29/11/09


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"Adriano habla al cuerpo muerto de Antínoo"
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Ya nada persigo, nada se presenta ante mi puerta.
Ninguna juventud sentí sino la tuya,
ninguna ciudad, ningún otoño desbordó
por mis manos el cabello de la luz,
los misterios del aire.
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Duermen contigo aquella sangre derramada
en sueños, la noche sin refugio
con redes de oro, el perfume
cuajado de amapolas en tus labios
mientras yo contemplo la patria destruida de tu cuerpo,
recién abandonado.
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Contemplo al dios que me arrojó a la vida
yaciendo en la sombra inmensa
de lo que ya no tendré...
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La muerte ha llegado al mundo, mi dios,
y nada ya podrá espantar mi frío.
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Marta López Vilar In "La palabra esperada", Ediciones Hiperión,
Madrid, 2007, p 25.
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"Reconstrucción después del miedo"

I. LA VOZ

Dame tu voz, que este miedo
renunciará a su nombre
y borrará sus huellas y sus sombras.
Tu voz... la palabra que nos hace,
el mundo, la sílaba, tu cuerpo...

II. LAS MANOS

Estas manos, bosque de luz que te construye
a cada instante, silencio derramado sobre el miedo...
estas manos, tus manos... lenguaje de los días.

III. LOS OJOS

Soy lo que tú estés mirando:
el rompeolas azul donde empezaron los mares
a borrar la muerte,
ese cuerpo dormido a la luz abierta de tus ojos
que no teme lo que es
si eres tú quien lo construye cada día.

IV. EL CUERPO

Que mi cuerpo teja su sombra para hacerla
a la medida de tu cuerpo
y no escape jamás de esa oscuridad
que no es el miedo porque es tuya,
sino vestigio de luz, desnudo triste de la aurora
cuando no estás conmigo.

Marta López Vilar In "La palabra esperada", Ediciones Hiperión,
Madrid, 2007, 15 - 16.
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27/11/09

"quando se transformará a excepção em regra?"

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"méduses"

elles étaient toujours là. pourtant
ce matin-là l'eau sembla se durcir
autour du bateau. la rame était plantée dans la mer
comme dans une soupe trop épaisse, et nous les hommes
avons pris peur: le soir la plage,
la promenade étaient pleines d'inconnus.

comme de petites cloches, sauf qu'on ne les entendait
pas tinter; le matin suivant l'homme cria,
qui sur la plage avait dressé une estrade de bois
à son usage. dans un demi-sommeil encore, nous l'entendions
dans le vent de la côte faire celui qui
implore la manne. la mer visqueuse, blafarde.

trois jours, et il en vint plus toujours.
comme s'il n'y avait eu jusqu'aux aléoutiennes
que notre village, rien d'autre: hercules
et prime donne, boutiques, "magic morgan
et ses figures de cire". et des troupeaux entiers
de pochards qui d'est en ouest se répandaient

le long de la baie. ils ne partirent que la plage
couverte de gélatine, la marée
montée, et les autorités
clôturèrent le terrain. de ces gens
personne plus ne parla d'augure, du matin
du jugement dernier, de goguelins.

quand l'exception deviendra-t-elle la règle? hommes
brandissant un drapeau, servants pas rasés,
des trous dans leurs vêtements. que ce fût le matin,
que ce fût le soir - tout le monde s'en fichait.
treize coups à midi sonnés.
et des enfants qui n'étaient à personne.

d'abord on n'écouta pas le jeune homme, son histoire
semplait à peine croyable. jusqu'à ce que deux hommes
nous le confirment. bientôt tout le monde avaita entendu
quelquer chose, avait afflué: près de la plage,
comme si rien ne s'était passé, il y avait la mer,
la course des vagues. - demain, après-demain

les femmes à leur fourneaux qui, dès le matin,
font tinter leur marmites, et nous, sur la plage,
les hommes, mutiques, qui regardions la mer.

Jan Wagner In "Archives nomades" (Édition bilingue), Cheyene Editeur,
Le Chambon-sur-Lignon, 2009, pp 37 - 39 (Traduit de l'allemand par François Mathieu).
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26/11/09

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"Poema II de Três Epifanias Triviais"


As coisas que te cercam, até onde
alcança a tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem

nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa -
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.

O mais é enchimento, e se consome.
As tais Formas eternas, as Idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.

As testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(Não que isso tenha a mínima importância.)

Paulo Henriques Britto In "Macau", Editora Schwarcz,
São Paulo, 2006, pp 70 - 71.
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"Bagatela para a mão esquerda"


Escrever com a mão esquerda
é tarefa bem ingrata.
Não seria empreendida
se não fosse estritamente
necessária.

A mão esquerda é mais dura,
mais austera, e desconfia
desses gestos estouvados
que a mão direita, impensada,
esbornia.

À mão esquerda é vedado
o recurso falso e fácil
de dispensar partitura,
a fraqueza (dita força)
do hábito.

Daí o jeito contido
das coisas que ela produz,
o ar desesperançado
de quem até nem precisa
vir à luz.

