09/08/13

 
 
                                         " O expresso das dez e trinta e dois "
 
 
  O homem tinha adormecido. O despertador do telemóvel não tocara, ou tinha tocado e fora ele que não ouvira. Andava cansado, sim, talvez fosse isso! E já não ia ter tempo para tomar um duche... puxou apenas uns calções que andavam por ali, uma t-shirt, escovou os dentes à pressa e lá saiu ele de roldão. Desceu as escadas a dois e dois com os braços ajoujados de livros, jornais, revistas... Estava atrasado! Mal pôs os pés na rua foi logo de encontro a um jovem, que, com ar nervoso, se amparava à frontaria do prédio. Era um rapaz de pouco mais de vinte anos, t-shirt branca em V e calças verdes acastanhasdas, enfim, um não sei quê de negligência trabalhada. Procura alguma coisa?, perguntou-lhe o homem. Vinha tirar fotografias, estou à procura de um Estúdio, de um Laboratório de Imagem, respondeu o rapaz. Ah, meu caro, a única coisa com boa imagem aqui no prédio sou eu!, respondeu o homem, agressivo. O rapaz olhou-o: barba de três dias, pele gordurosa, ténis desapertados, calções a berrarem à t-shirt, papelada a espreitar por tudo quanto era lado... E lá ficou o rapaz ainda mais confuso: talvez o homem fosse um louco em fase de reabilitação?, deve ter pensado.  Olhe, tenho de tomar já já uma bica, disse o homem enquanto entrava no café. O rapaz segui-o: é que o meu GPS diz que o Estúdio é aqui. A mulher do café apanhou ainda a parte final da conversa e decidiu avançar: ah, ainda bem que encontrou o sotôr, ele ajuda-o já! O rapaz estava cada vez mais baralhado, começou a ver as lombadas dos livros, mexeu nas revistas e decidiu ser preciso: deu o nome da rua, o número... Ah, meu caro - disse o homem - deite o GPS fora, isso é quase no outro extremo da cidade, por acaso até vou para lá. Olhe, está a ver - disse a mulher - o sotôr até lhe pode dar uma boleia! O rapaz ficou nervoso, assustado mesmo. O homem, indiferente, começou a tomar o seu cafézito expresso das dez e pouco. O dono do café, não satisfeito com a confusão, atirou outra acha para a fogueira: aceite a boleia do sotôr, aceite, olhe o último que aceitou uma boleia dele nunca mais apareceu! O homem, que estava a beber o café, não se conteve: deu uma gargalhada de tal modo que o café até lhe saiu pelo nariz. E foi mais ou menos aqui que o rapaz percebeu que tudo era um jogo, que estava em pleno centro de uma peça de teatro. Ó senhor Pedro, disse o homem, não diga isso... aqui o jovem já me deve ter por antipático e arrogante e depois do que está a dizer... O rapaz interrompeu abruptamente o homem: por acaso até aceito a boleia, eu até estou atrasado! Olhe, depois não diga que não o avisei, insistiu o dono do café a rir. Rimo-nos todos. Não repare no carro, disse eu enquanto caminhavamos, não é lavado há três milénios. Quando atirei a livralhada e os papéis para o banco de trás, o rapaz atirou-me ele também mas com a pergunta sacramental: o que é que faz? Eis-me apanhado!: escrevo umas coisitas... aí para uns jornais. É jornalista? Insistiu ele. Sim, menti. O telemóvel dele tocou e eu ouço-o: sim, já sei onde é, um senhor ensinou-me, dentro de vinte minutos estou aí... O rapaz entrou no carro. Quando me chamam senhor sinto sempre que tenho trezentos anos, esclareço-o. Era a minha mãe, que queria você que eu lhe dissesse? Ok, ok, tudo bem!, rematei. A propósito: qual é o seu nome? Insistiu ele. Estou feito!, pensei. Dei-lhe o meu primeiro nome, mas ele não se deu por vencido! Olhe eu vou tirar fotos, chamo-me X. e estou na Companhia de Dança Y, vá, agora é a sua vez. Tentei ainda iludir a resposta: falei-lhe do tempo em que tinha pachorra para assisitir a tudo o que era estreia: Teatro Camões, Teatro Nacional, S. Carlos, etc. O Victor foi amigo da A.? Perguntou-me ele com os olhos esbugalhados. Fui não, sou!, mas ela aposentou-se... aquilo era uma miséria, nem dinheiro havia para as sapatilhas. E calei-me. Hum, você está a mentir-me!, rosnou ele, qual é o resto do seu nome... vá, diga! E sabe porque é que eu sei que está a mentir, é que eu já li coisas suas...Você mentiu-me e eu não menti! Pronto, fui apanhado - encenei um sorriso - qual é a pena? A pena é... é... - e fingiu indecisão - já sei, a pena é ir assistir à minha estreia. Se tiver tempo, tento fugir eu. Se não tiver, vai ter de arranjar, não se esqueça que eu agora sou amigo dos donos do café. Mas... temos pressão? Sim, temos... ah, e não me deixe à porta do Estúdio, não quero que me vejam! Adoro histórias de espiões! remato, cínico. Estaciono ao fundo da rua. Um silêncio enorme. Já não me está a apetecer ir para a sessão de fotografias... e se eu não fosse? Vá, vá-se lá embora, vá-se embora que eu também estou atrasado. Já cá fora, e pela janela do carro, o rapaz estendeu qualquer coisa ao homem... eu não consegui ver bem o que era, mas ainda o ouvi dizer: a propósito, quando estava a arrumar os livros no banco lá atrás deixou cair isto. E o rapaz estendeu qualquer coisa ao homem. Empertiguei-me para ver o que seria, mas, confesso, não percebi bem, suspeito que era um papel com um número de  telemóvel. Suspeito não, tenho a certeza! Essas coisas percebem-se pela forma como os carros recomeçam a andar.
 
V.O.M.
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