13/11/11

Acerca de...(VII)

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" Pelo deserto as minhas mãos: a poesia de Victor Oliveira Mateus"

Na literatura do Ocidente, tornou-se um verdadeiro leitmotiv a figura emblemática do estrangeiro. André Gide revelará, em seu "O Imoralista", uma personagem em constante errância, em permanente busca por um lugar indefinido, sempre distante. Em "A montanha mágica", Hans Castorp encontrará nos Alpes um recanto onde aprofundará suas reflexões sobre o existir humano. Aliás, Thomas Mann será o exímio autor das personagens exiladas. Também em "Morte em Veneza", a sua personagem central, Gustav Von Aschenbach, torna-se, na famosa cidade italiana, o estrangeiro por excelência. Outros autores, como Paul Bowles, farão do deserto o refúgio dos outsiders, dos excluídos. Esse leitmotiv se tornará, para os escritores, símbolo de uma resistência ao mundo reificado, consumista, universo no qual o objecto toma o espaço do ser.
Indo ao encontro dessa tendência, o poeta português Victor Oliveira Mateus, em seu "Pelo deserto as minhas mãos", plasma todo um cenário estranho, distante do mundo das metrópoles. No deserto de Mateus, o assombro aflora, com intensidade, perante os encontros e despedidas amorosos, marcando, dessa forma, o destino de um eu lírico em errância, em peregrinação não pelos espaços físicos, mas pelos desvãos dos seus sentimentos.
Em sua escrita, o deserto torna-se região das especulações filosóficas, dos encontros e desencontros com o outro. Aliás, o deserto de Victor possui uma ambiguidade importante. É nesse espaço que o eu lírico vivenciará tanto a solidão quanto a total entrega ao outro-amado. Para Victor, somente o mergulho no exílio do mundo e do outro, poderia gestar o arrebatamento dos encontros fecundos. Nessa ascese, é preciso, antes, ouvir a verdade da própria existência, para, a partir daí tramar, com harmonia, os amores.Anti-baudelairiano, o poeta de "Pelo deserto as minhas mãos" rejeita os paraísos artificiais, a fim de buscar, na aridez desértica, uma forma de existência mais plena. Essa recusa ao mundo capitalizado pode ser encontrada, por exemplo, no seguinte texto:

Nas cidades de onde venho
secam as árvores ao som das sirenes
e os pássaros, alucinados, buscam direções
nas pupilas das crianças.
Nessas cidades tudo é pressa e desassossego,
enquanto os homens, improvidentes, desaprendem
a sublime auscultação da terra;
nem sequer o coração dos outros podem ler
ou o rumor inconsolável das águas
- para eles aquilo que apenas vêem!
E com um nó no peito desatado
pintam de harmonia um novo Caos.

Ao auscultar essa terra árida, o seu silêncio, o homem torna-se capaz de ler o coração do outro. Ou seja, é preciso isolar-se, de forma serena, para ter a sabedoria de oferendar-se, em plenitude, ao amor. A solidão, nesse caso, é salutar, ela representa a busca de uma sabedoria, de uma compreensão do existir. Perambular pelas rotas do deserto é palmilhar o próprio âmago, o íntimo da subjectividade. Há qualquer coisa de sacrifício espiritual nessa poesia, de aprendizado da alma, capazes de levar o eu lírico à agudeza da vida e das relações amorosas. Assim, a voz do deserto é, na verdade, o clamor de um outro perdido, quase esquecido:

Que voz chora por mim
no outro lado das grandes pedras? Que lamento? Que murmúrio
por entre a sombra rala dos arbustos? Talvez seja o vento: o zurzir
de um estranho vento oceânico no meu rosto enquanto durmo. Ou
talvez seja o sol, que esgarçando as longas nuvens, cai depois
a pique sobre o meu corpo. Ou ainda - quem sabe? - talvez nenhuma
dessas coisas seja, mas apenas o esquivo sibilar de um réptil no
seu ardil para me tentar

Mas não, nada disso poderá por mim chorar no outro lado
das grandes pedras. Nada, a não ser o eco dos teus olhos; o azul
desmaiado desses olhos, onde o meu sonho era um barco impossível
e as palavras soçobravam na raíz do meu desejo

Todo o deserto, toda a infinita secura das planícies de areia, são transmutadas, nesse poema, no corpo amado, nesses olhos em estado de alumbramento. A entrega acontece como uma descoberta mágica, encantada, da pulsação e da vida do outro. Tal amor precisa ser palmilhado, como se palmilha as areias do deserto. É preciso descer às profundezas do corpo amado, para alcançar a ascese final, a revelação absoluta do gozo:

Descer-te o corpo palmo a palmo
Descer-to como quem sobe ao cume do mais alto monte, como
quem encontra a firmeza de um espaço, para o qual nenhuma língua tem nome
Descê-lo ou moldá-lo, nem eu sei bem: o rosto jovem, o sedoso
peito, as coxas; descê-lo e construir o murmúrio sibilante do vento,
ou de uma boca entreaberta no rumor ofegante da tarde

Descer-te o corpo palmo a palmo
Não o corpo fardo, prisão, informe desejo que a si se basta
numa infindável corrosão de tudo, mas um corpo luz, amigo,
que, sorrindo, aquilo que o excede a mim entrega

Nesse poema, o autor consegue transformar o corpo em um terreno acidentado, no qual o eu lírico terá de descer, percorrer, caminhar, a fim de ascender às matrizes do seu próprio espírito. Dar-se ao outro é entregar-se à serenidade de si. O poeta, nesse texto, de forma sublime, traça, com uma fome de escultor, cada traço físico desse ser mágico, talhando-o com leveza e ardor: "rosto jovem", "peito sedoso", "coxas"... Uma metonímia fecha esse poema com esmerada beleza: todo o riso é o corpo amado; toda a pele, todos os poros, são um rir calmo, repleto de alumbramento. O mistério desse outro é um adentrar na noite, na falta de compreensão do mundo e do milagre de amar:

À noite as tuas palavras
não são as tuas palavras, aquelas que de dia usas, quando nem
nos conhecemos e o disfarce é um regato de água fétida por entre
os refugiados
À noite as tuas palavras são tão diferentes:
trazem-me o silêncio das coisas raras
ensinam-me a sedução dos horizontes ávidos de luz
desvelam-me o teu corpo, tão esplendorosamente branco,
no cadenciado ritmo das antigas deserções
O mesmo com os teus olhos também à noite tão diferentes:
ardem como ilhas num vasto oceano de ondas paradas,
nossa imensidão que nem nostraga nem nos salva
Enfim, à noite nada de ti coincide contigo
mas isso ninguém sabe, nem sequer tu... apenas eu que aqui
o escrevo, enquanto espero um outro anoitecer

O texto, como um pêndulo, risca o dia, delimita as luzes e as trevas e revela, no ser amado, a existência de dois seres distintos. Durante o dia, o outro amante é previsível, sereno. Somente a tormenta das trevas é capaz de acender nesse outro o mistério, a sedução fatalizante, a sina dos naufrágios e perigos. Estamos no domínio da paixão, daquele sentir terrível capaz de arrebatar nossa vida por completo, de nos levar ao estado de possessão febril, de loucura delirante, de gozo supremo. As metáforas e as comparações, tão bem talhadas, revelam a hábil artesania do poeta. Aliás, essa é uma grande virtude de Victor, a de tramar metáforas e comparações de forte poder encantatório. Dessa forma, os olhos são como ilhas de imenso oceano, águas profundas a tragar por completo o eu lírico. Os horizontes são tomados pela fome de arrebatamento, eles têm sede de luz. Essas imagens, assim como muitas outras (todo o livro é um pontilhado de metáforas vivas, repletas de uma imagética de pura inventividade), tornam o livro uma raridade preciosa.
Os poemas, conduzidos por um ritmo muito semelhante ao do poema em prosa, possui versos longos, extensos. Tal ritmo imprime lentidão ao discurso. Esse efeito é de suma importância, pois ele funciona como uma espécie de câmara lenta, com a qual o leitor vai captando as minúcias desse mundo repleto de areias, de beduínos, de cavaleiros, de pedras preciosas. O ritmo casa-se perfeitamente com o forte apelo pictórico do livro:

Às vezes também os homens
espreitam na margem do oásis, vageiam com desespero no tosco
emaranhado das dunas. Às vezes também eles, por entre os cedros,
em mim desenham um estranho mistério: falam alto, gesticulam...
São suas vozes uma ave inusitada no azulado entardecer do deserto.
Mas eu finjo nem perceber

É no longe o que procuro
bem no centro dessa paisagem, no macio regaço dos povos nómadas,
onde as caravanas se balanceiam sem nunca se deterem
O meu lugar é um minúsculo e límpido poço, todo rodeado
de seixos, para lá do ocre de tantos palácios antigos - é o lugar onde
não sou, um estilhaçado vitral que ninguém vê, mas que liberta

O não ser, no livro de Victor, tangencia a totalidade das paixões. É preciso, portanto, ao modo de Pessoa, perder-se para encontrar-se, fugir para cair no próprio ser. Roteiro pontilhado de oásis, repleto de paixões e mistérios, "Pelo deserto as minhas mãos" é uma aventura pelos escaninhos da própria palavra, pela poesia, enfim, feita de magnitude e sublime encontro com o outro, esse ser a fervilhar nossos desejos.

    Alexandre Bonafim in " O Silêncio de Orfeu ", Biblioteca 24 Horas, São Paulo, 2011, pp 94 - 99.
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