(No entanto, ela escreve coisas
da mais esconsa eloquência:
atropelar o sentido
ao contrapelo da pauta
é sua ciência.)

Paulo Henriques Britto In "Macau", Editora Schwarcz,
São Paulo, 2006, p 19.
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25/11/09

"Pouco os deuses nos dão... "

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Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?

Fernando Pessoa In "Odes de Ricardo Reis", Edições Ática,
Lisboa, 1981, p 128.
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22/11/09

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"Antínoo"

Sob o peso nocturno dos cabelos
Ou sob a lua diurna do teu ombro
Procurei a ordem intacta do mundo
A palavra não ouvida

Longamente sob o fogo ou sob o vidro
Procurei no teu rosto
A revelação dos deuses que não sei

Porém passaste através de mim
Como passamos através da sombra

Sophia de Mello Breyner Andresen In "Obra Poética - Vol III",
Editorial Caminho, s/c, 1999, 4ª edição, p 67.
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" O Anjo"

O Anjo que em meu redor passa e me espia
E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me, cantando, no seu peito.

Ele que indiferente olha e me escuta
Sofrer, ou que, feroz comigo luta,
Ele que me entrega à solidão,
Poisava a sua mão na minha mão.

E foi como se tudo se extinguisse,
Como se o mundo inteiro se calasse,
E o meu ser liberto enfim florisse,
E um perfeito silêncio me embalasse.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética Vol. I, Editorial Caminho,
s/c, 6ª edição, 2001, p 103.
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21/11/09

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" O canibal"

Tenho, defronte, uma vizinha loura,
Cuja carne alva, fina, e cetinosa,
Faz lembrar, quando à tarde o sol descora,
A cor humana pálida da rosa.

Não é frágil, nem débil, vaporosa,
Como as virgens mortais que a luz não doura...
Antes é forte, esbelta, a voz sonora,
- Tranquila e altivamente majestosa.

Nasceu formada assim para os amores:
E o modo com que rega as suas flores,
Na varanda, a sorrir, não tem rival...

Ao vê-la, os D. Juans baixam a fala.
- Mas quanto a mim... quisera "devorá-la"
Com a fome imbecil dum canibal.

Gomes Leal In "Claridades do Sul, Assírio & Alvim,
Lisboa, 1998, p 282.
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20/11/09

"Aquele a quem confio o coração e o trafica"

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"Sobre o Andrógino"

Aquele a quem confio o coração e o trafica
Aparece com o rosto maquilhado
Da cor que não se distingue dos ossos
Com que me castiga o dorso.
E como um sopro que toca a luz
Deita-se de joelhos na nuca,
Serve a carne num banquete.
(Tem tanto de si em mim perdido - velha crença -
Que esqueço o que sou.)

José Emílio-Nelson In "Bibliotheca Scatologica", Quasi Edições,
Vila Nova de Famalicão, 2007, p 49.
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"Projecto de prefácio"


Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe.
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!

Mario Quintana In "Baú de espantos", Editora Globo, São Paulo, 2006, p 128.
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19/11/09

"A Musa atormenta-se no impasse, instiga..."

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"Musas ( De Boecklin)"

I

Desce, crispa-se, rasga e conspurca, escorraça, perscruta,
Enraíza o pensar
(Encapelada, balbuciante, eclesiástica),
O sussurrar, o sossego da Musa aos pés do auctor, em fria laje, a arquejar,
Deixa-o à solidão, ao Beato.
(A proclamação ao Bem
É a cura do desatino.) Expira
A suprimir o aniquilamento do que o inspira.
Em tudo o que se escreve falta "o mais além".
A Musa com fuligem, o rosto de abcessos, obsessões,
No véu que não sendo de tule é de frieza.
Musa, as Musas,
Em cada injúria acena com a morte no
Mundo, o modelo eterno da atracção que acolhe as sete lágrimas
Na piedade ou na comiseração para vaguear
Entre os arbustos empoerados do
Jardim fechado em nuvens aparadas.
A Musa Conventual devassa o Pavilhão de Caça, seria melhor dizer,
Sodomita, deslumbrada pela "impunidade de outros".
Chagas emplumadas no nicho em que o penduraram escanzelado,
Não escapa à cobiça,
Não lhe convém, o Beato evoca a Moral ritmada.

II

Nas grinaldas versificadas
Busque-se mais enfeites de gesso, florzita.

A Musa atormenta-se no impasse, instiga, deixa-o ao acaso da indolência para que desvairado, a
ciciar, se mantenha sob influência. Noutra escala, gesto inofensivo, haverá elos de Consolação (de
Boécio) e de outras afinidades morais do
Problema. As variantes desregradas do praguejador de chifres atordoado pela irresolução.
A Musa melancólica persuade. Persuade? (A Crítica reluz a submeter o poeta que não persuade.)
A Musa no crepúsculo, empunha um ceptro empenado.
(As alusões a este assunto devem explicar o nome inspirador.)
E a Crítica ofensora ( a Musa, as Musas a farejar o gomil de belos ditos).
E o auctor desagradado, cuspinhando, tossindo,
"Tão vãmente", exausto, em certo sentido envolve-se
Na folia para fabular.

