31/10/13

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   A Ilha é mágica e misteriosa, tu sabes, e eu gosto dela assim pura. Ilha - caminho para o oriente. Ilha - Mitologia, magia vibrátil, contagiante, em sua esteira aérea e calorosa, desces-me. Como a luz atravessas-me. Tu que és os ritos, o entreposto e a rota para a Índia, a Arábia Saudita, teu folclore encandeia-me o horizonte. Teus seios geminados eu reparo e não sei mais que fazer, a casa do meio que tu me és espanto só de ouvir-te, e que milagre, que magia nasce das tuas mãos, dos teus poros. Palavra que como o fogo aqueces-me o corpo, irreconheço-te só de navegar-te, mulher, meu pulmão, minha respiração, motor que eu quero impulsionante pelo sangue adentra-me, que é de amar, meu ofício, meu vício, que existo, pátria, Pandora, paquete, palanque meu que podes ser a ideia do moinho ao centro da mó e na esfera à cabeça do Mediterrâneo. Agora entre as mãos e a língua levo-te como uma donzela à passagem iniciática do menstruo, como a doce cantiga embrulhada na fogueira levo-te os genes carregados de bateria e frutos de afecto, ainda aquela memória solar do voo.
 
 
  Timóteo, Adelino. A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua, Antologia Poética. Maputo: Revista Literatas, 2013, p. 266.
 
 
Nota 1. - O presente texto de Adelino Timóteo foi tirado do seu livro Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique. Sugiro igualmente o seu Livro mulher, obra já de 2013.
 
Nota 2. - Este poema é o último a ser postado relativo à obra em referência. A presente Antologia teve a Coordenação do poeta moçambicano Amosse Mucavele e contou, no respetivo Conselho Editorial, com os seguintes autores: Abreu Paxe (Angola), Jorge Arrimar (Angola), Victor Oliveira Mateus (Portugal), Mbate Pedro (Moçambique), Cláudio Daniel (Brasil), Rita Dahl (Finlândia), Maria Ângela Carrascalão (Timor-Leste), Conceição Lima (São Tomé e Príncipe), Alberte Momán Noval (Galiza-Espanha), Maria do Sameiro Barroso (Portugal), Frederico Matos Cabral (Guiné-Bissau).
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   " Canto do mar "


Na ruína de espelhos
restam só os teus olhos
onde o meu reflexo é resistente e sólido.

À janela, com insónia das noites
nada a fazer senão aguardar o eco acordado nos lábios
imaginar como uma brisa traz teus seios
- pombos frescos da madrugada.
Perdida a chave vermelha
fiquei, há séculos, preso em tua cadeia
minha alegria na solidão da lua.


    Jingming, Yao. A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua, Antologia Poética. Maputo: Revista Literatas, 2013, p 128.
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30/10/13


Há semana e meia saltando de sonhos
para rabiscar umas frases, fixar
um tom, um xis no mapa, a direcção
para o ouro, e às tantas já não
não passo, fico deste lado, murchíssimo
de mãos nos joelhos, a soprar os meus
moinhos, coisas absortas e sonolentas,
livros, papéis, fortificações ridículas.
Apago e acendo a luz, continuo só.

Redijo e enceno as minhas didascálias,
e no abafo da fadiga vejo crescerem
musgos e bolores brilhando
na penumbra. Movimentos no fundo,
ausências cada vez mais familiares. A sombra
deu em doida e escangalha-me os relógios,
alimenta-se das tripas, agoniza
pelos cantos, dorme com o teu vestido.
À cabeceira, enfiado numa caixa de
fósforos, um bicho afina para mim
a melodia do mundo, dá-me corda, um
ritmo, esse nó-corredio que me desce
ao poço. Na caixa, deixo uma nesga
para que olhe comigo o tecto e onde
lhe deito as moscas que me mordem.

Desvio as cortinas, longe ouço vibrar
uma tempestade. Um cão guardando
miragens ladra, alinhando o horizonte,
e anima-me, faz-me descer para a ideia de
andar doce por aí roubando as tardes,
os bolsos cheios de nêsperas e a luz
desassossegando o reino. Mas chove,
a chuva conta cabeças, enche as flores
e deixa-as tombar largando esse perfume
de dilúvio pelos declives açucarados
que levam aos espaços de recreio,
fontes, chafarizes, estátuas segurando
a corda da roupa e da pardalada, junto
com o mobiliário abandonado
de que o jardim se apropriou. Na imensa
sala de visitas, um sofá de pulgas
e um televisor com o ecrã arrancado ao
biqueiro, enquadra um plano soberbo
deste fim de tarde.

Ando mais devagar, encho a rua
de solidão, vejo-a descer, retocando-se -
a noite. Mulata endiabrada soprando beijos
em todas as direcções. Vou atrás, sigo
os meus sonâmbulos. Vamos para os lados
do seja-o-que-deus-quiser.

Não falo, está tudo tão claro, tudo tão
insistentemente banal. Pus baixinho
o coração, frio, a noite inteira a ouvir
dolorosas invocações, uma e outra vez
as mesmas histórias, por favor a um mundo
acabado. Virando as páginas ao jornalzinho
da eternidade, saquei uns versos, o pouco
de realidade e esta sensação de permanência
que nos faz ganhar raízes, ancorar
nestes lugares infectos até ao gole radioso.

O barulho do fósforo rasgou um
suspiro à luz vesga que nos ilustra.
Colagens, cigarros, vastas pausas na moleza
de gestos sem osso, rodando o copo -
pequeno coreto onde dançam para
essas canções redondas que o peito geme,
cansados, trôpegos reflexos. Então,
metem-se-nos ao caminho umas
tipas sem rosto, adivinhando a nossa
sorte, facilitando o azar. Demorou

mas lá saí trazendo pela mão algum delírio,
oferecendo explicações à paisagem,
fundos de ruas malcheirosas, ecos sem saída,
flores aos ombros umas das outras
nesses canteiros onde o que mais bebem
é mijo. Como elas, eu também sou levado
em ombros. Os meus fantasmas todos
cantando. Como explicar o bem, a alegria
de andar pela vida fugido, e agruparmo-nos,
mijando às portas da alvorada.


    Pinto, Diogo Vaz. Bastardo. Lisboa: Averno, 2012, pp 92 - 94.
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29/10/13



“Languages symbolise identities and are used
o signal identities by those who speak them”

M. Byram, 2006

A aprendizagem de uma língua é um processo, para além de cognitivo, também cultural e intrinsecamente ligado às questões de identidade e contexto social, pelo que é interessante analisar brevemente o processo de reconstrução da identidade da RAEM e da sua população após a reintegração do território na China, o seu significado e implicações na expressão que a língua portuguesa tem atualmente no território.

