23/08/13

 
 
Vladimir Queiroz, Maria João Coutinho e Victor Oliveira Mateus no "Café Saudade", em Sintra, no dia 22 de Agosto de 2013,
 



Texto de apresentação do livro " Nuances" de Vladimir Queiroz:
 

    O novo livro de Vladimir Queiroz, Nuances, numa primeira abordagem pode ser entendido como uma incursão nos territórios da afectividade humana, mais especificamente do amor. Logo no soneto preambular, cujo título dá nome ao livro, o autor não só esboça uma caracterização aproximativa do sentimento referido (é vasto, tem íngremes vertentes, está submetido a um fluxo contínuo e é fonte desejante do olhar), como também estabelece  a relação existente entre o amor e o desejo (que ele não seja hostil à moral nem cúmplice de uma culpa ignorante), na sequência disto o homem passará a ser entendido como vivenciando um manancial de experiências e de pensamentos diversos, e por vezes antagónicos, portanto, deduz-se já que do amor não é possível alcançar-se uma definição rigorosa e de carácter fixista, nem tão-pouco vivenciá-lo através de uma experiência unívoca – do amor só se tem, e só se vive, não uma qualquer essencialidade estabelecida para todo o sempre, mas as nuances que dele conseguimos atingir.
    No soneto Burburinho, p 15, o poeta enfatiza duas das principais linhas de força desta obra: primeiro, o amor está submetido a uma dialéctica de ocultação/desocultação (O amor, a que persegues tanto,/esconde-se a te negar carinho;/mas, um dia, em meio ao burburinho/de vozes e sorrisos, ei-lo por encanto.); segundo, o amor está também submetido a uma outra dualidade antinómica: permanência/evanescência (O amor é como a água do mar:/chega junto à praia, penetra profundo/molhando a areia, que se deixa envolver.//Enigmático, brincalhão, vagabundo,/serena as águas como quem vai permanecer,/mas, de súbito, foge, para de novo voltar.). Depreende-se, por conseguinte, que deverá ser atribuição do poeta procurar entender, e viver, este mesmo amor em si lábil e multifacetado. Perante um cenário deste tipo percebe-se o quão difícil é para o ser humano movimentar-se, e construir-se, neste território, já que nele ora se perde, ora se encontra, ora ainda se voltará a perder. Uma vez chegados aqui dois outros aspectos fundamentais da poesia de Vladimir Queiroz se nos deparam: a figuração do feminino, estruturalmente dual, apresenta-se-nos não só como um polo de desejo (“estava ávido para conduzir/o desejo por entre as frestas/inexploradas em segredo.”, poema Ávido p 39 ; “Oh! Sorriso de neve/provocas em mim enxurrada/de prazer/no degelo da tua boca.” poema By Night, p 49), mas também esse feminino pode igualmente associar-se a toda uma imagética relacionada com o acolhimento e/ou com um regaço de acalmação (“O sereno que me acompanha/rodeia a face;/amado: adormeço, e sonho à toa.” poema Garoa, p 47; “Chego bem perto/entreabro os lábios/e recebo o fluxo de amor/que inunda a tua boca./(…) nos arrepia, nos aproxima,/uma quentura nos invade.” poema Regaço, p 37); o outro aspecto remete-nos para o facto de toda a movimentação afectivo-amorosa estar subsumida a um ininterrupto ciclo espiralado, onde a dimensão espiritual e a do corpo se vão procurando, afastando e reencontrando (Cf. poemas Íris, Espúria, Calmaria e o primeiro verso da segunda estrofe de Vere –Dictum, p 57).