José Emílio-Nelson In "Bibliotheca Scatologica", Quasi Edições,
Vila Nova de Famalicão, 2007, pp 14 - 15.
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18/11/09

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                 " Conversa fiada "


Eu gosto de fazer poemas de um único verso.
Até mesmo de uma única palavra
Como quando escrevo o teu nome no meio da página
E fico pensando mais ou menos em ti
Porque penso, também, em tantas coisas... em ninhos
Não sei por que vazios em meio de uma estrada
Deserta...
Penso em súbitos cometas anunciadores de um Mundo Novo
E - imagina! -
Penso em meus primeiros exercícios de álgebra,
Eu que tanto, tanto os odiava...
Eu que naquele tempo vivia dopando-me em cores, flores, amores,
Nos olhos-flores das menininhas - isso mesmo! O mundo
Era um livro de figuras
Oh! os meus paladinos, as minhas princesas prisioneiras em suas altas torres,
Os meus dragões
Horrendos
Mas tão coloridos...
E - já então - o trovoar dos versos de Camões:
"Que o menor mal de todos seja a morte!"
Ah, prometo àqueles meus professoreas desiludidos que na próxima vida eu vou ser um grande matemático
Porque a matemática é o único pensamento sem dor...
Prometo, prometo, sim... Estou mentindo? Estou!
Tão bom morrer de amor! e continuar vivendo...

Mario Quintana In "Baú de espantos", Editora Globo, São Paulo, 2006, pp 62 - 63.
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17/11/09

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Voltámos para a barca. Soprava um vento singularmente frio. Sentado junto a mim, Lúcio puxava com os dedos delgados as mantas de algodão bordado; por delicadeza, continuávamos, animadamente, a trocar impressões acerca dos negócios e escândalos de Roma. Antínoo, deitado no fundo da barca, encostara a cabeça aos meus joelhos; fingia dormir para se isolar daquela conversação que lhe não dizia respeito. A minha mão deslizou na sua nuca, sob os cabelos. Nos momentos mais vãos ou mais ternos, eu tinha assim o sentimento de ficar em contacto com os grandes objectos naturais, a densidade das florestas, o dorso musculado das panteras, a pulsação regular das fontes. Mas nenhuma carícia chega à alma. O sol brilhava quando chegámos a Serapeu; os mercadores de melancias apregoavam a sua mercadoria pelas ruas. Dormi até a hora da sessão do conselho local, a que assisti. Soube mais tarde que Antínoo aproveitara aquela ausência para persuadir Chábrias a acompanhá-lo a Canopo. E voltou a casa da feiticeita.
No primeiro dia do mês de Athyr, no segundo ano da Olimpíada duzentos e vinte e seis... É o aniversário da morte de Osiris, deus das agonias: em todas as aldeias ao longo do rio ressoavam desde há três dias agudas lamentações. Os meus hóspedes romanos, menos acostumados que eu aos mistérios do Oriente, mostravam uma certa curiosidade por aquelas cerimónias de uma raça diferente. A mim, pelo contrário, irritavam-me. Tinha mandado amarrar a minha barca a alguma distância das outras, longe de qualquer lugar habitado: todavia, nas proximidades da margem erguia-se um templo faraónico meio abandonado; tinha ainda o seu colégio de padres; não escapei inteiramente ao ruído das lamentações.
Na noite precedente Lúcio convidou-me para cear na sua barca. Dirigi-me para lá ao Sol-pôr. Antínoo recusou-se a acompanhar-me. Deixei-o sozinho na minha cabina de popa, estendido sobre a sua pele de leão, entretido a jogar aos ossinhos com Chábrias. Meia hora mais tarde, já noite fechada, ele reconsiderou e mandou buscar uma canoa. Ajudado por um só barqueiro, percorreeu, em contracorrente, a distância bastante longa que nos seprava das outras barcas. A sua entrada na tenda onde se realizava a ceia interrompeu os aplausos provocados pelas contorsões de uma dançarina. Tinha vestido um longo trajo sírio, fino como a pele de um fruto, todo semeado de flores e de Quimeras. Para remar mais à vontade despira a manga direita: o suor tremia sobre o seu peito liso. Lúcio atirou-lhe uma grinalda, que ele apanhou no ar; a sua alegria quase estridente não se desmentiu um só instante, mantida apenas por uma taça de vinho grego. Regressámos juntos na minha canoa de seis remadores, acompanhados por um alto "Boa noite!" mordaz de Lúcio. A alegria selvagem persistiu. Mas de manhã aconteceu-me tocar, por acaso, num rosto coberto de lágrimas. Perguntei-lhe com impaciência a razão daquele choro; respondeu-me humildemente desculpando-se com a fadiga. Aceitei a mentira; tornei a adormecer. A sua verdadeira agonia passou-se naquele leito, a meu lado.
O correio de Roma acabava de chegar; o dia passou-se a ler e a responder ao que lia. Como de costume, Antínoo ia e vinha, silenciosamente, na sala: não sei em que momento aquele belo lebréu saiu da minha vida. Pela décima segunda hora, Chábrias entrou, agitado. Contrariamente a todas as regras, o jovem havia saído da barca sem explicar o fim e a duração da sua ausência: tinham passado pelo menos duas horas depois da sua partida. Chábrias lembrava-se de estranhas frases pronunciadas na véspera, de uma recomendação feita naquela mesma manhã e que me dizia respeito. Comunicou-me os seus receios. Descemos apressadamente para a margem. Instintivamente, o velho pedagogo dirigiu-se para uma capela situada à beira rio, pequeno edifício isolado que fazia parte das dependências do templo e que Antínoo e ele tinham visitado juntos. Sobre uma mesa de oferendas estavam as cinzas de um sacrifício ainda mornas. Chábrias meteu os dedos e retirou, quase intacto, um anel de cabelos cortados.
Não havia nada mais a fazer senão explorar a margem. Uma série de reservatórios que deviam ter servido outrora para cerimónias sagradas comunicava com uma enseada do rio: à claridade do crepúsculo, que descia rapidamente, Chábrias avistou na borda do último tanque uma veste dobrada e sandálias. Desci os degraus escorregadios: Antínoo estava deitado no fundo, já mergulhado no lodo do rio. Com a ajuda de Chábrias, consegui levantar o corpo, que pesava, subitamente, como pedra. Chábrias chamou os barqueiros, que improvisaram uma maca de pano. Hermógenes, chamado à pressa, só pôde verificar a morte. Aquele corpo tão dócil recusava deixar-se reaquecer, reviver. Transportámo-lo para bordo. Tudo se desmoronava; tudo pareceu extinguir-se. O Zeus Olímpico, o Senhor de tudo, o Salvador do Mundo aluíram e ficou só um homem de cabelos grisalhos soluçando na ponte de uma barca.
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Marguerite Yourcenar In "Memórias de Adriano", Editora Ulisseia, Lisboa,
2000, pp 164 - 166 (Tradução de Maria Lamas).
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16/11/09