Num interessantíssimo e exaustivo trabalho datado de 2009, “Sovereignty at the Edge: Macau and the Question of Chineseness”, Clayton designa aquilo que aconteceu em Macau como “sort-of sovereignty”, uma espécie de soberania partilhada, única no mundo. Segundo a autora, em meados de 1990, sabendo que em breve mais de quatro séculos de domínio português estavam a chegar a um fim negociado, a administração portuguesa montou uma grande campanha para convencer os residentes de Macau, 95 por cento dos quais chineses, de que podiam reivindicar com orgulho uma identidade que os tornava diferentes de todos os outros chineses: uma identidade resultante dos 450 anos de história não de colonialismo, mas de um tipo de soberania compartilhada, ímpar no mundo moderno. Este projeto exigia uma completa transformação da imagem de Macau como cidade retrógrada, colonial e decadente e da imagem da administração portuguesa como potência colonial corrupta e inepta que presidiu e beneficiou dessa decadência.

Entre os residentes, as reações foram diversas. Alguns consideraram a celebração precoce do estatuto cosmopolita de Macau como uma mudança positiva, diferente da visão habitual de Macau como uma Hong Kong fracassada e de segunda categoria. Outros discordaram com a visão do Estado sobre o que era a “verdadeira” identidade de Macau, mas consideraram que valia a pena questionar o que tornava Macau diferente da restante China. Muitos outros ainda rejeitaram este projeto de “identidade” como uma ficção patética de uma administração colonial moralmente falida.

Por seu turno, Kaeding, investigador da Universidade de Surrey, refere que os dados de um estudo que efetuou mostram que a maioria da população de Macau se identifica etno-culturalmente como chinesa e que a identificação cultural com a China continental é grande, embora seja comummente defendido que a identidade singular de Macau resulta da influência dos quatro séculos de domínio português. Para o autor, “the Portuguese influence on the city’s collective identity in general is largely restricted to the material culture and its architectonical heritage.”

No entanto, a tentativa de convencer os residentes de Macau de que eram diferentes de todos os outros chineses, devido à sua experiência de uma administração estrangeira não colonial, levantou questões prementes: o que era a “soberania”, tal que o passado de Macau podia ser interpretado como não colonial; o que era “chineseness”, em que é que os chineses de Macau eram diferentes, e de intersecção entre elas.

Clayton avança que a resposta a estas perguntas, promovida em museus e publicações patrocinados pelo governo português, definia soberania em termos de supremacia militar, política, económica e cultural. De acordo com esta versão, os portugueses não teriam sido colonizadores porque nunca a tinham detido. Não tinham usado a força para retirar o controlo de Macau aos Ming; a instalação portuguesa fora resultado da negociação e do compromisso. Durante 300 anos, tinham pago o aluguer do terreno às autoridades chinesas em troca da autorização para permanecer na Península de Macau; quando solicitados, forneceram valiosa ajuda militar aos governos Ming e Qing; os seus representantes tinham realizado o kowtow[1] ao imperador e aceitado títulos, um indicador de que tinham sido incorporados na burocracia imperial de Pequim. Durante 300 anos, tinham-se governado apenas a si mesmos, dentro dos muros da cidade, reconhecendo a sua dependência total perante o imperador mesmo para as necessidades mais básicas, como água e comida. De fato, em várias ocasiões, ao primeiro sinal de truculência portuguesa, as autoridades chinesas tinham ordenado a todos os seus súbditos para evacuar a cidade, obrigando os portugueses a submeterem-se pela fome.

Esta argumentação prossegue, defendendo que tal não significa que os portugueses tenham sido meros vassalos do império chinês; a coroa portuguesa agiu como governante supremo do território muitas vezes. Em 1586, por exemplo, o vice-rei de Goa, agindo na suposição de que ele, e não o imperador Ming, tinha jurisdição sobre Macau, elevou o seu estatuto administrativo de povoação a cidade. Em 1846, Lisboa mandou o governador Ferreira do Amaral declarar unilateralmente soberania formal de Portugal em todo o território, recusando-se a reconhecer a autoridade de qualquer oficial de Qing dentro das fronteiras de Macau, e reivindicando a jurisdição sobre a terra e as pessoas (tanto chinesas como portuguesas) muito além dos muros da cidade existente. Em 1887, os oficiais Qing tinham assinado o Tratado de Comércio e Amizade, que reconheceu "a perpétua ocupação e governo de Macau e suas dependências por Portugal". Mas mesmo assim, continua o argumento, quando a reivindicação formal de soberania sobre Macau foi aparentemente reconhecida pelo direito internacional, os portugueses nunca impuseram a sua língua, religião, ideologias políticas ou padrões educacionais ao povo chinês sob a sua administração. Assim, a história da presença portuguesa em Macau foi apresentada como uma soberania partilhada, uma “espécie de soberania”, em que a resposta para a pergunta "quem manda aqui?" foi inteiramente contextual e muitas vezes deliberadamente ambígua.

Tanto esta narrativa histórica como esta concepção da natureza do Estado português não permaneceram incontestadas durante a época de transição. Alguns residentes de Macau definiram colonialismo mais de acordo com o senso comum, simplesmente como qualquer ocupação estrangeira do solo chinês. Apontaram a estrutura do sistema político da cidade, que consistentemente beneficiou os portugueses e os falantes de português, para argumentar que toda a história da presença portuguesa tinha sido de natureza colonial.

Alguns estudiosos sugerem que o período “colonial” tenha começado apenas com a chegada de Ferreira do Amaral, em 1846, quando, influenciado pelo exemplo dos britânicos em Hong Kong, Portugal insistiu que a existência de uma povoação portuguesa autónoma em solo chinês era a evidência da soberania de facto sobre o território. Outros sugeriram que, independentemente da data do seu início, o período colonial terminou em 1966, quando manifestações e boicotes de inspiração maoísta forçaram a administração portuguesa a aceitar uma série de exigências que fizeram de Macau uma zona “semi-libertada”.

Mas houve um debate mais intenso sobre a questão de como o passado de Macau configurou o sentido de “chineseness” dos residentes de Macau. Na narrativa do governo, a “espécie de soberania” tinha feito dos residentes de Macau uma “espécie de chineses” – “chineses latinos”, como lhes chama Roderich Ptak. Essa transculturação evidenciou-se na arquitetura, na cozinha híbrida e no caráter mais tolerante e descontraído da cidade. Durante a época da transição, a pequena comunidade de Macau de moradores etnicamente mistos, conhecida como macaense, tornou-se o símbolo por excelência desse hibridismo: em termos fenotípicos, linguísticos, culinários, religiosos e genéticos, eles eram a expressão máxima do espírito de troca pacífica e generativa entre diversos povos que a administração portuguesa tentou reclamar como legado seu.

A Professora Wai-man Lam, da Universidade de Hong Kong, refere que em contextos pós-coloniais a identidade é uma arena de competição política onde vários discursos que encarnam reapropriação das tradições políticas e legados se cruzam. Na RAEM, a identidade do pós-handover compreende as componentes locais, nacionais e internacionais, com Macau caracterizada como um objeto colonial/cultural/histórico e económico híbrido. Para a autora, a identidade de Macau após 1999 é uma reapropriação da imagem da Macau colonial propagada pela administração portuguesa desde a década de 1980.

