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LITORAIS
bastam alguns talos de piteira
pendurados de um rebordo
no delírio do mar;
ou duas camélias pálidas
nos jardins desertos,
e um alourado eucalipto que mergulha
entre batimentos de asa e loucos voos
na luz;
e eis que num instante
invisíveis fios em mim se enrolam como serpentes,
borboleta numa teia de aranha
frémitos de oliveiras, olhares de girassóis.
Doce cativeiro, agora, litorais
de quem se entrega um pouco
como que a reviver um antigo jogo
nunca olvidado.
Recordo o acre filtro que estendeste
ao confuso adolescente, oh margens:
nas claras manhãs fundiam-se
dorsos de colinas e céu; na areia
das praias era um amplo bater, um igual
fremir de vidas,
uma febre do mundo; e todas as coisas
pareciam consumir-se nelas próprias.
Oh então revolvidos
como o osso do choco pelas vagas
desaparecer a pouco e pouco;
tornar-se
uma árvore rugosa ou uma pedra
polida pelo mar; fundir-se nas cores
dos ocasos; desaparecer carne
para ressurgir nascente ébria de sol,
pelo sol devorada...
Eram estes,
litorais, os votos do menino de outrora
que junto a uma ferrugenta balaustrada
lentamente morria sorrindo.
Até que ponto, marinas, estas frias luzes
falam a quem destroçado vos fugia.
Lâminas de água caminhando
por entre os ramos que se movem; rochas escuras
entre a espuma; flechas de gaivões
vagabundos...
Sim, podia
acreditar um dia em vós ó terras,
belezas funerárias, áureas cornijas
na agonia de cada ser.
Hoje volto
até junto de vós mais forte, ou estarei enganado, se bem que o coração
pareça abrir-se em recordações ledas e atrozes.
Triste alma passada
e tu vontade nova que me chamas,
tempo é talvez de vos unir
num sereno porto de sabedoria.
E um dia virá ainda o convite
de vozes de ouro, de lisonjas audazes,
alma minha nunca mais dividida. Pensa:
mudar para hino a elegia; refazer-se;
não faltar mais.
Poder
tal como estes ramos
ontem descarnados e nus e hoje cheios
de frémitos e linfa,
sentir
amanhã também por entre os perfumes e os ventos
um refluir de sonhos, um louco urgir
de vozes rumo a um fim; e no sol
que vos inunda, litorais,
tornar a florir!
Eugenio Montale in "Poesia", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
pp 135 - 139 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos ).
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