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" O pobre poema"


Eu escrevi um poema horrível!
É claro que ele queria dizer alguma coisa...
Mas o quê?
Estaria engasgado?
Nas suas meias-palavras havia no entanto uma ternura
mansa como a que se vê nos olhos de uma criança
doente, uma precoce, incompreensível gravidade
de quem, sem ler os jornais,
soubesse dos sequestros
dos que morrem sem culpa
dos que se desviam porque todos os caminhos estão tomados...
Poema, menininho condenado,
bem se via que ele não era deste mundo
nem para este mundo...
Tomado, então, de um ódio insensato,
esse ódio que enlouquece os homens ante a insuportável
verdade, dilacerei-o em mil pedaços.
E respirei...
Também! quem mandou ter ele nascido no mundo errado?

Mario Quintana In "Baú de espantos", Editora Globo, São Paulo, 2006, p 37.
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15/11/09

"Em torno da poesia de Pompeu Miguel Martins: breves considerações para uma leitura possível" por: Victor Oliveira Mateus.

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Longe de uma linearidade que a si se joga no encalço de um rigor de cariz científico, ao invés de uma positividade que se arvora em meta de certezas inquestionáveis, assumimos antes, neste nosso falar de poesia, intentos bem mais modestos, porque limpos da presunção das palavras que tudo explicam. Discorrer sobre poesia, ou, como é este o caso, sobre uma poética em concreto, é, para nós, sobretudo tomar consciência da incapacidade da Razão em iluminar plenamente um Discurso que pretendemos do essencial.
Salvaguardados os procedimentos de tipo metodológico, que chamam a atenção para a incompletude e para a revisibilidade deste nosso texto, sentimo-nos à-vontade para avançar dizendo que esta obra de Pompeu Miguel Partins nos aparece, numa primeira abordagem, como um cismar em torno da noção de enraizamento. A forma apurada como aqui se articula o quotidiano com a procura e desvelamento das raízes parece-nos perpassar ao longo de todo o livro: as raízes do eu-poético ("A secretária", p 56); do eu existencial ( "O velho prédio", p 18; "A esplanada", p 21) - convém enfatizar que a procura de autenticidade do poeta é tal que, muitas vezes, leva a que se esbata o hiato entre o eu-poético e o eu existencial - ; as raízes do Homem enquanto espécie e Universal ("Os resistentes", p 42; "A montanha", p 77); as raízes de certos conceitos pertencentes à tradição filosófica ( de Liberdade In "Voo nascente", p 34, "Os cavalos" p 74... de Temporalidade In "O Tempo", p 70, etc.)... É também uma constante na poesia de Pompeu Miguel Martins a deambulação em torno de um outro enraizamento: o da própria vida, não de uma vida abstracta produto do raciocínio e/ou da imaginação, mas de uma vida concreta, entendida sempre como viagem, com os seus barcos, os seus cais, as suas gares. Esquadrinhando este mistério que é a errância do humano, o poeta não abdica da consciência de que ela é essencialmente efemeridade, por isso vemo-lo muitas vezes desembocando na nostalgia ("Quantos abraços couberam/ nas incontidas gargalhadas/ dos que amámos?", In "A mesa de jantar", p 63) e no desalento (" Demoram-se aí as árvores que não tive/ e os barcos onde nunca parti." In "A varanda", p 58), mas, e apesar de tanta perplexidade, a poesia de Pompeu Miguel Martins não é uma poesia do fracasso, que paulatinamente conduza à desistência. Não! Integrando todas as vicissitudes o eu-poético acaba sempre por se reerguer retomando esse caminho que sabe ser o seu ("Mas traziam os dias claros/ de cada vez que regressavam,/ não do verão, mas do sofrimento." In "Os resistentes" p 42), também, e segundo a linha de leitura que aqui propomos, o poema do final do livro (" A última flor", p 79) aparece-nos como o corolário de um itinerário poético: apela-se aí a um desejo de tranquilidade, de acalmação, frente ao efémero da vida, onde o Homem vai morrendo ante "uma última flor", que mesmo podendo não existir, eventualmente, na realidade objectiva, existirá seguramente no coração dele, para que, a partir daí, a vida possa ser justificada ("de um cais para a felicidade/ interiormente contada ao cansaço do olhar,/ao seu resguardo, ao ter valido a pena." In "A casa nova", p 17). E é em consonância com tudo isto que o penúltimo poema da obra ( "Os peixes", p 78) nos virá falar de "rota", "verso" e "missão". Por conseguinte, se anteriormente o poeta, ao reerguer-se quando regressa do sofrimento, se afasta de um cepticismo radical, agora ao defender uma missão, um compromisso com a vida concreta, ele escapa também à urdidura do idealismo, que, devido à tónica sempre colocada no coração, poder-se-ia apresentar como fundamento desta poética. Vemos, pois, que deste périplo iniciado por uma desocultação de um plurifacetado enraizamento, e esboçando o que na vida é essencial, o eu-poético apela a um compromisso: mesmo quando procura de um abrigo (" As chuvas", p 75) ele não pretende aí sufocar a sua derrota, mas antes temperar forças para se recuperar e poder continuar a sua viagem, quanto mais não seja porque "No chão espelha-se o céu." ("As chuvas, p 75).