Com efeito, em 2011, o presidente do Instituto Cultural de Macau, Guilherme Ung Vai Meng, salientava em conferência de imprensa a propósito da promoção de um mega desfile cultural por ocasião das comemorações do 12o aniversário da RAEM que Macau era “uma cidade de cultura aberta”, “que apresenta uma mestiçagem de características ocidentais e orientais”, patentes “nas construções, gastronomia, hábitos locais, línguas e religião”[2].

A construção da identidade pós-handover alicerçou-se num processo de incorporação e não de repressão ou eliminação do “outro” – a construção de uma identidade nacional autónoma não tem sido a principal tarefa na reconstrução dessa identidade. Em vez disso, várias componentes identitárias foram deliberadamente promovidas e integradas. O sucesso do processo garantiu o relativamente suave reingresso na China e reforçou a legitimidade do novo governo da RAEM.

(a autora escreve segundo o novo acordo ortográfico)

*Investigadora da Universidade Aberta


  Dias, Ana Paula. Macau e as Fronteiras da Identidade. Macau, 2013.
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28/10/13



  " novos demais para a poesia "


depois de certa idade
há no amor
a mesma urgência em ficar
que um cadáver tem
dentro da morte

depois de certa idade
como frutos apodrecidos nas árvores
teimamos em não partir
quando de nós há muito se apartou
o amor

depois de certa idade
ficamos novos demais
para a poesia

 

  Pedro, Mbate. A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua, Antologia Poética. Maputo: Revista Literatas, 2013, p 231.
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27/10/13


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Vicious
you hit me with a flower
You do it every hour
oh, baby, you're so vicious

Vicious
you want me to hit you with a stick
But all I've got is a guitar pick
huh, baby, you're so vicious

When I watch you come
baby, I just want to run far away
You're not the kind of person around I
want to stay

When I see you walking down the street
I step on your hands and I mangle your feet
You're not the kind of person that I want to meet

Oh, baby, you're so vicious
you're just so vicious

Vicious
hey, you hit me with a flower
You do it every hour
oh, baby you're so vicious

Vicious
hey, why don't you swallow razor blades
You must think that I'm some kind of gay blade
but baby, you're so vicious

When I see you coming
I just have to run
You're not good and you certainly aren't
very much fun

When I see you walking down the street
I step on your hand and I mangle your feet
You're not the kind of person that I'd even want to meet

'Cause you're so vicious
baby, you're so vicious
Vicious, vicious
vicious, vicious
Vicious, vicious
vicious, vicious
...
       Lou Reed
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24/10/13

Uma conversa tida esta semana com a jornalista e poeta Maria Augusta Silva, In Site "Casal das Letras":
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                                    VICTOR OLIVEIRA MATEUS
                               «Continua a insistir-se numa conceção
                                         de escola burocratizada
                                   e que tresanda a Idade Média» 
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Autor que tem a mestria de casar o clássico com a modernidade, da sua poesia disseram entre outros: Olga Savary: «Como um espia ou um detetive de afetos, abandonando-se num tufo de metáforas, eis a periculosidade do poeta, especialmente do poeta português Victor Oliveira Mateus. Nas asas da poesia, Victor solta os pássaros e canta — e voa. (…)». Cláudio Neves: «Victor escreve no limite entre a poesia e a prosa, e nos faz crer que o faz sem perigo — quando, nesse perigoso limite, muitos poetas de diversos calibres se têm perdido.» Alexandre Bonafim: «(…)Em sua escrita, o deserto torna-se região das especulações filosóficas, dos encontros e desencontros com o outro. Aliás, o deserto de Victor possui uma ambiguidade importante. É nesse espaço que o eu lírico vivenciará tanto a solidão quanto o total da entrega ao outro-amado. Para Victor, somente o mergulho no exílio do mundo e do outro poderia gestar o arrebatamento dos encontros profundos(…)». Maria Augusta Silva: «(…) Uma escrita na qual as palavras são a mágica tranquilidade (sábia viagem) com que o poeta tem vindo a trabalhar a consciência do texto.» Ana Paula Dias: «A forte aptidão metafórica da poesia de Victor Oliveira Mateus, pelo inesperado de certas associações lexicais e pelo fulgor de imagens extremamente certeiras e originais, consubstancia-se numa fala subtil que se move em torno do movimento em direção ao Outro e da noção de Ausência; nela joga-se a inquietação do sujeito num mundo polarizado entre o Absurdo e a Graça, o Efémero e a Luz (…).» Henrique Levy: «(…) A poesia de Victor Oliveira Mateus ensina-nos o poema como semente aquecida no coração da memória, resgatada pela alma, oferecida e alimentada pelo corpo. Comovem-me as palavras, as letras, a ética do poema (…)».


Ter a sua obra poética distinguida com o Prémio Eugénio de Andrade da União Brasileira de Escritores representa o quê ao fim de muitos anos de escrita?
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  Há sempre uma determinada alegria quando sentimos que o nosso trabalho ecoa noutras mentes, noutras regiões, contudo penso que é importante aceitarmos, com muita prudência, tudo aquilo que nos é dado, pois o excesso de confiança pode condicionar a violência da queda. Foi grande a minha satisfação, foi grande a minha gratidão para com aqueles que de mim se lembraram. Mas no essencial sigo sendo o mesmo.
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Um dos versos de Eugénio de Andrade era, e mantem-se, profundamente perturbador: «Quando se morre?». O Victor achou alguma vez resposta para esta interrogação?
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  Jaspers fala do confronto com a morte como uma dessas situações-limite, que, pela sua inexplicabilidade, nos estimula a ousadia do procurar respostas.
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Já se confrontou com a morte? 
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   Por volta dos trinta anos. Dois anos dialoguei com ela todos os dias. Não parti… não parti e nunca mais pensei nela! A questão da morte não me atormenta, aliás, numa das suas entrevistas Clarice Lispector diz que o escritor morre muitas vezes. Somos ínfimos e estamos de passagem, urge não esquecer isso. A questão que me atormenta é outra: «Que coisa é esta a que chamamos vida?»
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Se ainda pudesse falar com Eugénio de Andrade, que gostaria de contar-lhe?
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   Não conheci pessoalmente Eugénio, privei (e privo) com poetas igualmente grandes dessa geração; por esta minha experiência, não me parece que aquilo que, eventualmente, tivesse a dizer-lhe lhe pudesse interessar, assim como, talvez por egoísmo, preferisse escutá-lo a falar. Pertenço a uma geração de autores que, sem cair num encumear artificioso, cultivou sempre uma sentida deferência para com as gerações anteriores.
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Já descobriu um pôr-do-sol mais fascinante do que o da praia de Lefteris, de que nos fala no seu livro A Irresistível Voz de Ionatos?
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   Interessante a pergunta. A Gulbenkian chegou a proporcionar um encontro entre mim e Angélica Ionatos, aquando de um dos seus concertos em Lisboa. Eu estava com uns amigos e ela ficou surpreendida por ter inspirado um poema tão grande como aquele. Não sei se vi algum pôr-do-sol mais fascinante do que esse de que fala o meu poema… todos são simultaneamente iguais e diferentes. 
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 E cada um de nós olhará a natureza de modo diverso…
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   Não tenho uma visão cartesiana da Natureza, da qual derivam muitas visões poéticas, sobretudo as que se fundamentam num certo niilismo individualista; a minha Natureza é sagrada, é a que vem de Plotino e dos Renascentistas, mas já estou a fugir à pergunta…
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Algum homem poderá ser uma ilha?
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   Neste momento travo uma luta com François de Singly exatamente por causa desse tema. Olho com alguma desconfiança as virtudes do individualismo, ou melhor, reconheço que as ilhas podem ser belas e regeneradoras, mas temo que elas esqueçam os arquipélagos para que sempre tendem.
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Trabalha a sua poesia com uma incontestável sobriedade estilística. Requere muito ofício até chegar a esse apuro?
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   Sou cauteloso, talvez seja isso. Não quero que aquilo que me sai das mãos resulte de um qualquer tipo de trabalho exclusivamente formalista e alheio à vida concreta dos homens. Isto não é um juízo de valor, estou só a falar de mim. Cada um tem o seu caminho e o meu passa por uma Escuta atenta daquilo que Há e pela tentativa — tantas vezes gorada! — de que esse Sentido se possa desvelar através do dizer poético.

