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Longe de uma linearidade que a si se joga no encalço de um rigor de cariz científico, ao invés de uma positividade que se arvora em meta de certezas inquestionáveis, assumimos antes, neste nosso falar de poesia, intentos bem mais modestos, porque limpos da presunção das palavras que tudo explicam. Discorrer sobre poesia, ou, como é este o caso, sobre uma poética em concreto, é, para nós, sobretudo tomar consciência da incapacidade da Razão em iluminar plenamente um Discurso que pretendemos do essencial.
Salvaguardados os procedimentos de tipo metodológico, que chamam a atenção para a incompletude e para a revisibilidade deste nosso texto, sentimo-nos à-vontade para avançar dizendo que esta obra de Pompeu Miguel Partins nos aparece, numa primeira abordagem, como um cismar em torno da noção de enraizamento. A forma apurada como aqui se articula o quotidiano com a procura e desvelamento das raízes parece-nos perpassar ao longo de todo o livro: as raízes do eu-poético ("A secretária", p 56); do eu existencial ( "O velho prédio", p 18; "A esplanada", p 21) - convém enfatizar que a procura de autenticidade do poeta é tal que, muitas vezes, leva a que se esbata o hiato entre o eu-poético e o eu existencial - ; as raízes do Homem enquanto espécie e Universal ("Os resistentes", p 42; "A montanha", p 77); as raízes de certos conceitos pertencentes à tradição filosófica ( de Liberdade In "Voo nascente", p 34, "Os cavalos" p 74... de Temporalidade In "O Tempo", p 70, etc.)... É também uma constante na poesia de Pompeu Miguel Martins a deambulação em torno de um outro enraizamento: o da própria vida, não de uma vida abstracta produto do raciocínio e/ou da imaginação, mas de uma vida concreta, entendida sempre como viagem, com os seus barcos, os seus cais, as suas gares. Esquadrinhando este mistério que é a errância do humano, o poeta não abdica da consciência de que ela é essencialmente efemeridade, por isso vemo-lo muitas vezes desembocando na nostalgia ("Quantos abraços couberam/ nas incontidas gargalhadas/ dos que amámos?", In "A mesa de jantar", p 63) e no desalento (" Demoram-se aí as árvores que não tive/ e os barcos onde nunca parti." In "A varanda", p 58), mas, e apesar de tanta perplexidade, a poesia de Pompeu Miguel Martins não é uma poesia do fracasso, que paulatinamente conduza à desistência. Não! Integrando todas as vicissitudes o eu-poético acaba sempre por se reerguer retomando esse caminho que sabe ser o seu ("Mas traziam os dias claros/ de cada vez que regressavam,/ não do verão, mas do sofrimento." In "Os resistentes" p 42), também, e segundo a linha de leitura que aqui propomos, o poema do final do livro (" A última flor", p 79) aparece-nos como o corolário de um itinerário poético: apela-se aí a um desejo de tranquilidade, de acalmação, frente ao efémero da vida, onde o Homem vai morrendo ante "uma última flor", que mesmo podendo não existir, eventualmente, na realidade objectiva, existirá seguramente no coração dele, para que, a partir daí, a vida possa ser justificada ("de um cais para a felicidade/ interiormente contada ao cansaço do olhar,/ao seu resguardo, ao ter valido a pena." In "A casa nova", p 17). E é em consonância com tudo isto que o penúltimo poema da obra ( "Os peixes", p 78) nos virá falar de "rota", "verso" e "missão". Por conseguinte, se anteriormente o poeta, ao reerguer-se quando regressa do sofrimento, se afasta de um cepticismo radical, agora ao defender uma missão, um compromisso com a vida concreta, ele escapa também à urdidura do idealismo, que, devido à tónica sempre colocada no coração, poder-se-ia apresentar como fundamento desta poética. Vemos, pois, que deste périplo iniciado por uma desocultação de um plurifacetado enraizamento, e esboçando o que na vida é essencial, o eu-poético apela a um compromisso: mesmo quando procura de um abrigo (" As chuvas", p 75) ele não pretende aí sufocar a sua derrota, mas antes temperar forças para se recuperar e poder continuar a sua viagem, quanto mais não seja porque "No chão espelha-se o céu." ("As chuvas, p 75).
