrava a entrada da Kasernestrasse; a seguir, erguia-se uma torre de vigia de madeira junto ao muro de betão cinzento do campo, coberto de arame farpado, por detrás do qual se perfilavam os telhados vermelhos dos barracões. A kommandantur ocupava o primeiro dos três edifícios entre a rua e o muro, uma construção atarracada com a fachada de estuque, e um alpendre subido flanqueado por lampiões de ferro forjado. Fui prontamente conduzido à presença do kommandant do campo, o Obersturmbannfuhrer Hoss. Este oficial, depois da guerra, adquiriu uma certa notoriedade, em razão do número colossal de pessoas a quem foi dada a morte sob a sua responsabilidade e também das memórias francas e lúcidas que redigiu na prisão, por ocasião do seu processo. Todavia era um oficial absolutamente típico do IKL, trabalhador, obstinado e limitado, sem fantasia nem imaginação (...). "O campo está à sua disposição." Ou melhor, os campos, porque Hoss geria toda uma rede de KL: o Stammlager, o campo principal que se estendia por detrás da Kommandantur, mas também Auschwitz II, um campo para prisioneiros de guerra transformado em campo de concentração, e situado alguns quilómetros a seguir à gare, na planície, nas imediações da antiga aldeia polaca de Birkenau (...). Hoss propunha-me que começássemos por Auschwitz II: um transporte RSHA chegava de França, ele queria mostrar-me o processo da selecção. Esta tinha lugar na plataforma da gare de mercadorias, a meio caminho entre os dois campos, dirigida por um médico da guarnição, o Dr. Thilo. O médico, quando chegámos, estava à espera no extremo do cais, com guardas Waffen-SS e cães, além de equipas de detidos com a roupa listada que arrancavam, quando nos viam, os gorros das cabeças rapadas. (...) Depois o comboio aproximou-se e abriram-se as portas do vagões de mercadorias. Contava com uma irrupção caótica: mas apesar dos gritos e do ladrar dos cães, as coisas passaram-se de maneira relativamente ordenada. Os recém-vindos, visivelmente desorientados e exaustos, surgiam dos vagões por entre um abominável fedor a excrementos (...) tinham de abandonar as suas bagagens e alinhar em duas fileiras, os homens para um lado, as mulheres e as crianças para outro; e enquanto as duas alas avançavam arrastando-se na direcção de Thilo, e Thilo separava os aptos para o trabalho dos inaptos, enviando as mães para o mesmo lado que os seus filhos a caminho dos camiões que esperavam um pouco mais longe (...). A maior parte daquelas pessoas falava, em voz baixa, em francês; outras, sem dúvida judeus naturalizados ou estrangeiros, em diversas línguas; escutava aquelas palavras que compreendia, as perguntas, os comentários; esta gente não fazia a mínima ideia do sítio onde estava, nem daquilo que a esperava.(...) A selecção estava a chegar ao fim: no total durara menos de uma hora.(...) Virei-me para Hoss: -" Recebe muitos comboios do Ocidente?" - "De França, este era o quinquagésimo sétimo. Tivemos vinte da Bélgica. Da Holanda, já não me lembro. Mas estes últimos meses, temos tido sobretudo transportes da Grécia.(...) Desde Fevereiro, tenho também um campo familiar para os ciganos." -" Um campo familiar?" - "Sim. É uma ordem do Reichfuhrer. Quando decidiu a deportação dos ciganos do Reich, quis que não fossem seleccionados, que pudessem permanecer juntos, em família, e que não trabalhassem. Mas muitos deles morrem de doença. Não resistem." (...) Hoss estacionou junto ao edifício da direita, no meio de uma mata de pinheiros esparsos. Em frente, num relvado bem cuidado, mulheres e crianças judias acabavam de se despir, vigiadas por guardas e prisioneiros de roupa listada. As roupas iam-se empilhando um pouco por toda a parte, devidamente separadas (...). Um dos detidos gritava: "Vamos, depressa, depressa, para o duche!" (...) "É como em Treblinka e Sobibor", comentou Hoss. "Até ao último minuto são levados a crer que vão ser desparasitados. Na maior parte dos casos, tudo se passa muito calmamente." Começou a explicar-me como se dispunham as coisas: "Ali adiante, temos mais dois crematórios, mas muito maiores: as câmaras de gás são subterrâneas e podem receber até duas mil pessoas. Aqui as câmaras são mais pequenas e há duas por Krema: é muito mais prático para os transportes pequenos." -" Qual é a capacidade máxima?" - "Em termos de gaseamento, praticamente ilimitada; a limitação maior é a da capacidade dos fornos. Foram concebidos especialmente para nós pela firma Topf. Estes têm oficialmente uma capacidade de 768 corpos por instação para um período de vinte e quatro horas. Mas podemos lotá-los até mil ou até mil e quinhemtos se necessário." (...) perguntei, por cortesia: "Quanto tempo leva isto, ao todo?" Mengele respondeu com a sua voz melodiosa e suave: "A Sonderkommando abre as portas ao fim de meia hora. Mas deixa-se passar tempo suficiente para que o gás se disperse. Em princípio, a morte chega em menos de dez minutos. Quinze, quando está mais húmido,"
Jonathan Littell in "As Benevolentes", Publicações Dom Quixote, Lisboa,
2007, pp 550 - 556 (Tradução: Miguel Serras Pereira).
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