29/09/12
" 1685 - 1750 "
I
Acabamos sempre assim, esquecidos
ou lembrados entre a poeira de duas datas.
Foram anos, esses, de extrema
devoção à única das artes.
Só é pena que hoje me doa tanto
o testículo direito, a vista cansada
do mundo. Arnstadt, Weimar, Leipzig
- as cidades do Senhor
uniam-se no crime da perfeição
e não há, para isso, palavras.
Como se não bastasse o génio,
povoou a terra de filhos virtuosos:
o inventor da ternura romântica;
o baptista de Amadeus; aquele outro ainda
que a tristeza e o álcool incensaram.
Mas nenhum desses ( ou dos mais )
esteve alguma vez tão próximo do
infigurável absurdo a que chamamos Deus.
II
São dias de extermínio, agora.
O punhal das horas já não
cede ao alaúde nem ao cravo torturado
pela mudez. Repugnam-me simplesmente
estes dias devagar e não sei com que letras
se escreve nunca mais o nome do amor
( deixei de confiar a alma a um celeiro podre ).
Quando a música de um homem assim
não consegue demover-nos da angústia,
percebemos que a vida é morte
- impossíveis os gestos, as fugas, os desejos.
Amanhece e eu não. O sono deixou-se
pousar ao lado do livro que não pude ler
e mesmo o que escrevi sobre a morte,
embora exacto, era afinal aproximativo.
Sou agora plenamente o meu cadáver.
Ofereço-lhe um cigarro, o que sobra
de cerveja, a memória das cantatas
que me salvaram do tédio, do suicídio
e de mim próprio. Talvez seja um sentido,
uma ânsia de dissipação que encontrou
o seu termo moral, espiritual, orgânico.
Não sei.
Todas as palavras se tornaram para o sangue
uma mesma mentira, entre o exorcismo
e a ameaça. No fundo, a dizer havia apenas
isto: a luz que explode na janela
já não encontra nem corpo nem vontade.
Freitas, Manuel de. A Última Porta. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp 71 - 72.
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