Se entre Florbela Espanca e Sophia de Mello Breyner Andresen, consideradas, enquanto escritoras mulheres, em função dos respectivos papéis que desempenharam na vida literária e cultural portuguesa, se podia postular a diferença de uma época, uma ruptura igualmente epocal permitirá distinguir a actividade literária feminina com raízes nos anos 50 e 60 do século passado daquela que se situara nas décadas (e nos séculos) anteriores. Como notou Maria de Lourdes Belchior (citada por Isabel Allegro de Magalhães), "Um fenómeno, entre outros, parecia caracterizar, de certo modo, a literatura portuguesa das décadas 50 e 60: a presença, nos arrais das letras, da mulher como autor". Ou, melhor dizendo, de mulheres como autoras, já que é precisamente a pluralização do fenómeno, estabelecido historicamente como excepcional e singular (em todos os sentidos), da participação literária feminina, e o facto de esta participação ser apreendida como existindo em pé de igualdade com a masculina, que marcam diferentemente a segunda metade do século vinte, introduzindo na paisagem cultural "o que por ausência maciça nunca (nela) houve e, de repente, passou a haver, com suspeita e suspeitada abundância" (Lourenço 1977, 10).
Não é, no entanto, com esta transformação sócio-cultural que se costuma associar a expressão "a ruptura de 60" no discurso histórico-literário português: ela tem vindo a designar um período de renovação autoconsciente da teoria e prática do discurso poético em Portugal. O significado desta renovação, que se baseou sobretudo na actividade de dois grupos, ou movimentos, que surgiram na primeira metade dos anos 60 - Poesia 61 e o Experimentalismo - assim chegaria a ser resumido por um dos animadores principais, E.M. de Melo e Castro:
"Esta ruptura de 60 pode dizer-se que consistiu numa mudança radical da posição do poeta perante os seus instrumentos de trabalho: a escrita, a linguagem. A poesia não é agora mais instrumento, nem retórico nem ideológico nem moral. A poesia, por outro lado, não é mais sentimento nem sentimentalismo. A poesia não narra, não serve, nem é mais discursiva. A poesia substantiva-se. É uma operação linguística que tem como meio a escrita e como objectivo a sua própria renovação. (1980, 75)
Nas considerações posteriores dos movimentos poéticos dos anos 60 tem-se destacado precisamente a sua "acentuada inflexão para a materialidade do texto, para a exploração das possibilidades criativas do universo linguístico visto na sua autonomia" (Martins, 1986, 81). Entretanto, a imagem do extremo ensimesmamento da construção poética, pintada por Melo e Castro numa representação ilustrativa do vanguardismo autoconsciente do projecto, não se manteria inteiramente fiel à pureza radical dos seus postulados. Conforme sublinhou Eduardo Prado Coelho, na ocasião do décimo aniversário de Poesia 61, o itinerário do grupo poderia ser resumido como "a passagem dum formalismo desesperado (...) para uma articulação mais reflectida e estruturada das relações entre a palavra como o signo da história e história como produção de palavras". Também Manuel Frias Martins observa que "a especificidade do novo" nos movimentos poéticos dos anos sessenta se valida menos pela aderência às suas bases programáticas explícitas, concentradas nos aspectos formais - a "preocupação com a linguagem", com o "rigor vocabular", com a "depuração discursiva" - do que por uma "consciência cultural que ultrapassa a preocupação finalista com a linguagem para configurar o poema com o espaço vital por que o real e a experiência tomam verdadeiramente sentido" (82; sublinhados originais).
É precisamente esta dupla ênfase na materialidade do texto e na textualidade da matéria, ou, por outras palavras, na maleabilidade poética do logos implicado na construção da realidade fisio-lógica e sócio-lógica, que permite relacionar as duas "rupturas de 60" aqui traçadas. Sobretudo na obra de duas autoras, ambas participantes na publicação de Poesia 61 - Maria Teresa Horta e Luiza Neto Jorge - as explorações atentas da "quarta dimensão" (LNJ) da linguagem poética aliam-se intimamente ao imperativo feminista da reescrita do texto cultural legado ao Ocidente europeu pelos séculos da dominação masculina.
Klobucka, Anna M. O Formato Mulher, A Emergência da Autoria Feminina na Poesia Portuguesa. Coimbra: Angelus Novus Editª, 2009, 203 - 206.
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