04/08/13


 
   Não tardou que os boatos acerca da natureza da minha relação com Ibn Ammar se multiplicassem, tendo chegado aos ouvidos de meu pai. Esses rumores quase provocaram a minha desgraça. As intrigas diversificavam-se, parte do falatório, tendo fundamento, era empolado até níveis absurdos. Acusavam-me de blasfemar contra o Alcorão, de me embriagar com o meu amigo e de me envolver em peripécias amorosas de teor duvidoso. Por meias-palavras faziam-me a injúria de divulgar que me submeteria a todos os caprichos de Ibn Ammar. Nesse ponto as dúvidas aprofundavam-se, tendo sido posta a circular a suspeita de que partilharia com ele repugnantes intimidades. O meu amigo deixava de ser um obscuro comparsa de deboche, onde participariam mulheres de má fama e escravas cristãs, para se transformar no protagonista de uma pérfida influência.
   O emissário do meu pai chegou a Silves quando eu estava prestes a fazer dezoito anos. Eu podia ser o príncipe herdeiro, mas ele recebera ordens directamente do emir e escusou-se a escutar os meus argumentos. As suas ordens eram muito claras: deveria regressar imediatamente com ele à corte de Sevilha. Era aguardado no espaço de uma semana. Apenas consegui que Maha, grávida do meu primeiro filho, me acompanhasse nessa sentença de exílio.
   A minha entrega a Ibn Ammar tinha a sua inocência; era quase tão frágil como qualquer paixão. Sofri muito por não saber se os afectos resistiriam à separação. Ele riu-se do meu jeito infantil de fazer beicinho naquela madrugada fria em que nos despedimos. Aquela amizade - era nesses termos que nomeava os meus sentimentos - começada de forma tão invulgar, enriquecera-me como nenhuma outra. Foram estas as palavras que usei para lhe explicar como dava valor à nossa relação. Abraçámo-nos uma última vez antes de montar o meu cavalo. Revejo a sua cabeça inclinada como que numa vénia trocista, olhos que me observavam sob um véu de ternura, exibindo, no entanto, uma espécie de alívio por me ver partir. Já me afastava quando me lembrei de que Ibn Ammar deixaria de ter quem provesse ao seu sustento. Voltei atrás e, evocando já não sei que pretexto, dei-lhe à socapa todas as moedas de ouro que trazia comigo. Aproveitando a oportunidade, ele aproximou-se do meu ouvido e sussurrou: "A nossa história não acaba aqui, mesmo que por agora nos separem e cada um siga o seu caminho." A afirmação continha qualquer coisa de profético, uma espécie de entendimento secreto, cujo alcance ultrapassava a própria vontade de cada um.
 
 
  Silva, Ana Cristina. Crónica do Rei-Poeta Al-Mu'Tamid. Barcarena: Ed. Presença, 2010, pp 57 - 58.
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