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"Sítios, caindo"
O que abisma
é ser capaz de chorar cem vezes,
afastando os braços do corpo
porque, sem ele,
os joelhos caem no chão
e à terra tornam, tornados terra.
Ou ainda encostar os olhos às nuvens,
como estrelas que passassem pelos sentidos despertos.
Caem corpos, pelo medo,
caem mansos fogos no deserto,
caem tributos já perdidos,
caem corpos e lugares,
gente e coisas mais, como estilhaços e pontes.
Caem limos, também ondas,
a maré foi que desce e sobe pela escada
da nossa testa em sonhos.
Caem risos, mesmo gestos,
a noite invade os olhos como esconsos gatos os vãos,
escapando-se em redor, surpreendida,
caem paixões e outros tempos,
mil coisas sobre a terra escura,
as romãs e outras coisas de viver,
o homem em cuja pele adormecemos,
a luz apagada quando é tarde,
a voz quando cansada,
os dedos quando em sangue,
caem mil coisas, em pedaços,
do corpo que fazemos ambulante.
O que abisma é,
tendo fugazes os olhos,
ter olhos fugazes a relembrar as palavras,
sem pô-las de lado como coisas impolutas.
Entender o sol sobre a curva dos ombros,
afagando o que na estrada se cumpre e é imenso:
um grito, uma ruína,
uma unida janela.
Helena Carvalhão Buescu in "De onde nascem os rios", Editorial Presença,
Lisboa, 1998, pp 69 - 70.
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