“Languages symbolise
identities and are used
o signal identities by those
who speak them”
M. Byram, 2006
A aprendizagem de uma língua é um processo, para além
de cognitivo, também cultural e intrinsecamente ligado às questões de
identidade e contexto social, pelo que é interessante analisar brevemente o
processo de reconstrução da identidade da RAEM e da sua população após a
reintegração do território na China, o seu significado e implicações na
expressão que a língua portuguesa tem atualmente no território.
Num interessantíssimo e exaustivo trabalho datado de
2009, “Sovereignty at the Edge: Macau and the Question of Chineseness”, Clayton
designa aquilo que aconteceu em Macau como “sort-of sovereignty”, uma espécie
de soberania partilhada, única no mundo. Segundo a autora, em meados de 1990,
sabendo que em breve mais de quatro séculos de domínio português estavam a
chegar a um fim negociado, a administração portuguesa montou uma grande
campanha para convencer os residentes de Macau, 95 por cento dos quais
chineses, de que podiam reivindicar com orgulho uma identidade que os tornava
diferentes de todos os outros chineses: uma identidade resultante dos 450 anos
de história não de colonialismo, mas de um tipo de soberania compartilhada,
ímpar no mundo moderno. Este projeto exigia uma completa transformação da
imagem de Macau como cidade retrógrada, colonial e decadente e da imagem da
administração portuguesa como potência colonial corrupta e inepta que presidiu
e beneficiou dessa decadência.
Entre os residentes, as reações foram diversas. Alguns
consideraram a celebração precoce do estatuto cosmopolita de Macau como uma
mudança positiva, diferente da visão habitual de Macau como uma Hong Kong
fracassada e de segunda categoria. Outros discordaram com a visão do Estado
sobre o que era a “verdadeira” identidade de Macau, mas consideraram que valia
a pena questionar o que tornava Macau diferente da restante China. Muitos
outros ainda rejeitaram este projeto de “identidade” como uma ficção patética
de uma administração colonial moralmente falida.
Por seu turno, Kaeding, investigador da Universidade
de Surrey, refere que os dados de um estudo que efetuou mostram que a maioria
da população de Macau se identifica etno-culturalmente como chinesa e que a
identificação cultural com a China continental é grande, embora seja comummente
defendido que a identidade singular de Macau resulta da influência dos quatro
séculos de domínio português. Para o autor, “the Portuguese influence
on the city’s collective identity in general is largely restricted to the
material culture and its
architectonical heritage.”
No entanto, a tentativa de convencer os residentes de
Macau de que eram diferentes de todos os outros chineses, devido à sua
experiência de uma administração estrangeira não colonial, levantou questões
prementes: o que era a “soberania”, tal que o passado de Macau podia ser
interpretado como não colonial; o que era “chineseness”, em que é que os
chineses de Macau eram diferentes, e de intersecção entre elas.
Clayton avança que a resposta a estas perguntas,
promovida em museus e publicações patrocinados pelo governo português, definia
soberania em termos de supremacia militar, política, económica e cultural. De
acordo com esta versão, os portugueses não teriam sido colonizadores porque
nunca a tinham detido. Não tinham usado a força para retirar o controlo de
Macau aos Ming; a instalação portuguesa fora resultado da negociação e do
compromisso. Durante 300 anos, tinham pago o aluguer do terreno às autoridades
chinesas em troca da autorização para permanecer na Península de Macau; quando
solicitados, forneceram valiosa ajuda militar aos governos Ming e Qing; os seus
representantes tinham realizado o kowtow[1] ao imperador e aceitado títulos,
um indicador de que tinham sido incorporados na burocracia imperial de Pequim.
Durante 300 anos, tinham-se governado apenas a si mesmos, dentro dos muros da
cidade, reconhecendo a sua dependência total perante o imperador mesmo para as
necessidades mais básicas, como água e comida. De fato, em várias ocasiões, ao
primeiro sinal de truculência portuguesa, as autoridades chinesas tinham
ordenado a todos os seus súbditos para evacuar a cidade, obrigando os
portugueses a submeterem-se pela fome.