A formação que tem em filosofia ajudou-o enquanto poeta?
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   Para ser franco não tenho um distanciamento de mim que me permita dizer algo sobre isso. Quando escrevo um artigo, quando faço uma recensão, é um facto que no meu fazer está sempre aquele aparelho teórico da filosofia e creio que o mesmo sucede nos poemas. Sim, acho que a filosofia em mim tem algo de condenatório: infiltra-se no interior do verso independentemente da minha vontade.

Que diz agora o poeta ao filósofo? Que diz o filósofo ao poeta?
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   É o poeta que deve dizer ao filósofo, penso. Os Antigos sabiam isso. A poesia liga-se a um olhar primeiro, a um olhar que visa o originário e, nesse sentido, a filosofia joeira aquilo que lhe chega através de uma sucessão de olhares; a filosofia, quanto a mim, padece de uma menoridade ontológica na sua relação com aquilo que Há.
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Foi professor de Filosofia. Colheu muitas lições dos seus alunos?
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   Lamentavelmente, nos últimos anos, ensinaram-me muito pouco, ensinaram-me tão-só aquilo que não deve ser a escola. Há uma profunda hipocrisia no modo de viver hoje o ensino: por um lado fala-se de desmotivação, de abandono escolar, etc. Por outro lado, continua a insistir-se numa conceção de escola burocratizada e que tresanda a Idade Média.
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Entretanto, na arte da tradução, de que autor se sentiu mais próximo ao traduzi-lo? 
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  Voltaire. Tenho uma profunda admiração pelo séc. XVIII francês, mais especificamente por Voltaire, autor que sempre me fascinou.
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Neste momento, qual a palavra que gostaria de sublinhar na sua «gramática dos afetos»?
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  Paixão. Os seres incapazes de se apaixonar assustam-me, muitos deles rondam as psicopatias e, quando frios e ávidos de poder, são perigosos, mas prefiro não desenvolver o tema…
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Pois… E a velhice assusta-o?
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   Não. Assusta-me a decadência, que pode surgir em qualquer idade, a velhice não. Há um excelente romance de Louise Weiss sobre a velhice, Dernières Voluptés, e um outro da Vita Sackville-West, Toda a Paixão Abolida. A visão que temos hoje da velhice é aquela que a moral burguesa e a sociedade dos números tem vindo a difundir: o velho-fardo, o velho-não-produtivo, o velho-que-já-está-atrasado-para-a-morte, etc. É dentro deste paradigma que a velhice assusta. Mas nem sempre foi assim e pode nem sempre ser assim: tive amigos de muita idade, alguns grandes escritores, com quem aprendi imenso.
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Num só verso, como resumiria o nosso país?
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  Que Camões me perdoe a soberba:
"Ó glória de mandar, ó vã cobiça". 
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 OUTUBRO DE 2013, In Site "O Casal das Letras"

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23/10/13


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A apresentação do novo romance de Ana Cristina Silva, "A segunda morte de Anna Karénina", que ocorreu ontem em Lisboa, na Livª Barata, foi um autêntico sucesso. A Ana Cristina Silva é uma grande romancista (não só escreve exemplarmente como também fala de coisas importantes!) e a Maria João Luís é, de facto, uma excelente actriz. No final da sessão, já à porta da Barata, eu, o Henrique Levy e a Maria João Luís conversámos sobre vários temas afins ao livro: a questão da máscara, o homem como actor social, etc.,etc... descobri que ela não é apenas a grande actriz que todos conhecemos, mas também uma mulher muito interessante. Parabéns a todos os organizadores deste evento!
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22/10/13

(A UNIÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES - R.J. acaba de publicar a lista dos autores agraciados com o PRÉMIO DA DIRETORIA, dessa lista constam os portugueses Gonçalo Salvado (Prémio Sofia de Melo Breyner), Victor Oliveira Mateus (Prémio Eugénio de Andrade) e Pedro Miguel Salvado. Dos autores brasileiros salientemos: Antonio Carlos Sechin, Olga Savary e Ronaldo Cagiano... A cerimónia de entrega dos Prémios ocorrerá no próximo dia 25, pelas 15h00, no Auditório Magalhães Junior da ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Segue a lista completa dos escritores premiados:)
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Como acontece todos os anos, a União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, através de sua Diretoria, elege os melhores livros e autores do ano de 2012, que recebem os seus honrosos prêmios na primavera carioca, com o nome de consagrados escritores das letras brasileiras. A solenidade da entrega dos prêmios neste ano será no salão nobre da Academia Brasileira de Letras, no dia 25, às 15 horas.
Um dos premiados nesta temporada é o escritor baiano (de Itabuna) Cyro de Mattos, que irá receber a láurea Jean Paul Mestas por seu livro “De tes instants dans le poème/De teus instantes no poema”, publicado pelas Editions du Cygne, Paris, na coleção Poesia do Mundo, com prefácio de Margarida Fahel, professora da UESC. O poeta Pedro Vianna, também receberá a mesma láurea por sua versão do livro para o francês. Com este prêmio, Cyro de Mattos alcança a marca de dez láureas concedidas pela UBE/RJ, entre livros de poesia, literatura infantojuvenil e organização de antologia.

