24/10/13

Uma conversa tida esta semana com a jornalista e poeta Maria Augusta Silva, In Site "Casal das Letras":
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                                    VICTOR OLIVEIRA MATEUS
                               «Continua a insistir-se numa conceção
                                         de escola burocratizada
                                   e que tresanda a Idade Média» 
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Autor que tem a mestria de casar o clássico com a modernidade, da sua poesia disseram entre outros: Olga Savary: «Como um espia ou um detetive de afetos, abandonando-se num tufo de metáforas, eis a periculosidade do poeta, especialmente do poeta português Victor Oliveira Mateus. Nas asas da poesia, Victor solta os pássaros e canta — e voa. (…)». Cláudio Neves: «Victor escreve no limite entre a poesia e a prosa, e nos faz crer que o faz sem perigo — quando, nesse perigoso limite, muitos poetas de diversos calibres se têm perdido.» Alexandre Bonafim: «(…)Em sua escrita, o deserto torna-se região das especulações filosóficas, dos encontros e desencontros com o outro. Aliás, o deserto de Victor possui uma ambiguidade importante. É nesse espaço que o eu lírico vivenciará tanto a solidão quanto o total da entrega ao outro-amado. Para Victor, somente o mergulho no exílio do mundo e do outro poderia gestar o arrebatamento dos encontros profundos(…)». Maria Augusta Silva: «(…) Uma escrita na qual as palavras são a mágica tranquilidade (sábia viagem) com que o poeta tem vindo a trabalhar a consciência do texto.» Ana Paula Dias: «A forte aptidão metafórica da poesia de Victor Oliveira Mateus, pelo inesperado de certas associações lexicais e pelo fulgor de imagens extremamente certeiras e originais, consubstancia-se numa fala subtil que se move em torno do movimento em direção ao Outro e da noção de Ausência; nela joga-se a inquietação do sujeito num mundo polarizado entre o Absurdo e a Graça, o Efémero e a Luz (…).» Henrique Levy: «(…) A poesia de Victor Oliveira Mateus ensina-nos o poema como semente aquecida no coração da memória, resgatada pela alma, oferecida e alimentada pelo corpo. Comovem-me as palavras, as letras, a ética do poema (…)».


Ter a sua obra poética distinguida com o Prémio Eugénio de Andrade da União Brasileira de Escritores representa o quê ao fim de muitos anos de escrita?
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  Há sempre uma determinada alegria quando sentimos que o nosso trabalho ecoa noutras mentes, noutras regiões, contudo penso que é importante aceitarmos, com muita prudência, tudo aquilo que nos é dado, pois o excesso de confiança pode condicionar a violência da queda. Foi grande a minha satisfação, foi grande a minha gratidão para com aqueles que de mim se lembraram. Mas no essencial sigo sendo o mesmo.
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Um dos versos de Eugénio de Andrade era, e mantem-se, profundamente perturbador: «Quando se morre?». O Victor achou alguma vez resposta para esta interrogação?
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  Jaspers fala do confronto com a morte como uma dessas situações-limite, que, pela sua inexplicabilidade, nos estimula a ousadia do procurar respostas.
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Já se confrontou com a morte? 
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   Por volta dos trinta anos. Dois anos dialoguei com ela todos os dias. Não parti… não parti e nunca mais pensei nela! A questão da morte não me atormenta, aliás, numa das suas entrevistas Clarice Lispector diz que o escritor morre muitas vezes. Somos ínfimos e estamos de passagem, urge não esquecer isso. A questão que me atormenta é outra: «Que coisa é esta a que chamamos vida?»
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Se ainda pudesse falar com Eugénio de Andrade, que gostaria de contar-lhe?
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   Não conheci pessoalmente Eugénio, privei (e privo) com poetas igualmente grandes dessa geração; por esta minha experiência, não me parece que aquilo que, eventualmente, tivesse a dizer-lhe lhe pudesse interessar, assim como, talvez por egoísmo, preferisse escutá-lo a falar. Pertenço a uma geração de autores que, sem cair num encumear artificioso, cultivou sempre uma sentida deferência para com as gerações anteriores.
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Já descobriu um pôr-do-sol mais fascinante do que o da praia de Lefteris, de que nos fala no seu livro A Irresistível Voz de Ionatos?
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   Interessante a pergunta. A Gulbenkian chegou a proporcionar um encontro entre mim e Angélica Ionatos, aquando de um dos seus concertos em Lisboa. Eu estava com uns amigos e ela ficou surpreendida por ter inspirado um poema tão grande como aquele. Não sei se vi algum pôr-do-sol mais fascinante do que esse de que fala o meu poema… todos são simultaneamente iguais e diferentes. 
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 E cada um de nós olhará a natureza de modo diverso…
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   Não tenho uma visão cartesiana da Natureza, da qual derivam muitas visões poéticas, sobretudo as que se fundamentam num certo niilismo individualista; a minha Natureza é sagrada, é a que vem de Plotino e dos Renascentistas, mas já estou a fugir à pergunta…
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Algum homem poderá ser uma ilha?
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   Neste momento travo uma luta com François de Singly exatamente por causa desse tema. Olho com alguma desconfiança as virtudes do individualismo, ou melhor, reconheço que as ilhas podem ser belas e regeneradoras, mas temo que elas esqueçam os arquipélagos para que sempre tendem.
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Trabalha a sua poesia com uma incontestável sobriedade estilística. Requere muito ofício até chegar a esse apuro?
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   Sou cauteloso, talvez seja isso. Não quero que aquilo que me sai das mãos resulte de um qualquer tipo de trabalho exclusivamente formalista e alheio à vida concreta dos homens. Isto não é um juízo de valor, estou só a falar de mim. Cada um tem o seu caminho e o meu passa por uma Escuta atenta daquilo que Há e pela tentativa — tantas vezes gorada! — de que esse Sentido se possa desvelar através do dizer poético.

