14/08/11

" Poderemos, meus senhores, estar a cometer um estranho erro... "

.
Súbito, ia em maio o ano seiscentos, começaram de soprar outros ventos. Frei Estêvão, acompanhado do cónego Rodrigues da Costa, chegava a Veneza. Era ver-lhe nos olhos a alegria ao mostrar aos companheiros a lista dos sinais:
- ... com a firma de todos os declarantes e autenticada pelo notário Tomé da Cruz.
Liam-na, reliam-na, já ela citavam de memória partes. Correm à Senhoria, para procederem ao reconheciemento do preso. O juiz Marco Quirini é porta que se não pode transpor e o eco das preocupações e receios do doge.
- Quê! - irritava-se Frei Estêvão. - Para me entreterdes, madaste a Portugal buscar os sinais do corpo de el-rei. sem mo terdes deixado ver...
- É que vós, os Portugueses, para vos libertardes dos Castelhanos, não hesitaríeis em dizer de um negro que seria o rei Dom Sebastião - respondia o juiz rindo.
-Não riais, senhor, que isto é negócio muito sério...
- Desculpai. Não vos queria ofender.
- Agora que trouxe o rol dos sinais, confirmados por instrumentos autênticos de um notário apostólico, e vos peço me permitais ver Sua Alteza, negais-mo?
- A Senhoria...
- Asseguro-vos que honestamente vos demonstrarei a verdade ou a falsidade. Não quereis também vós conhecer uma ou outra?
- Temos tido sobre isso muitas disputas no senado e...
- Tomai - disse Frei Estêvão estendendo um papel ao juiz.
- Que é?
- Tendes aqui a cópia da lista dos sinais de el-rei. Faço tanto empenho como vós em verificar se a pessoa aqui detida é el-rei ou não (...).
- A Senhoria é de parecer que não é conveniente saber se o preso é o rei ou não, sem primeiro ser solicitado por príncipes e reis.
Frei Estêvão retirava-se desolado:
- O doge receia indispor-se com Filipe terceiro, não é?
Marco Quirini encolhia os ombros:
- Quereis príncipes e reis? - voltava-se para trás o frade, já de saída. - Pois tereis príncipes e reis. (...) Isabel de Inglaterra não nos há-de negar valimento e Henrique quarto, que tem sido informado do que se passa por seu embaixador, mostra-se interessado no caso. Concitarei os bons ofícios de príncipe Maurício de Nassau...
(...) Marco Quirini, como o papel na mão, absorto. Depois, caminhou até à porta e, atrás do reposteiro, puxou o laço da campainha. Um mordomo apareceu.
- Os senhores juízes que se reunam comigo.
Vieram os juízes. Deu-lhes conta do rol dos sinais deixado por Frei Estêvão.
- Poderemos, meus senhores, estar a cometer um estranho erro, por minha fé. Julgo prudente verificarmos nós os quatro se estes sinais conferem com o prisioneiro.
- E se conferirem?
- Que Deus nos perdoe! Teremos de expor imediatamente o assunto ao sereníssimo doge.
Caminharam então até à cela onde se encontrava o prisioneiro e, cerrada a porta, ordenaram ao carcereiro que o despisse...

  Fernando Campos in " A Ponte dos Suspiros ", Difel, Algés, 2000, pp 116 - 119.
.