Eis a relação dos autores premiados neste ano e seus respectivos patronos:

PRÊMIO GUILHERME DE ALMEIDA para PAULO BOMFIM PRÊMIO
GUIMARÃES ROSA para FÁBIO LUCAS
PRÊMIO FERNANDO PESSOA para ANTONIO CARLOS SECCHIN
PRÊMIO CASTRO ALVES para DIEGO MENDES SOUSA
PRÊMIO MACHADO DE ASSIS para MIGUEL JORGE
PRÊMIO HENRIQUETA LISBOA para YEDA PRATES BERNIS
PRÊMIO BENEDITO NUNES para OLGA SAVARY
PRÊMIO JOÃO CABRAL DE MELO NETO para MARCUS VINICIUS QUIROGA
PRÊMIO HERNÂNI DONATO para FERNANDO PY
PRÊMIO BARBOSA LIMA SOBRINHO para CÍCERO SANDRONI
PRÊMIO MONTEIRO LOBATO para LAURA SANDRONI
PRÊMIO CLARICE LISPECTOR para BEATRIZ ROSA DUTRA
PRÊMIO VINÍCIUS DE MORAES para ELISA FLORES
PRÊMIO ADONIAS FILHO para OLÍVIA BARRADAS
PRÊMIO PAULO RÓNAI para LÍVIA PAULINI
PRÊMIO CASSIANO RICARDO para LEILA ECHAMIÉ
PRÊMIO ZILA MAMEDE para ELIZABETH MARINHEIRO
PRÊMIO PEREGRINO JÚNIOR para NELSON PATRIOTA
PRÊMIO CLEMENTINO FRAGA para ABÍLIO KAC
PRÊMIO ADÉLIA PRADO para MARIA AMÉLIA AMARAL PALLADINO
PRÊMIO MANUEL CAVALCANTI PROENÇA para IVAN CAVALCANTI PROENÇA
PRÊMIO MARGARET MEE para EVANDRA ROCHA
PRÊMIO WALMIR AYALA para JUÇARA VALVERDE
PRÊMIO MURILO MENDES para JOSÉ SEBASTIÃO FERREIRA
PRÊMIO CHICO BUARQUE DE HOLANDA para COLBERT HELSINBORG
PRÊMIO FLORBELA ESPANCA para IDALINA P. A. GONÇALVES
PRÊMIO SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDERSEN para GONÇALO SALVADO
PRÊMIO JOSÉ SARAMAGO para MIGUEL BARBOSA
PRÊMIO EUGÉNIO DE ANDRADE para VICTOR OLIVEIRA MATEUS
PRÊMIO ANTÔNIO OLINTO para RONALDO CAGIANO



 

21/10/13



          " Todas são ridículas "

  Joaquina escrevia cartas de amor, quase todos os
dias, ao seu "adorado" António. Acabava com "tua para
sempre" na sua letra redonda e miúda. Dobrava
cuidadosamente a folha, de linhas azuladas e
introduzia-a no envelope, que tinha forro violeta.
Depois de escrito o endereço postal, metia a carta por
uns segundos no decote, como para lhe transmitir
algo da própria pele. Sandra recebeu um sms do Hugo.
Guardou nas mensagens recebidas para reler de novo.
Era do rapaz que tinha conhecido na véspera. Trazia
muitos sinais redondos a enviar sorrisos e muitas
abreviaturas de palavras, como por exemplo: Bjs.
tinha armazenado na pasta respectiva do pequeno
celular, várias mensagens daquelas, do Tiago, do
Rodrigo, do Diogo, do Afonso... Só ainda não tinham
descoberto a abreviatura da palavra "amor". Ignora-se
porque certas palavras resistem à queda das letras,
por muito tempo...


  Lourenço, Inês. Ephemeras. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2012, p 27.
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   " Ranho  Baba  Merda "

 - Mas isso é um verso?
 - É.
 - Mas esse gajo não é um que fala de gaivotas, e
tretas de sol e gatos?
 - Pois, fala de todas as tretas que há no mundo e de
outras por haver. Já estou a notar que és daqueles que
acham que a poesia ou tem asinhas ou tesão. A
metafísica e o tesão ou a sua falta, podem dispensar-
se. Há tanta outra coisa para olhar, não?
 - Mas esses tipos, os tais poetas, não fazem uns
livros merdosos, fininhos, só com um bocado da
página escrita?
 - Piadola pouco original, essa. Estás farto de saber
que uma frase pode dizer mais coisas do que meia
dúzia de best-sellers digestivos e imbecis.
 - Mas esses é que interessam à maralha e têm capas
porreiras. Não achas que a vida é imbecil e temos de
procurar digeri-la com capas porreiras?
 - É uma maneira de ver a coisa. Se calhar, há fases
assim...
 - Bem, pensando melhor, "merda" e "gaivotas" têm
muito a ver, porque na minha rua os tejadilhos dos
carros fartam-se de apanhar lostras desses poéticos
bichos.
 - Não ajavardes...
 - Afinal, quais é que são os bons poetas?
 - Não há um poetómetro, claro, apesar dos esforços
de fazedores de cânones. A boa poesia tem tudo: uma
coisa e o seu contrário.
 - Como assim?
 - Olha para este outro verso de mesmo gajo, dos
gatos e do sol, como dizes, mas também da baba, ranho
e merda:
 Não colecciones dejectos o teu destino és tu.


  Lourenço, Inês. Ephemeras. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2012, pp 40 - 41.
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20/10/13



       14.

Quando o náufrago aparece
na rebentação, a fonte seca e todos
os cântaros racham com o sopro da água.

Há um grito no cimento molhado
e as ruas fecham-se como se assistissem
a um eclipse. Alguns telhados caem para
dentro das casas e as janelas explodem
com o vento.

É uma dor antiga que chega_________

que vem ocupar o lugar que lhe pertence.
É o corpo desfeito do homem que
tenta reconstruir-se na memória da vila,
que vem para se intrometer no luto,
como um vírus.


  Rocha, Jaime. Mulher inclinada com cântaro. S/c.: volta d'mar, 2012, p 20.
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19/10/13


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Ícaro, de Victor Oliveira Mateus, esta vez, traducido al italiano por Marcela Filippi Plaza. Un mismo poema recorriendo tantos rincones del silencio, tantos Ícaros diferentes sobrevolando un mismo laberinto...

ÍCARO
A Miguel Veyrat

Liscia le piume nell'angolo del davanzale
dove il petto -oramai senza canto- gli ravviva
pene di un altro tempo, quando l'attesa
per qualcosa di nuovo era un' asta in mezzo alla furia dei venti.

Allineale per colore, grandezza,
dolcezza, e con esse sfida il sole, i tiranni,
tutto ciò che senza desiderio puro rifiuta ali
per ricevere il danno, il fango o la tortura.

Liscia le pene nell'angolo del davanzale,
al contrario delle minacce di Minosse, i labirinti
di Cnosso e il suo risentimento, il ruggire delle macchine
giù per la strada: mistione di felicità e disfacimento.

Accarezza le ali ormai esaurite e appoggiato sul cristallo
scuro del balcone, rattrista la futura caduta, cera
e audacia, fuse per far nascere così le isole,
terre verdeggianti e tutte le cose promesse.