Inúmeras são as conexões desta poesia com as preocupações fundamentais de muitos pensadores do século XX: "Le déracinement est de loin la plus dangereuse maladie des sociétés humaines, car il se multiplie lui-même. Des êtres vraiment déracinés n'ont guére que deux comportements possibles: ou ils tombent dans une inertie de l'âme presque equivalent à la mort (...) ou ils se jettent dans une activité tendant toujours à déraciner (...), ceux qui ne le sont pas encore..." (1). Este excerto de Simone Weil ilustra a leitura de Pompeu Miguel Martins que temos vindo a propor, seria mesmo interessante trabalhar a noção e o estatuto dinâmico que ambos os autores atribuem à dimensão do "passado" (2). Também esta filósofa receia a inércia da alma proveniente de todo o tipo de desenraizamento, também ela apela a uma militância que vise contrariar todo o tipo de inautenticidade e alienação. Urge, para estes escritores, um não afastamento do essencial, facto que o poeta afirma até com uma certa frontalidade: "Tudo desaparece em gestos simples/ e é da simplicidade que vivemos, (In "Quintal", p 28).
Ajustam-se os processos de metaforização e de apreensão do real utilizados por Pompeu Miguel Martins ao modo como ele dispõe as suas imagens do quotidiano: as suas representações, quer sejam urbanas, quer rurais, só num primeiro momento se destinam à sensibilidade e à imaginação do leitor, já que, quanto a nós, elas visam acima de tudo uma abrangente inquirição sobre o ser de tudo aquilo que é ( cf. poemas como: "O nome", p 37; "Deus", p 43; "A secretária", p 56). Longe de nos intrometermos nos debates em torno da validade das emoções no processo cognitivo (3), diremos tão só que para o poeta compete ao coração a validação de todo o saber que se pretenda fiável e susceptível de ser comunicado ( "pela clareza das emoções" In "As ruas", p 19; "e que o teu coração/ conhece tão bem" In " O homem", p 44; "as praças que se abrem ao coração" In "O quadro", p 50) e se a esse atributo do humano estivermos desatentos corremos o risco de não sermos nós próprios, de estarmos desenraizados, de sermos outros para sempre (" sobre o coração longínquo/ dos que foram outros/ para sempre." In "O chá", p 62). De acordo com Maria Zambrano o coração " é o lugar onde se albergam os sentimentos indecifráveis, que saltam por cima dos juízos e daquilo que pode ser explicado (...) tem um fundo de onde saem as grandes resoluções, as grandes verdades que são certezas." (4). Pela senda do coração saímos desta nossa - tão falível - proposta de leitura, de uma poesia que se nos oferece simultaneamente rica e eloquente, sem que isso colida com a nítida e cristalina arte como nas páginas o poeta vai incrustando os seus versos; é exactamente por essa senda que Pompeu Miguel Martins edificou todo um projecto que fez seu e que, sem alarde, nos revela como oferenda para o olhar e para o entendimento, já que só pelas raízes daquilo que é o poeta pode, através das suas imagens do quotidiano, cumprir essa missão de nos oferecer uma última flor, flor que mais não é do que esta poesia que ousa ainda falar aos homens que não possuem um coração longínquo.
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(1) Simone Weil, L'enracinement, Éditions Gallimard, Paris, p 66.
(2) Simone Weil, op. cit., p 71.
(3) Cf. Daniel Goleman, Emotional Intelligence, Bentam Books, New York, 1995 e Martha Nussbaum, Upheavals of Thought: The Inteligence of Emotions, Cambridge University Press, New York, 2001.
(4) Maria Zambrano, A Metáfora do Coração e outros escritos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1993, p 22.
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Victor Oliveira Mateus In "DO INTANGÍVEL/ de l'intangible" de Pompeu Miguel Martins (edição bilingue), Editora Labirinto, Fafe, 2008, pp 5 - 8 (tradução do português para francês de Victor Oliveira Mateus com revisão de Sandra Tomás e Liliana Sousa e Silva).
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