A formação que tem em filosofia ajudou-o enquanto poeta?
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   Para ser franco não tenho um distanciamento de mim que me permita dizer algo sobre isso. Quando escrevo um artigo, quando faço uma recensão, é um facto que no meu fazer está sempre aquele aparelho teórico da filosofia e creio que o mesmo sucede nos poemas. Sim, acho que a filosofia em mim tem algo de condenatório: infiltra-se no interior do verso independentemente da minha vontade.

Que diz agora o poeta ao filósofo? Que diz o filósofo ao poeta?
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   É o poeta que deve dizer ao filósofo, penso. Os Antigos sabiam isso. A poesia liga-se a um olhar primeiro, a um olhar que visa o originário e, nesse sentido, a filosofia joeira aquilo que lhe chega através de uma sucessão de olhares; a filosofia, quanto a mim, padece de uma menoridade ontológica na sua relação com aquilo que Há.
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Foi professor de Filosofia. Colheu muitas lições dos seus alunos?
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   Lamentavelmente, nos últimos anos, ensinaram-me muito pouco, ensinaram-me tão-só aquilo que não deve ser a escola. Há uma profunda hipocrisia no modo de viver hoje o ensino: por um lado fala-se de desmotivação, de abandono escolar, etc. Por outro lado, continua a insistir-se numa conceção de escola burocratizada e que tresanda a Idade Média.
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Entretanto, na arte da tradução, de que autor se sentiu mais próximo ao traduzi-lo? 
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  Voltaire. Tenho uma profunda admiração pelo séc. XVIII francês, mais especificamente por Voltaire, autor que sempre me fascinou.
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Neste momento, qual a palavra que gostaria de sublinhar na sua «gramática dos afetos»?
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  Paixão. Os seres incapazes de se apaixonar assustam-me, muitos deles rondam as psicopatias e, quando frios e ávidos de poder, são perigosos, mas prefiro não desenvolver o tema…
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Pois… E a velhice assusta-o?
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   Não. Assusta-me a decadência, que pode surgir em qualquer idade, a velhice não. Há um excelente romance de Louise Weiss sobre a velhice, Dernières Voluptés, e um outro da Vita Sackville-West, Toda a Paixão Abolida. A visão que temos hoje da velhice é aquela que a moral burguesa e a sociedade dos números tem vindo a difundir: o velho-fardo, o velho-não-produtivo, o velho-que-já-está-atrasado-para-a-morte, etc. É dentro deste paradigma que a velhice assusta. Mas nem sempre foi assim e pode nem sempre ser assim: tive amigos de muita idade, alguns grandes escritores, com quem aprendi imenso.
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Num só verso, como resumiria o nosso país?
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  Que Camões me perdoe a soberba:
"Ó glória de mandar, ó vã cobiça". 
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 OUTUBRO DE 2013, In Site "O Casal das Letras"

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