Inúmeras são as conexões desta poesia com as preocupações fundamentais de muitos pensadores do século XX: "Le déracinement est de loin la plus dangereuse maladie des sociétés humaines, car il se multiplie lui-même. Des êtres vraiment déracinés n'ont guére que deux comportements possibles: ou ils tombent dans une inertie de l'âme presque equivalent à la mort (...) ou ils se jettent dans une activité tendant toujours à déraciner (...), ceux qui ne le sont pas encore..." (1). Este excerto de Simone Weil ilustra a leitura de Pompeu Miguel Martins que temos vindo a propor, seria mesmo interessante trabalhar a noção e o estatuto dinâmico que ambos os autores atribuem à dimensão do "passado" (2). Também esta filósofa receia a inércia da alma proveniente de todo o tipo de desenraizamento, também ela apela a uma militância que vise contrariar todo o tipo de inautenticidade e alienação. Urge, para estes escritores, um não afastamento do essencial, facto que o poeta afirma até com uma certa frontalidade: "Tudo desaparece em gestos simples/ e é da simplicidade que vivemos, (In "Quintal", p 28).
Ajustam-se os processos de metaforização e de apreensão do real utilizados por Pompeu Miguel Martins ao modo como ele dispõe as suas imagens do quotidiano: as suas representações, quer sejam urbanas, quer rurais, só num primeiro momento se destinam à sensibilidade e à imaginação do leitor, já que, quanto a nós, elas visam acima de tudo uma abrangente inquirição sobre o ser de tudo aquilo que é ( cf. poemas como: "O nome", p 37; "Deus", p 43; "A secretária", p 56). Longe de nos intrometermos nos debates em torno da validade das emoções no processo cognitivo (3), diremos tão só que para o poeta compete ao coração a validação de todo o saber que se pretenda fiável e susceptível de ser comunicado ( "pela clareza das emoções" In "As ruas", p 19; "e que o teu coração/ conhece tão bem" In " O homem", p 44; "as praças que se abrem ao coração" In "O quadro", p 50) e se a esse atributo do humano estivermos desatentos corremos o risco de não sermos nós próprios, de estarmos desenraizados, de sermos outros para sempre (" sobre o coração longínquo/ dos que foram outros/ para sempre." In "O chá", p 62). De acordo com Maria Zambrano o coração " é o lugar onde se albergam os sentimentos indecifráveis, que saltam por cima dos juízos e daquilo que pode ser explicado (...) tem um fundo de onde saem as grandes resoluções, as grandes verdades que são certezas." (4). Pela senda do coração saímos desta nossa - tão falível - proposta de leitura, de uma poesia que se nos oferece simultaneamente rica e eloquente, sem que isso colida com a nítida e cristalina arte como nas páginas o poeta vai incrustando os seus versos; é exactamente por essa senda que Pompeu Miguel Martins edificou todo um projecto que fez seu e que, sem alarde, nos revela como oferenda para o olhar e para o entendimento, já que só pelas raízes daquilo que é o poeta pode, através das suas imagens do quotidiano, cumprir essa missão de nos oferecer uma última flor, flor que mais não é do que esta poesia que ousa ainda falar aos homens que não possuem um coração longínquo.
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(1) Simone Weil, L'enracinement, Éditions Gallimard, Paris, p 66.
(2) Simone Weil, op. cit., p 71.
(3) Cf. Daniel Goleman, Emotional Intelligence, Bentam Books, New York, 1995 e Martha Nussbaum, Upheavals of Thought: The Inteligence of Emotions, Cambridge University Press, New York, 2001.
(4) Maria Zambrano, A Metáfora do Coração e outros escritos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1993, p 22.
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Victor Oliveira Mateus In "DO INTANGÍVEL/ de l'intangible" de Pompeu Miguel Martins (edição bilingue), Editora Labirinto, Fafe, 2008, pp 5 - 8 (tradução do português para francês de Victor Oliveira Mateus com revisão de Sandra Tomás e Liliana Sousa e Silva).
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14/11/09

