01/11/11

 Ronaldo Cagiano e sua mulher, em Lisboa ( Janeiro 2011).

  " Dia sem nome "


Na estação de trabalho
os colegas cumprimentam-se
com a mesma frieza burocrática
de todos os dias.

Uns respondem
gestos automáticos
fugacidade nos olhares

legitimam a mesmice ritualizada
e endêmica.

Alguns
alimentando o espetáculo
das tarefas desestimulantes
não se espantam
com o mundo besta e sem sal
pesando-lhe as mãos.

Outros, em suas baias,
detidos numa rotineira cumplicidade
com a busca infrene dos resultados
reproduzem acenos
sem nenhuma convicção.

Ah, como dói vê-los tão mecânicos
tão protocolares
tão passivos e sem ênfase

homens de gesso

ferozes parteiros do nada.

A imensa e patagônica sala
um curral de vidro povoado
de marionetes
é mais fria
que a mais glacial das necrópoles.

Papéis e-mails expedientes
processos demandas análises
se encordilheiram nas mesas
como culpas

Carimbos repetitivos e vorazes
soquetes no vazio
apelos que chancelam a existência inútil

A saída para o almoço
é apenas um detalhe
nesse galope das horas e seu inventário de necessidades
o ontem minguado de esperanças
com seu arsenal de ordens que se acomodam
como poeira na mobília

precisamos estar focados
ser pró-activos
verificar a expertise
startar novas ideias
evitar retrabalho
eliminar os gaps e gargalos
racionalizar procedimentos
diminuir custos
otimizar resultados aumentar a produtividade
o envolvimento do grupo é fundamental
a coesão da equipe é salutar para a performance
o feedback é indispensável

Tempo é dinheiro
e na selva da concorrência
e das metas insaciáveis e compulsórias
quem não tem competência, está perdido

Todos os dias ouço
a semântica do lucro
a sintaxe do mercado
discurso plastificado e vazio
a reproduzir os
fetiches de um século tão novo e
já enfermo
dirigindo a vida que já não é mais nossa

Porém, no fundo da seção,
imperceptível como as faxineiras
que todos os dias higienizam o ambiente
com seu macacão de zuarte azul
alguém abre um livro de Kafka
e já não se sente entre paredes.

Em silenciosa perplexidade,
rumina sua dor diante do
tédio e da banalização
de mais uma semana consumida a esmo.

Como uma centrífuga vertical
o elevador nos salva no fim de cada fim de expediente.

A solidão mais torpe é estar cercado de imbecis.

 Ronaldo Cagiano in " O sol nas feridas ", Dobra Editorial, São Paulo, 2011, pp 101 - 104.
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