09/09/12

"Se ambas as perspectivas são empobrecedoras da prática poética(...) elas florescem em momentos muito próprios de uma sociedade. "


   Embora ignorada, implícita ou explicitamente, nas suas implicações estéticas, é genericamente admitido pelo pensamento literário contemporâneo que uma compreensão rigorosamente séria da poesia não se compatibiliza com uma valorização do que é exclusivamente livresco no fenómeno poético. Quando essa valorização acontece, subverte-se inevitavelmente a imagem da poesia. Por um lado, retira-se-lhe aquele componente natural que a faz abrir-se a um imaterial transcendente cujo horizonte só pode ser intuído, não pelas (mais ou menos elaboradas) construções linguísticas e imaginativas mas apesar delas. Por outro lado, a exclusiva acentuação dos traços especificamente artísticos na compreensão e na prática da poesia, se confere ao poeta a consciência da liberdade e da autonomia do seu discurso, lança-o, no entanto, para a fronteira social e política que o estatui em inofensivo especialista do belo, laureado e aplaudido exactamente porque confirmador dessa fronteira.
   Porém, o reconhecimento deste facto não conduz (não deve conduzir) necessariamente, quer ao privilégio das estruturas iletradas, intuitivas ou pré-intelectuais da criação poética, quer à exclusividade de um comprometimento deliberado do poeta com a realidade social e política. Quando esse privilégio acontece, reduz-se a poesia a um mero reportório de fixações afectivas tautologicamente justificadas por interditos ideológicos que emanam da própria lógica das estruturas iletradas, intuitivas ou pré-intelectuais que lhe estão na origem. Quando acontece a exclusividade do comprometimento, o discurso poético está irremediavelmente condenado a permanecer na periferia da poesia, e, embora possa adquirir o estatuto de documento, mesmo assim, enquanto documento a sua informação distorcida (pela intenção poética) é de importância duvidosa.
   Se ambas as perspectivas são empobrecedoras da prática poética e da vida cultural que lhe subjaz, elas florescem em momentos muito próprios de uma sociedade. A primeira encontramo-la invariavelmente nos períodos caracterizados por aquele tipo de ordem tão cara à dominação da burguesia, a qual investe no artista porque (ou quando) é aquele que lhe dá um real decantado (= livresco) de um imaginário outro, alternativo se se quiser, que é quotidianamente sentido ou pressentido pela burguesia através do afrontamento das suas manifestações sociais exteriores. O artista (o poeta) ao institucionalizar a arte (a poesia) livresca implicita a institucionalização da ordem política que, afinal, a determina. A segunda encontramo-la nos grandes momentos de crise social e política; nos momentos de transformação revolucionária do curso da História; nos momentos em que o "povo", depositário dos valores mais substanciais, ou o "proletariado", escorado nas razões vitais do lugar que ocupa no processo de produção, são apresentados como sujeito e efeito de uma nova dinâmica cultural. Uma dinâmica tutelada pela categoria de "massa", e que passa a presidir ao acto de produção (objectiva) e recepção (ideal) dos bens culturais.

  Martins, Manuel Frias. 10 anos de poesia em Portugal 1974-1984, leitura de uma década. Lisboa: Editorial Caminho, 1986, pp 31 - 32.
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