"Não me arrependo de nada querer lembrar."

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"Cynthia e outros vôos sem mim dentro - Poema 1 "

Sinto-me do avesso. Pós ou pré agonia, não sei. Malcriado comigo mesmo, penitente ou déspota. Oco, sem profundidade, sem amarras. Elos distendidos, a sensação de sentimentos frouxos, lassos. Creio mesmo que ninguém já sente nada por mim, me olvida depressa, se distancia no espaço e no tempo e arrefece progressivamente, num esvair de afecto e de memória. Alguém, com o seu peso solene e duradouro, partiu, de comboio, de avião, de coração. Dissipou ou cerrou a minha imagem de seus olhos, de vez, sem regresso. Na sua bagagem todas as despedidas, implicitamente nos lábios um nunca mais. Assim, disponível, como quem vai ao encontro de remotos ou de novos ardores. E eu, no interior do meu avesso, em pós ou pré agonia que não sei, aqui ficado em nenhuma gare ou tórax, desmaio, nulo e indiferente, com um apagado cigarro entre os dedos e um desdém íntimo que cresce. Que importa se um cão ladra por ladrar, se a mãe solitária suspira, se a televisão transmite um telefilme piegas, se a ausência de um amigo ensurdece o telefone? Aceito a minha abulia, a minha pusilanimidade, a falta de transparência desta opacidade. Estou, não viajo, fico, não me excedo. Tudo o que me era lícito e caro, se move, transmigra, evade. Tudo livre, à solta, vário, menos eu. Pedra imutável na sombra, sempiterna e rígida, de crosta inacessível, muda e desemocionada. Eu, com todo o auto-desprezo e o desprezo dos outros. Só, alheio ao sofrimento, como um crustáceo num aquário de cervejaria. Se pudesse, desistia ainda mais, sem remorsos, sem simpatia. Confortavelmente, reunia-me, num nódulo, num novelo, fofo, e flutuava, quase imóvel, ao deus dará. Que o dia se torne noite, que apaguem a luz se houver, que chova ou venha calor, a quem interessa? Não me incomodem, nem me incomodo. A morte, de súbito? Não me façam rir. Estou-me nas tintas, não desperdiço adeuses vãos. Quem os queria? Tu, eu? Não me arrependo de nada querer lembrar. Estou abandonado, ponto final.
Alguém partiu com a alegria de me esquecer, sem olhar ou falar para trás e eu estava lá, nesse atrás. Boa viagem, ignora até o meu nome, para sempre, não existi. Sinto-me do avesso. O eu é, era quem?
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Dórdio Guimarães In "Cynthia em viagem", Editora Tertúlia, Sintra, 1992, pp 23 - 24.
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13/11/09

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XXXV


dois homens brincavam como se fossem crianças . O primeiro
fazia castelos na areia, o segundo fazia castelos no ar. O primeiro
dizia: a areia é o material do meu jogo , e sujava-se plantando
os dedos como retroescavadoras, enquanto fazia "vruum-vrrum".
O segundo olhava o ar e dizia: o silêncio é o material do meu
jogo, enquanto inspirava carregando-se da mesma brisa com
que enchia as altas torres.
Cada um era uma criança à sua maneira. Ambos foram constru-
indo incríveis castelos com princesas e dragões lá dentro.
O primeiro homem quis entrar no castelo de areia, mas não podia,
por ser muito grande e pesado, e se o fizesse, ao primeiro passo
que desse, acabaria por o esmagar, já que era , na verdade , um
enorme gigante . O segundo homem queria entrar no castelo
imaginado suspenso no ar, bem por cima das nuvens , mas como
era muito pequenino - como o polegarzinho - não conseguia chegar
sequer à fechadura do portão de entrada.
Os dois adultos decidiram, então, brincar ainda mais , e , por isso,
resolveram construir juntos um castelo , só que agora feito com
uma metade de ar e outra de areia . No fim , o castelo era do
tamanho preciso e correcto e , desta forma , puderam realmente
brincar, ao entrarem para salvar a princesa , com espadas de
fogo e unicórnios voadores, mas isso já é outra história.

