Texto de apresentação do livro " Nuances" de Vladimir Queiroz:
No soneto Burburinho, p 15, o poeta enfatiza duas
das principais linhas de força desta obra: primeiro, o amor está submetido a
uma dialéctica de ocultação/desocultação (O amor, a que persegues
tanto,/esconde-se a te negar carinho;/mas, um dia, em meio ao burburinho/de
vozes e sorrisos, ei-lo por encanto.); segundo, o amor está também submetido a
uma outra dualidade antinómica: permanência/evanescência (O amor é como a água
do mar:/chega junto à praia, penetra profundo/molhando a areia, que se deixa
envolver.//Enigmático, brincalhão, vagabundo,/serena as águas como quem vai
permanecer,/mas, de súbito, foge, para de novo voltar.). Depreende-se, por
conseguinte, que deverá ser atribuição do poeta procurar entender, e viver,
este mesmo amor em si lábil e multifacetado. Perante um cenário deste tipo
percebe-se o quão difícil é para o ser humano movimentar-se, e construir-se,
neste território, já que nele ora se perde, ora se encontra, ora ainda se
voltará a perder. Uma vez chegados aqui dois outros aspectos fundamentais da
poesia de Vladimir Queiroz se nos deparam: a figuração do feminino, estruturalmente
dual, apresenta-se-nos não só como um polo de desejo (“estava ávido para
conduzir/o desejo por entre as frestas/inexploradas em segredo.”, poema Ávido p 39 ; “Oh! Sorriso de neve/provocas em mim enxurrada/de prazer/no
degelo da tua boca.” poema By Night, p
49), mas também esse feminino pode igualmente associar-se a toda uma imagética
relacionada com o acolhimento e/ou com um regaço de acalmação (“O sereno que me
acompanha/rodeia a face;/amado: adormeço, e sonho à toa.” poema Garoa, p 47; “Chego bem perto/entreabro
os lábios/e recebo o fluxo de amor/que inunda a tua boca./(…) nos arrepia, nos
aproxima,/uma quentura nos invade.” poema Regaço,
p 37); o outro aspecto remete-nos
para o facto de toda a movimentação afectivo-amorosa estar subsumida a um
ininterrupto ciclo espiralado, onde a dimensão espiritual e a do corpo se vão
procurando, afastando e reencontrando (Cf. poemas Íris, Espúria, Calmaria e
o primeiro verso da segunda estrofe de Vere
–Dictum, p 57).
Uma outra vertente
desta obra, que convém evidenciar, prende-se com a quantidade e os aspectos
formais dos sonetos inseridos na primeira parte deste livro: a predominância de
referentes que nos remetem para a antiguidade greco-latina, bem como, a
formulação estilística, poderiam levar-nos a pensar estarmos perante um livro
de estilo clássico com sonetos vincadamente parnasianos, no entanto, uma
leitura mais atenta demonstra que, sobretudo nos sonetos, o poeta jamais sacrifica
o sentido a quaisquer espartilhos de tipo formalista, assim, sobretudo nas
quadras desses mesmos sonetos, opta por rimas interpoladas mas vezes há em que
as combina com o verso livre (vejam-se os sonetos: Drink, Espúria), também a
métrica não se apresenta regular, sendo o verso decassilábico muitas vezes
sacrificado caso as exigências do sentido a isso o forcem. Um pormenor que nos
afasta também de um classicismo insólito e serôdio deve-se ao facto de o autor
recorrer, por vezes, ao linguajar rústico e à gíria, que acabam irrompendo no
seio das formulações eruditas (“ seja sina, um sinal/ e coisa e tal; não faz
mal.” poema Pétala, p 43; “Sem cor,
passo… e se passo sem cor/ tenho a cor do burro quando foge.” poema Cores , p 53; “Comeu o pão que o diabo
amassou,/ a carne, as vísceras, o fígado todos os dias…”, poema Canibal, p 71). A inserção deste novo livro de Vladimir
Queiroz dentro dos diversos Romantismos do século XXI, e não no seio de uma
poesia estritamente clássica, é passível de ser apreendida também através de
certas subtilezas temáticas e estilísticas, veja-se, por exemplo, o que diz
respeito à representação da Amada: se no soneto Íris (p 21) a mulher amada nos surge com a sua tez branca e os lábios róseos, o que nos remete
imediatamente para a lírica do século XVI, o que é um facto é que não muito
distante deste soneto aparecem-nos poemas de outro tipo, alguns de cunho
vincadamente experimental, onde a Amada tem olhar
crioulo (poema Nagô, p 27), pés pequenos (poema Calmaria, p 29), avalanche de
melenas (poema By Night, p 49) e,
perto do final do livro, nalguns poemas onde o cunho sócio-cultural se faz mais
sentir, surge-nos mesmo a “joana pluma blonde/ explode em sangue, verve/dos
sentidos.// A alma louca/ rouca na cruz santa/ luz no firmamento/ um juramento/
um lamento aos homens.” (poema Joana,
p 79), ou seja, esta Joana é a célebre mulher de vida dita fácil, ícone de
tanto poetas, românticos e não só. Perguntamos: se do Amor o poeta apenas obtém
nuances, que dizer agora da figura
feminina também ela tão diversa e plural? Não estará este livro demonstrando
isso que é simultaneamente um elo e um hiato entre a Mulher (arquetípica e
idealizada) e a mulher concreta, que no sensível dialoga com o poeta e com ele
vai tecendo todos os caminhos do aqui? Aliás, as distinções lógicas e
existenciais: universal/ particular, arquétipo/ sensível, etc. são-nos logo
anunciadas no soneto introdutório do livro, pois não é por acaso que no
primeiro verso da primeira quadra o Homem (ser humano) aparece significado com
maiúscula e à medida que o poema se vai desenrolando o homem já nos surge
referido com minúscula, como no caso do primeiro verso do primeiro terceto. E
são estes aspectos que nos conduzem à confirmação de estarmos ante uma poesia
assumidamente romântica, mas de um tipo de romantismo actual onde o corpo, a
sexualidade e a sensualidade são salutarmente integradas sem os pruridos de
qualquer juízo moral desajustado deste tempo que é o nosso (“ Rondas a minha
carne…” poema Deusa, p 19; “possam
arder minhas entranhas/ no calor que da tua pele emana” poema Íris, p 21; “E o frio desnuda o teu ser
e enrijece os teus seios: / somos dois, somos unos,/ únicos num amor pleno e
eterno.” poema Calmaria, p 29). A
relação com a Amada aparece nesta obra de Vladimir Queiroz alicerçada num
procedimento, não linear, mas baseado nesse movimento cíclico já anteriormente
referido onde alma e corpo, espírito e matéria, entre si dialogam e se
complementam: só purificando a alma, nem que seja banhando-se no Ganges (poema Avesso, p 33) aquele que ama pode
entregar, como oferenda, o corpo, e só
vivenciando em pureza e eternidade o que é corpóreo no amor se pode engrandecer
a alma – eis, enfim, o ciclo em forma de espiral que tinha já avançado neste
texto, e é este também o objectivo último do amor e do amar (Cf.
último verso de By night, p 49) nesta
obra de Vladimir Queiroz, no entanto, porque ingente e complexo tal objectivo,
e porque demasiado imperfeito o humano, de todo este vivenciar apenas
conseguimos ir adquirindo Nuances.