Victor Oliveira Mateus, (traducción de Marcela Filippi Plaza).
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18/10/13


.ÍCARO
a Miguel Veyrat

Alisa las plumas en el rincón del alféizar...
donde el pecho –ya sin canto- le aviva
penas de otro tiempo, cuando la espera
de algo nuevo era mástil en la furia de los vientos.

Alinealas por color, tamaño,
la dulzura, y con ellas desafía al sol, los tiranos,
todo lo que sin deseo puro rechaza alas
para aceptar el daño, el fango o la tortura.

Alisa las penas en el rincón del alféizar,
al revés de las amenazas de Minos, los laberintos
de Cnossos y su despecho, del rugir de los coches
calle abajo: mezcla de felicidad y destrozos.

Acaricia las alas ya acabadas y, apoyado en el cristal
oscuro del balcón, entristece la futura caída, cera
y osadía derretidas, para que así nazcan las islas,
tierras verdeantes y todas las cosas prometidas.

Victor Oliveira Mateus. (traducción, Marta López Vilar) in Cintilações da Sombra. Fafe: Editora Labirinto, 2013.

Sonando: Βγάλε φτερά και πέτα ("Ponte unas alas y vuela"), de Costas Pavlidis...

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17/10/13



 " Últimas palavras de Adèle H, em Villequier "


É agora público e notório
cercada de árvores afiladas
pedras demasiado pesadas
o Sena que corre perto, negro de naufrágios
o mar enrolado em ondas, a seguir

A tua distância
fez de mim animal furtivo
e tão duvidosa a reputação
Tornou-se o mundo extenso terreiro
do jogo da cabra-cega
basta muito abrir
e muito fechar as pálpebras
edificar os planos do breu
e demasiado brilho
para os olhos aguados

São teus os lugares que perdi
no desacerto das estações
deriva de barcaças sucessivas
intermináveis estrados em suspensão
Deambulei pelos quartos vazios
ao calor tropical ou nas agudas
afiadas facas do frio
Era esse o modo como, de tão longe
me abraçavas, me colavas
os vestidos aos bicos dos seios
os enregelavas
com o bafo das sombras

Sabei agora que o tempo se faz
do que em nós é vendado
de iniciais e coisas apagadas
do esquecimento que as flores reabrem

Sabei que o meu nome é apenas paixão
que a luz se entranha do leito de mármore
e as chuvas regressam para que
dias e noites inteiros se percam

E pudesse eu dizer, para sempre
algo que fosse verdadeiras e últimas palavras


  Silva, José Manuel Teixeira da. O Lugar Que Muda o Lugar. S/c.: Língua Morta, 2013, pp 22 - 23.
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16/10/13



Nada se pode acrescentar
Ao que tenhas a pedir
Se souberes como e quando.

Há sempre um pouco mais
Naquilo que irás encontrar,
Assim deixes que o tempo passe
Mais lento do que o que está

Conforme os gestos e a agitação
De quem tudo sabe e vê. Nada
Se silencia no que vives
Perto ou longe da casa do coração,

Pois tudo cresce para ser,
Ainda que o sopro das vozes
Se faça da intranquilidade do vento.


    Almeida, Rui. Leis da Separação. S/c.: Medula Editora, 2013, p 36.
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15/10/13


(...)
Ora viva! Como tem passado?
Está bonzinho?
Estas lapelas acusam cansaço
E o pescoço
Desce em pregas sumidinho

.....

Desempregado!
Busque - busque
O ossinho há-de surgir
Para roer

....

Pois - na verdade
O contentor recheadinho
Abre a porta
A cada estômago
Que se torce apertadinho
Por não saber entender

....

Não. Não. Nunca se sinta só
Indignado? Como?
Tenha juizinho
Mantenha a calma
Há que colaborar no tempo
De calar as mãos
Por ser nobre o servicinho

....

Ai! Por favor
Não diga isso
Eles até vão sofrendo
Injustamente
Falhazinhas de calvície
Ao salvar o paísinho

....

Pois - pois
Bem sei do suplício
Milhares de toca perdida
Alternar? E a honrazinha?
Como sabe
Assim é por ser preciso

....

Oiça. Quer um conselho?
Deixe correr a vidinha
Respire na rua o consolo
Afinal
É preciso saudinha


   Puga, Ana Maria. Área de Serviço. Fafe: Editora Labirinto, 2012, pp 11 - 13.
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Existe um muro ali na frente,
que transposto
mostra o outro lado,
o rosto não visto,
o colostro por engano bebido.

Muro que protege,
inibe, esconde o monturo,
o pulo herege;
muro que resguarda a desventura.

Existe um muro ali na frente
de súbito, per si, transparente.
A mente vem aos olhos,
vejo rosas e aromas:
arremesso-me.
Vejo dragões, serpentes aladas,
medusas, coisas escusas:
prosto-me vencido.

Acordado há pouco
vejo o muro,
tão visto e acostumado
faz sossegar-me.
Mas que sossego tolo,
se existe ali na frente um muro.


   Queiroz, Vladimir. Nuances. Salvador: Ed. Autor, 2012, p 59.
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14/10/13


DIA 26  DE  OUTUBRO, PELAS 17H00, NA CASA DE CULTURA JAIME LOBO E SILVA, NA ERICEIRA.
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13/10/13

 
Rui Almeida, Manuel A. Domingos e Victor Oliveira Mateus, Sociedade Guilherme Cossoul (Campolide) em Lisboa, 12 de Outubro de 2013.
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                               Apresentação do livro Leis da Separação de Rui Almeida

 

     Têm os títulos dos livros, bem como as suas epígrafes, a função de nos introduzir no horizonte ou intriga que virão a ser desenvolvidos. Assim, no mais recente poemário de Rui Almeida, a expressão Leis da Separação aponta-nos para algo de fixo e invariável, que, uma vez colocadas e respeitadas condições igualmente estáveis, produzirão necessariamente os mesmos resultados. Podemos aqui, por conseguinte, partir de um eu-poético que se assume a si próprio como distinto da multidão, incapaz – por recusa ou por aspectos de personalidade – de participar nos rituais do turbilhão que o cerca: “Pode a memória de um cheiro gerar/ O pequeno lucro do afecto/ Ou queimar o erro da norma?” (p. 8); “Pela manhã são vistos, apressados,/ A caminho do dia, da sequência monótona/ Para onde se esvai toda a grandeza/ De cada olhar. Nem se notam” (p. 16); “De onde vem tanto barulho?/ Que espécie de riso se expande/ Por corredores estreitos, entre paredes,/ Para chegar ao vácuo da rua?” (p. 24). O apreender-se a si próprio como destoante e separado do vulgo incute no eu-poético indeléveis marcas de: uma radical solidão interior – “Próximo e para lá/ Do que cabe numa linha/ De texto formatado,/ A possibilidade de tocar/ Uma outra existência/ Alheia à distância e ao peso/ Da matéria” (p. 9), “Será possível tocar/ Na pele do rosto de um semelhante/ Sem deixar de sentir/ A sua temperatura?” (p. 24); intensos reflexos de angústia e dor – “E quando te cansas/ Dessa alma de borracha,/ Tão maleável…// Aceleras o coração,/ Acordas surpreendido// E reparas/ Que te faltam/ Mãos e braços” (p. 30), “(…) A noite tem textura/ De caminho difícil até/ Ao limite do mais belo.//(…) Devagar é noite e dói/ Subir à montanha com os olhos.” (p. 34); um vincado desalento tangenciando mesmo, por vezes, um certo pessimismo – “A isto se chama devastação,/ Cinza erguida, totens/ De negro carvão. Nada.” (p. 35). Estes estados, que esboçam o perfil de um sujeito que enceta uma plurifacetada busca na compreensão de si, do Outro, daquilo que o cerca e também daquilo que ele intui que o transcende, estes estados – dizia – são as já referidas condições de partida desse tal olhar perscrutador.