Carlos Vaz In "o estrangulador de bonecos de neve", Editora Labirinto,
Fafe, 2009, pp 49-50.
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"Aqui digo o teu nome, fio de água..."

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"Distante Sul"


Tão longe os dias claros de cegonhas e loendros, o horizonte
inteiro e raso onde nada - dir-se-ia - está inscrito . E entre
fomes, sementeiras e colheitas, o sol desfraldando as estações.
Aqui o vento fere , traz outonos magoados . Aqui digo o teu
nome, fio de água - remoçando a planície da memória.

João Pedro Mésseder In "Meridionais", Deriva Editores, Porto, 2007, p 64.
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11/11/09

"Desde que as nuvens caíram no chão, as pessoas deixaram de lhes procurar os rostos..."




Fotos da apresentação do livro " o
estrangulador de bonecos de neve"
da autoria de Carlos Vaz.
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XXII

um dia todas as nuvens caíram como rochas no chão . Em
vez de voar leves e silenciosas, faziam agora um ruído atroz
ao arrastarem-se pelos caminhos e roçarem nas casas,
parecendo enormes caracóis por largarem, atrás de si, uma
longa baba líquida.
Desde que as nuvens caíram no chão, as pessoas deixaram
de lhes procurar os rostos e as formas, afastando-se delas
por parecerem repugnantes, envoltas na agonia por terem
perdido a licença de voar. Assim passaram de coisas belas
e límpidas, a coisas atrozes, sujas pelo lixo do chão , envoltas
numa papa corporal, fazendo lembrar, em vez de castelos
translúcidos a pairar no ar, enormes aglomerados de lama e
rochas cinzentas.
Com o tempo , entre os humanos inventaram-se novas
profissões como, por exemplo, os pedreiros de nuvens, que
retiravam os minérios líquidos do seu interior; os limpadores
de nuvens, etc. Graças a estas e muitas outras profissões
inventadas, as nuvens foram instantaneamente consumidas,
até que desapareceram para sempre. Depois, foi a vez dos
pássaros caírem como rochas no chão.

Carlos Vaz In "o estrangulador de bonecos de neve", Editora Labirinto,
Fafe, 2009, p 35.
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09/11/09



"Una casa pintada de blanco con el horizonte al fondo"


La casa abierta a la amplitud del blanco. La casa
donde cada noche se descierran las ventanas
con sus huellas de amargura, sus umbrales
divididos entre el resplandor del desierto y la brisa
siempre dócil del Mediterraneo. La casa
rodada de calles estrechas. De callejones. Pero también

de puertas abiertas a las retorcidas formas
de los olivos, a las flores de los almendros
en pleno estio y hasta a las manos límpidas
de los vecinos, si a ellas vienen inundados de pájaros
o de madrugadas - por fin tan posibles. Una casa
indivisa, una, con sus patios de vides,

sus tejados repletos de cielo en la circular migración
de las garzas. En fin, una casa toda de blanco pintada
mas allá de los precipícios y la tierra calcinada. Espacio
oliendo a vida, donde un nuevo lenguaje se inscriba
con caracteres de luz en el pacificado corazon de los hombres.

Victor Oliveira Mateus In "Versos para derribar muros - Antologia poética por Palestina"
(Edición y prólogo: Ana Patricia Santaella e Inmaculada Calderón), Los Libros de Umsaloua,
Sevilla, 2009, p 222 (Tradução para o castelhano de Sónia Serrano).
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Versão Portuguesa:
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"Uma casa pintada de branco com o horizonte ao fundo"

A casa aberta à vastidão do branco. A casa
onde à noite as janelas se descobrem
com suas pegadas de mágoa, suas soleiras
divididas entre o clarão do deserto e a brisa
sempre mansa do Mediterrâneo. A casa
cercada de ruas estreitas. De becos. Mas também

de portas escancaradas para as formas retorcidas
das oliveiras, para as flores das amendoeiras
em pleno estio e até para as mãos límpidas
dos vizinhos, se a elas vierem inundados de pássaros
ou de madrugadas - afinal tão possíveis. Uma casa
indivisa, una, com seus quintais de videiras,

seus telhados cheios de céu na circular migração
das garças. Enfim, uma casa toda de branco pintada
para além dos precipícios e da terra calcinada. Espaço
cheirando a vida, onde uma nova linguagem se inscreva
com caracteres de luz no pacificado coração dos homens.

