14/11/09

"Não me arrependo de nada querer lembrar."

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"Cynthia e outros vôos sem mim dentro - Poema 1 "

Sinto-me do avesso. Pós ou pré agonia, não sei. Malcriado comigo mesmo, penitente ou déspota. Oco, sem profundidade, sem amarras. Elos distendidos, a sensação de sentimentos frouxos, lassos. Creio mesmo que ninguém já sente nada por mim, me olvida depressa, se distancia no espaço e no tempo e arrefece progressivamente, num esvair de afecto e de memória. Alguém, com o seu peso solene e duradouro, partiu, de comboio, de avião, de coração. Dissipou ou cerrou a minha imagem de seus olhos, de vez, sem regresso. Na sua bagagem todas as despedidas, implicitamente nos lábios um nunca mais. Assim, disponível, como quem vai ao encontro de remotos ou de novos ardores. E eu, no interior do meu avesso, em pós ou pré agonia que não sei, aqui ficado em nenhuma gare ou tórax, desmaio, nulo e indiferente, com um apagado cigarro entre os dedos e um desdém íntimo que cresce. Que importa se um cão ladra por ladrar, se a mãe solitária suspira, se a televisão transmite um telefilme piegas, se a ausência de um amigo ensurdece o telefone? Aceito a minha abulia, a minha pusilanimidade, a falta de transparência desta opacidade. Estou, não viajo, fico, não me excedo. Tudo o que me era lícito e caro, se move, transmigra, evade. Tudo livre, à solta, vário, menos eu. Pedra imutável na sombra, sempiterna e rígida, de crosta inacessível, muda e desemocionada. Eu, com todo o auto-desprezo e o desprezo dos outros. Só, alheio ao sofrimento, como um crustáceo num aquário de cervejaria. Se pudesse, desistia ainda mais, sem remorsos, sem simpatia. Confortavelmente, reunia-me, num nódulo, num novelo, fofo, e flutuava, quase imóvel, ao deus dará. Que o dia se torne noite, que apaguem a luz se houver, que chova ou venha calor, a quem interessa? Não me incomodem, nem me incomodo. A morte, de súbito? Não me façam rir. Estou-me nas tintas, não desperdiço adeuses vãos. Quem os queria? Tu, eu? Não me arrependo de nada querer lembrar. Estou abandonado, ponto final.
Alguém partiu com a alegria de me esquecer, sem olhar ou falar para trás e eu estava lá, nesse atrás. Boa viagem, ignora até o meu nome, para sempre, não existi. Sinto-me do avesso. O eu é, era quem?
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Dórdio Guimarães In "Cynthia em viagem", Editora Tertúlia, Sintra, 1992, pp 23 - 24.
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