05/05/10

"... saboreava a felicidade subtil de falar dela sem perigo. "

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Pela primeira vez havia seis meses, os seus pés pisavam o caminho familiar. Desabotoou o sobretudo.
"Caminhei depressa de mais", disse consigo. Recomeçou a andar, parou novamente e, desta vez, o seu olhar visou um ponto preciso: a cinquenta metros, de cabeça descoberta, e de camurça na mão, o porteiro Ernest, o porteiro de Léa, polia os cobres da grade, na frente da moradia de Léa. Chéri pôs-se a trautear enquanto caminhava, mas apercebeu-se, ao ouvir o som da própria voz, de que nunca trauteava, e calou-se.
- Então, Ernest, sempre a trabalhar?
O porteiro regozijou-se com certa reserva.
- O Sr. Peloux! Estou encantado por vê-lo, não está nada mudado.
- O mesmo se passa consigo, Ernest. A senhora está bem?
Falava de perfil, atento às persianas fechadas do primeiro andar.
- Julgo que sim, mas nós só recebemos alguns bilhetes-postais.
- Donde? de Biarritz, não?
- Creio que não.
- Onde está a senhora?
- Não sou capaz de dizer(...)
Chéri tirou a carteira, ao mesmo tempo que olhava Ernest com um ar acariciador.
- Oh, Sr. Peloux, dinheiro entre nós? Decerto não pensa em tal. Mil francos não fariam falar um homem que nada sabe.(...)
Chéri subiu até à praça Victor-Hugo, fazendo rodopiar a bengala. Tropeçou duas vezes e esteve quase a cair(...) Chegado à balaustrada do metropolitano, debruçou-se, inclinado para a sombra negra e rósea do subterrâneo, e sentiu-se esmagado de fadiga.(...)
- E Léa? - perguntou de repente Desmond.
Chéri não tremeu: estava justamente pensando em Léa.
- Léa? Está no Sul. (...) Mas Chéri, ao mesmo tempo circunspecto e aturdido, não parou de falar de Léa. Disse coisas sensatas, impregnadas de um bom senso conjugal. Gabou o casamento, ao mesmo tempo que prestava justiça às virtudes de Léa. Cantou o carácter submisso da jovem esposa, para ter ocasião de criticar o carácter resoluto de Léa (...) E enquanto assim falava, abrigado por trás das palavras imbecis que uma desconfiança de amante perseguido lhe segredava, saboreava a felicidade subtil de falar dela sem perigo.
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Colette in "Chéri", Editorial Presença, Barcarena, 2009, pp 70 - 74 (Tradução de José Saramago).
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