Victor Oliveira Mateus (obra citada acima, pp 148 - 149)
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"Vivenda"

Na tarde, o calceteiro bate no granito.
Na noite, o mocho pia no silêncio.
E além destes ruídos, a água
escorre na bica do velho tanque.

Nos meus ouvidos, a minha vida
reparte-se entre outrora e tudo isto.
Entre um ouvido e outro, o centro
dos sons revive, porém não tenho
de reconhecer o que já vi ou vejo,
nem o que abandono. Sou livre
para a traição e o esquecimento
quando aqui estou.

Fiama Hasse Pais Brandão In "Cenas Vivas", Relógio D' Água Editores,
Lisboa, 2000, p 78.
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08/11/09

"e olha por momentos o horizonte"

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"No barco para Égina"

Sentada junto à proa
Alexandre o Grande
de Nikos Kazantzakis

Depois coloca o marcador
entre as folhas do livro
bebe um gole de água
e olha por momentos o horizonte
onde agora se não vê nenhuma ilha
e apenas um barco e outro barco
inscrevem no mar dois sulcos brancos

É então que ela abre o pequeno caderno
e hesitando entre o horizonte e a página
anota um, dois versos, nada mais -

pois não há olhos azuis que não invejem
o azul centrípeto da hora

João Pedro Mésseder In "Meridionais", Deriva Editores, Porto, 2007, p 18.
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"... a opacidade deste irmão/ de desígnios por decifrar..."

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"Irmão"

O mar de inverno destrói a percepção e comunga com as
nuvens numa gramática extrema. Um homem cuja subs-
tância humana se irreconhece persiste no seu jogo de cir-
cunstância. Quando me retiro, a opacidade deste irmão
de desígnios por decifrar (ah, a ímpia intenção em deci-
frá-los!) retira-se também, e na minha ausência - na sua
ausência - o mundo define-se , sem que eu ou ele
( ambos ausentes do filme da tarde) sejamos capazes de
definição.

Luís Quintais In "Duelo ", Edições Cotovia, Lisboa, 2004, p 72.
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07/11/09

Vinícius de Moraes por Ney Matogrosso...

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" A rosa de Hiroshima"

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hirosima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

Vinicíus de Moraes In "Antologia Poética", Publicações Dom Quixote,
Lisboa, 2001, p 299.
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06/11/09

"sob a luz recíproca, como se pudéssemos"

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" O sonho de Santa Úrsula"
(Carpaccio)


Disse-te que não seria capaz de escrever
um poema de amor.

Como representar a luz quando essa luz
é o véu que recobre o sonho de outrém?

Assim é aquilo que a palavra amor diz,
aponta, descreve em seu secreto centro.

Íntimo lugar onde um anjo se abeira
da tua morte, da minha morte, e nos enlaça

sob a luz recíproca, como se pudéssemos
sonhar, ambos, o mesmo sonho, a mesma dor,

o mesmo movimento, lento e obscuro,
de um deus frágil e atento.

Seríamos o imaginado centro
desta sala, deste limiar, deste medo

que o anjo diz sem dizer, que o anjo
persegue sem sinal de perseguição sequer.

Algo se diz, inapelável, atrás
do umbral que não vemos.

Luís Quintais In "Duelo", Edições Cotovia, Lisboa, 2004, p 32.
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05/11/09

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         "O Momento"


Observando dois surfistas a caminho das ondas,
Flutuando as pranchas ao seu lado enquanto ao longo
Do lento declive da praia, os joelhos, depois a cintura,
Penetram naquele abraço elementar,
Suspendo a escolha na dependência deles, enquanto uma
Onda de milhentas se forma e se aproxima:
E eles estão prontos para ela, ao rodarem
Como aves que se voltam para levitar no vento:
Tudo é certeiro agora ao deslizarem lado a lado:
Pelo que invejo o jeito dos seus corpos
Para aguentar e prolongar a descida veloz
Opto pelo momento em que as suas escolhas coincidem
E, em equilíbrio, como se no ar, hesitam
Numa culminação que com o mar partilham.

Charles Tomlinson In "Poemas", Edições Cotovia, Lisboa, 1992, p 45
(Tradução de Gualter Cunha).
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04/11/09

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"Esquecimento"


Esse de quem eu era e que era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.

Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei... tacteio sombras... que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!

Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisantemos...

E desse que era meu já me não lembro...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos!...


Florbela Espanca In "Sonetos", Livraria Bertrand, Amadora, 1978, p 199
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"Seguram as/ mãos/ não/ o tempo"

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"Nostalgia"


Amo
os
casais

Ombro
a
ombro

Pisando a mesma calçada

Amo os casais que
atravessam
ruas
estações

Seguram as
mãos
não
o tempo

Amo
os casais

Que permanecem

Eunice Arruda ( Transcrito de um mail da autora)

Para ler mais poesia de Eunice Arruda
consulte: www.poetaeunicearruda.blogspot.com
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(Da direita para a esquerda: o escritor Miguel Real, o Sr. Embaixador Lauro Moreira e
Victor Oliveira Mateus)