      Mas o caminho apresenta-se, neste cismar poético, eivado de escolhos, já que o poeta jamais designa através de um conceito unívoco esse território que lhe surge como fundante, não só da sua busca, mas igualmente do seu estar-aqui, e isso ocorre não por qualquer vacilação do olhar, mas porque ante o inominável serão sempre poucas e redutoras as palavras, mas, apesar de tudo, ele insiste: “Ao que pode e não pode rouba sempre/ A morte, assombra a quantia/ Lenta do alto. “ (p.8), esta ideia do Alto surge-nos ainda no poema da página 14; o eterno - “Longe, a ideia de continuar/ Sempre a sentir/ O movimento,/ Distinto da realidade/ Sustida pelo tempo,” (p.9); “A paz, podem dizê-lo,/ Tem curvas breves:// É frágil em seus limites/ Irracionais.// O lugar das coisas invisíveis/ É a flor dos silêncios.” (p. 11); o centro - “Queres e não vês/ E tomas o acesso/ Mais directo ao centro/ E há nevoeiro e não chegas/ A tempo, mas onde?,//(…) e não sabes/ Onde chega a tua força/ E não tens lugar/ E não ouves e não cantas/ A breve melodia.// E ainda assim.” (p. 40). Esta consciência de uma incapacidade estrutural que é intrínseca ao acto de nomear o que está para além de um aqui imediatista, já o poeta a tinha sentido em livros anteriores: “Ascende ao presente a vaga/ Firmeza aplicada ao que sucede,/ Distracção do tempo/ Assumida em palavras sobrepostas/ Para construir um nome. ( in “Caderno de Milfontes”, p. 12). Este pudor, ou este recato, do nomear jamais é incompatível com a necessidade de busca, e isso surge-nos logo a partir do primeiro livro de Rui Almeida: “É por não buscarmos o que nos salva ou/ Por não sabermos beber da secura dos lábios/ Que nos transportamos para fora dos campos/ Sujeitos à pequenez e à aparência de abundância/ Como seres que perderam a consciência do riso. “ ( in “ Lábio Cortado”, p 7). A inquirição poética contida em Leis da separação surge-nos marcada por quatro aspectos fundamentais: a Dúvida – o poeta, nunca chama a si posições de carácter dogmático ou onde uma certa assertividade se apodere da sua escrita, isto é, os momentos de angústia e de desalento acima referidos aparecem, algumas vezes, geminados com momentos de: dúvida - “Cada passo é próximo/ Demais para chegar// A um fim. Incerto/ Limite/ Do fluxo da vida.” (p.31), “Mais acima e mais para dentro,/ Sustentado por ideias,/ Possibilidades de sonho// A concretizar/ Em caminhos de areia/ Solta por entre/ Abundante vegetação.” (p.32); ironia, muitas vezes magoada – “Iremos aparecer,/ O nosso rosto será/ Visível em fotografias,/ Muitos anos depois,// E sairemos bem/ na contramoda que construirmos.” (p. 12), “ Todos felizes da vida/ por serem humanos;/ Até o maneta,// Que atrapalha o trânsito/ Com obscenidades/ Por não ter nada a perder.// (e esse mais do que os outros)” (p. 17); de utilização, aqui e ali, de um argumentário poético alicerçado em Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino, nomeadamente as Teorias da” Matéria e Forma” e a da” Potência e Acto” - “Age no poder da forma o cheiro/ Da memória, assinala/ O fim da leitura… “ (p. 8), “ Distinto da realidade/ Sustida pelo tempo,// Concretizado no acto/ de ir ao encontro.” (p. 9), “Até às formas completas/ Que revestem o essencial.” (p. 26); a ideia de ciclo - o itinerário do eu-lírico (como o da criação poética expresso, subliminarmente, no poema da página 22), nesta sua errância por um aqui que lhe surge assumidamente imperfeito e lacunar, não aparece como um processo linear onde as etapas se somem umas às outras, na poesia de Rui Almeida são recorrentes as hesitações, as dúvidas, a consciência da sua própria fragilidade, onde o eu vacila para logo se reerguer e retomar o seu caminho, aliás, não é por acaso que as referências à noite, à nevoa, à sombra, etc., como instâncias impeditivas ou bloqueadores da acção, são abundantes nesta obra: “ A paz, podem dizê-lo,/ Tem curvas breves:” (p. 11), “Encerram as fontes/ Fragmentos/ Ciclos de esperança,/ Respostas incertas.” (p. 26).

