05/08/13

 
 
  Na realidade, necessitava de uma obra poética para corrigir o destino e mostrar-me diferente daquele ser que um dia figuraria nas biografias oficiais. No íntimo sabia que nada do que escrevia mudaria coisa alguma, mas, por meio de poemas, o meu sofrimento organizava-se, fazendo sobressair as minhas paixões e os meus remorsos. Exprimindo-me por metáforas, limando a última estrofe, a dor decantava-se, mas pouco do que passava a escrito me alcançaria com verdade. Aqueles cantos não deixavam de me desgostar, sabendo eu que sempre se perde o essencial no momento de os escrever. Por entre as matizes da exaltação gloriosa ou da agonia, o meu genuíno pesar era o que não aparecia em verso.
  Cada vez que escrevia uma linha poética corrompia a integridade das minhas mágoas. Era fácil reconstruir as derrotas como a história de um rei letrado que desejava ser perdoado. Era fácil e não passava de uma manobra ignóbil. Havia muitas outras coisas que poderia ter feito de forma a não acabar os meus dias a escrever poemas aos corvos de Aghmât.
  Pouco a pouco habituara-me à ideia de vir a perecer entre as quatro paredes daquela cela. Pensava frequentemente no suicídio como uma libertação, mas não desejava deixar aos meus filhos a recordação desagradável de um rei cobarde, incapaz de suportar mais um martírio. (...) Respirava ainda, mas a única prova de que estava vivo era aquela infinidade quase indestrinçável de pensamentos, sensações e gestos que se bastavam a si mesmos, sucedendo-se uns a seguir aos outros no apertado espaço do cárcere.
 
 
     Silva, Ana Cristina. Crónica do Rei-Poeta Al-Mu'Tamid. Barcarena: Ed. Presença, 2010, p 164.
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