   Uma outra vertente desta obra, que convém evidenciar, prende-se com a quantidade e os aspectos formais dos sonetos inseridos na primeira parte deste livro: a predominância de referentes que nos remetem para a antiguidade greco-latina, bem como, a formulação estilística, poderiam levar-nos a pensar estarmos perante um livro de estilo clássico com sonetos vincadamente parnasianos, no entanto, uma leitura mais atenta demonstra que, sobretudo nos sonetos, o poeta jamais sacrifica o sentido a quaisquer espartilhos de tipo formalista, assim, sobretudo nas quadras desses mesmos sonetos, opta por rimas interpoladas mas vezes há em que as combina com o verso livre (vejam-se os sonetos: Drink, Espúria), também a métrica não se apresenta regular, sendo o verso decassilábico muitas vezes sacrificado caso as exigências do sentido a isso o forcem. Um pormenor que nos afasta também de um classicismo insólito e serôdio deve-se ao facto de o autor recorrer, por vezes, ao linguajar rústico e à gíria, que acabam irrompendo no seio das formulações eruditas (“ seja sina, um sinal/ e coisa e tal; não faz mal.” poema Pétala, p 43; “Sem cor, passo… e se passo sem cor/ tenho a cor do burro quando foge.” poema Cores , p 53; “Comeu o pão que o diabo amassou,/ a carne, as vísceras, o fígado todos os dias…”, poema Canibal,  p 71). A inserção deste novo livro de Vladimir Queiroz dentro dos diversos Romantismos do século XXI, e não no seio de uma poesia estritamente clássica, é passível de ser apreendida também através de certas subtilezas temáticas e estilísticas, veja-se, por exemplo, o que diz respeito à representação da Amada: se no soneto Íris (p 21) a mulher amada nos surge com a sua tez branca  e os lábios róseos, o que nos remete imediatamente para a lírica do século XVI, o que é um facto é que não muito distante deste soneto aparecem-nos poemas de outro tipo, alguns de cunho vincadamente experimental, onde a Amada tem olhar crioulo (poema Nagô, p 27), pés pequenos (poema Calmaria, p 29), avalanche de melenas (poema By Night, p 49) e, perto do final do livro, nalguns poemas onde o cunho sócio-cultural se faz mais sentir, surge-nos mesmo a “joana pluma blonde/ explode em sangue, verve/dos sentidos.// A alma louca/ rouca na cruz santa/ luz no firmamento/ um juramento/ um lamento aos homens.” (poema Joana, p 79), ou seja, esta Joana é a célebre mulher de vida dita fácil, ícone de tanto poetas, românticos e não só. Perguntamos: se do Amor o poeta apenas obtém nuances, que dizer agora da figura feminina também ela tão diversa e plural? Não estará este livro demonstrando isso que é simultaneamente um elo e um hiato entre a Mulher (arquetípica e idealizada) e a mulher concreta, que no sensível dialoga com o poeta e com ele vai tecendo todos os caminhos do aqui? Aliás, as distinções lógicas e existenciais: universal/ particular, arquétipo/ sensível, etc. são-nos logo anunciadas no soneto introdutório do livro, pois não é por acaso que no primeiro verso da primeira quadra o Homem (ser humano) aparece significado com maiúscula e à medida que o poema se vai desenrolando o homem já nos surge referido com minúscula, como no caso do primeiro verso do primeiro terceto. E são estes aspectos que nos conduzem à confirmação de estarmos ante uma poesia assumidamente romântica, mas de um tipo de romantismo actual onde o corpo, a sexualidade e a sensualidade são salutarmente integradas sem os pruridos de qualquer juízo moral desajustado deste tempo que é o nosso (“ Rondas a minha carne…” poema Deusa, p 19; “possam arder minhas entranhas/ no calor que da tua pele emana” poema Íris, p 21; “E o frio desnuda o teu ser e enrijece os teus seios: / somos dois, somos unos,/ únicos num amor pleno e eterno.” poema Calmaria, p 29). A relação com a Amada aparece nesta obra de Vladimir Queiroz alicerçada num procedimento, não linear, mas baseado nesse movimento cíclico já anteriormente referido onde alma e corpo, espírito e matéria, entre si dialogam e se complementam: só purificando a alma, nem que seja banhando-se no Ganges (poema Avesso, p 33) aquele que ama pode entregar,  como oferenda, o corpo, e só vivenciando em pureza e eternidade o que é corpóreo no amor se pode engrandecer a alma – eis, enfim, o ciclo em forma de espiral que tinha já avançado neste texto, e é este também o objectivo último do amor e do amar (Cf. último verso de By night, p 49) nesta obra de Vladimir Queiroz, no entanto, porque ingente e complexo tal objectivo, e porque demasiado imperfeito o humano, de todo este vivenciar apenas conseguimos ir adquirindo Nuances.

 
            Victor Oliveira Mateus  ( Café Saudade, em Sintra, no dia 22 de Agosto de 2013).