      A separação que o poeta, como vimos já, sente relativamente à conformidade, ao turbilhão, à essencialidade do Outro e ao que intui subsistir para além do Aqui, e que ele assume com uma lucidez angustiante e com o desalento próprio de quem teme que esse qualquer encontro redentor não venha, alguma vez, a ser possível, afasta a poesia de Rui Almeida, pelo menos no que diz respeito a este livro, dos intentos poéticos de outros autores: Vergílio Alberto Vieira, nas suas últimas obras, é claro quanto à identificação da transcendência (que ele significa sempre com maiúscula!) e a sua espera jamais aparece como dolorosa ou atormentada: “ Nada vêem os olhos, que tudo vêem,/ com a primeira luz do dia;/ a treva que, a pouco e pouco, das minhas mãos/ se afasta é, agora, que nada me pertence,/ pertença minha; um ramo de sombra apressa então/ a inquieta brancura do caminho.” ( in “Amante de um só dia”, p 13); em José Tolentino Mendonça são também bastante atenuados os momentos de desconforto e insegurança na espera: “ Os naufrágios são belos/ sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?” (in A que distância deixaste o coração”, p 28), “Nenhuma sombra ameaça tua porção de luz/ ainda que solte o vento/ medos antigos pelos atalhos// Uma só palavra restitui/ a imensidão “ ( Idem, p. 41), “ Nós não os ouvimos/ mas os desertos, os oceanos, os cimos remotos/ ensinam-te finalmente o que não entendes// Descobres uma casa/ noutras direcções/ a igual distância/da vida que deixamos para trás” ( in “ O viajante sem sono” pp. 35 – 36),aliás, esta ideia de manter a sombra à distância era já visível  num livro anterior de Tolentino Mendonça: “Se fechar meus braços outro os abrirá/ no escuro da roda as orações são perpétuas” ( in “longe não sabia”, p. 13). Uma outra plêiade de autores encontra-se ainda  mais distanciada da poesia de Leis da Separação, grupo esse que pode ser exemplificado aqui através da escrita laudatória de José Augusto Mourão: “ tu semeaste no nossa vida/ a semente do infinito e da beleza/ para que em cada tempo brotem formas novas/ de convivialidade e graça entre aqueles/ que a dor performa e acinzenta “ ( in “ O nome e a forma”, p. 121). O modo como Rui Almeida estabelece, e vivencia, AS LEIS DA SEPARAÇÃO aproximam-no antes de poetas como: Maria Carpi, Daniel Faria e até mesmo de Paul Celan. Veja-se, por exemplo, a última estrofe do poema da página 33: “Só com a grande coragem/ Da desilusão/ Se chega ao riso mais branco/ Por dentro.”, compare-se agora esta estância com um terceto de Maria Carpi: “não tenho mãos/ O meu ofício/ não é cinzelar; tão só pedra bruta/ ser, dentro das entranhas do ver.” ( in “A força de não ter força”, p 88). A desilusão (ou o não ter mãos) não serão, então, condição necessária ao aplanar de todo um território a partir do qual agora, e de modo estruturalmente diferente, se possam edificar pontes? Dito de outro modo: colocadas que foram as variáveis necessárias da vivência poética (inconformidade, angústia, solidão interior…), respeitadas depois as condições da errância e da inquirição ( dúvida, ironia, busca cíclica…), não se chegará, necessariamente na óptica do poeta, a um resultado insofismável que fixará a lei, e que será, neste cismar poético, a visão de que o todo é fragmentário e onde tudo é separado de tudo? Sendo assim, o poema da página 39 – já prenunciado pelo da página 36 – surgir-nos-á como corolário da magnífica e bem desenhada aventura poética traçada por Rui Almeida em Leis da Separação , e que é essa certeza do coração (cf. poemas das páginas 21 e 26, bem como a pouca fiabilidade concedida aos sentidos e à razão esparsa pelos vários poemas) de que só apreendendo a separação, poderemos (ainda) aceder a essa “Coisa mais simples e mais/ Larga, anterior à necessidade/ De justiça.” (p.39) e nela, finalmente, encontrarmos acolhimento e aconchego.

 

 
                                                                                       VICTOR  OLIVEIRA  MATEUS
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11/10/13

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“ Helena em Tróia, os últimos momentos “

 

 Lembro as noites de sufoco com os pássaros
encalhados no topo das torres, com a luz
a torcer-se nos meus olhos e o calor,
já prenúncio de desastre, descendo em ameaça
a rigidez do Parnón para ali se misturar
com a passividade das ovelhas, com o desalinho
ofensivo das cabras, com o relincho selvagem
dos cavalos a saciarem-se, alheios a tudo,
nas águas frescas do Eurotas. Lembro
a minha perda ainda mal desenhada na erva
tenra das margens, enquanto os deuses,
em conluios de quem tudo pode, me preparavam
armadilhas fortes e sem possível escapatória.

 
 
 Lembro as lautas refeições noite adentro
onde o riso dos homens se enredava na vileza
partilhada e a gordura lhes escorria pelas barbas,
enquanto  o cheiro da urina se misturava
com o do porco bravo a voltear sobre um fogo
intermitente. Lembro os movimentos
voluptuosos das dançarinas, mulheres encenando
o que não sentiam, para o simultaneamente
boçal e frouxo apetite dos homens. Lembro
as guturais entoações dos poetas, espécie
sempre indecisa entre a inveja e a concupiscência
da alma, arvorando entoações de ouro
nos míseros recipientes onde recebiam as esmolas.
 
 
 
Lembro também os músicos, tão desacompanhados
de tudo, os guerreiros – impotentes como todos
os guerreiros -, os estrategas, os generais, os nobres…
E lembro sobretudo a presença de Hermíone,
com os seus nove verões recém concluídos,
a acenar-me por entre a rudeza dos convivas
e do abandono a que, em breve, a votaria –
eu, qual funesta mãe a quem o ventre deveria
ter sido mirrado à nascença, para jamais trocar
filha por salvação própria em braços de homem
raro, homem que me perdoaria um passado
só de corpo, de fealdade da mente, de prazeres
grosseiros, como grosseiro fora tudo antes dele.

 
 
Lembro esse mesmo homem a atravessar
a cidadela, a entrar no pavilhão entre a falsa
ousadia varonil e o engaste de um desnorte
verdadeiro a esconder-se por detrás de tudo
o que em Heitor era missão e primazia. Vi-o
e soube de imediato a que perda estava destinada,
a que fim me conduziriam todos os caminhos
que se emaranhavam agora do meu promíscuo
passado a esse barco que no porto me sabia esperar.
E, quando ele finalmente reparou em mim,
percebemos ambos que nenhuma saída era já possível;
que Apolo, senhor do sol e de todas as luzes,
de nós se apropriara como exemplar fulgor do eterno.

 
 
Páris Alexandre, sussurravam as criadas o seu nome,
gritavam-no os homens entre si, ressoavam-no
os antigos oráculos, que de mim tanto escondera
por temor e cobardia. Nove dias após o primeiro
olhar! Nove dias onde as noites floresciam
com tanta coisa sufocada e aguardando a mão
certeira. Noites a medirem-se por um fascínio
em desalinho:  faixas decoradas, colares de contas
de âmbar, braceletes de folha de ouro, tecidos rasgados,
suor, saliva, pingos de sémen e a nossa perda
também, mas essa não nos interessava,
porque cheirava a ganho e a instantes eternizados,
coisa que só a poucos é concedida.

 
 
Não, não me julguem pelos relatos futuros, por essas
inverosímeis epopeias ou pelos preconceitos dos que não ousam!
Tróia teria sido igualmente destruída: as terras de Dardano
eram apetecíveis, mas pela geografia e pelos celeiros de trigo.
Eu fui apenas o pretexto! Os políticos, casta de facínoras
com máscara de sorrisos, há muito tinham decidido
a nossa perda; na sua ganância não cabe a honra
nem estórias como a minha e nos seus melífluos argumentos
apenas a abastança se descobre pelo fedor insuportável
dos seus ventres sórdidos. Fugi, pois, dos poetas, dos políticos
e das estelas à beira dos caminhos! Só a justeza da paixão,
a sua lealdade, é verdadeira, só ela poderá um dia
dar sentido à pequena e miserável  História dos homens.

 

                              VICTOR  OLIVEIRA  MATEUS (Inédito)



Nota - Os meus textos inéditos ( e apenas esses!) estão protegidos por legislação específica.
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