Esta argumentação prossegue, defendendo que tal não
significa que os portugueses tenham sido meros vassalos do império chinês; a
coroa portuguesa agiu como governante supremo do território muitas vezes. Em
1586, por exemplo, o vice-rei de Goa, agindo na suposição de que ele, e não o
imperador Ming, tinha jurisdição sobre Macau, elevou o seu estatuto administrativo
de povoação a cidade. Em 1846, Lisboa mandou o governador Ferreira do Amaral
declarar unilateralmente soberania formal de Portugal em todo o território,
recusando-se a reconhecer a autoridade de qualquer oficial de Qing dentro das
fronteiras de Macau, e reivindicando a jurisdição sobre a terra e as pessoas
(tanto chinesas como portuguesas) muito além dos muros da cidade existente. Em
1887, os oficiais Qing tinham assinado o Tratado de Comércio e Amizade, que
reconheceu "a perpétua ocupação e governo de Macau e suas dependências por
Portugal". Mas mesmo assim, continua o argumento, quando a reivindicação
formal de soberania sobre Macau foi aparentemente reconhecida pelo direito
internacional, os portugueses nunca impuseram a sua língua, religião,
ideologias políticas ou padrões educacionais ao povo chinês sob a sua
administração. Assim, a história da presença portuguesa em Macau foi
apresentada como uma soberania partilhada, uma “espécie de soberania”, em que a
resposta para a pergunta "quem manda aqui?" foi inteiramente
contextual e muitas vezes deliberadamente ambígua.
Tanto esta narrativa histórica como esta concepção da
natureza do Estado português não permaneceram incontestadas durante a época de
transição. Alguns residentes de Macau definiram colonialismo mais de acordo com
o senso comum, simplesmente como qualquer ocupação estrangeira do solo chinês.
Apontaram a estrutura do sistema político da cidade, que consistentemente
beneficiou os portugueses e os falantes de português, para argumentar que toda
a história da presença portuguesa tinha sido de natureza colonial.
Alguns estudiosos sugerem que o período “colonial”
tenha começado apenas com a chegada de Ferreira do Amaral, em 1846, quando,
influenciado pelo exemplo dos britânicos em Hong Kong, Portugal insistiu que a
existência de uma povoação portuguesa autónoma em solo chinês era a evidência
da soberania de facto sobre o território. Outros sugeriram que,
independentemente da data do seu início, o período colonial terminou em 1966,
quando manifestações e boicotes de inspiração maoísta forçaram a administração
portuguesa a aceitar uma série de exigências que fizeram de Macau uma zona
“semi-libertada”.
Mas houve um debate mais intenso sobre a questão de
como o passado de Macau configurou o sentido de “chineseness” dos residentes de
Macau. Na narrativa do governo, a “espécie de soberania” tinha feito dos
residentes de Macau uma “espécie de chineses” – “chineses latinos”, como lhes
chama Roderich Ptak. Essa transculturação evidenciou-se na arquitetura, na
cozinha híbrida e no caráter mais tolerante e descontraído da cidade. Durante a época da transição, a pequena comunidade de
Macau de moradores etnicamente mistos, conhecida como macaense, tornou-se o
símbolo por excelência desse hibridismo: em termos fenotípicos, linguísticos,
culinários, religiosos e genéticos, eles eram a expressão máxima do espírito de
troca pacífica e generativa entre diversos povos que a administração portuguesa
tentou reclamar como legado seu.
A Professora Wai-man Lam, da Universidade de Hong
Kong, refere que em contextos pós-coloniais a identidade é uma arena de
competição política onde vários discursos que encarnam reapropriação das
tradições políticas e legados se cruzam. Na RAEM, a identidade do pós-handover
compreende as componentes locais, nacionais e internacionais, com Macau
caracterizada como um objeto colonial/cultural/histórico e económico híbrido.
Para a autora, a identidade de Macau após 1999 é uma reapropriação da imagem da
Macau colonial propagada pela administração portuguesa desde a década de 1980.
Com efeito, em 2011, o presidente do Instituto
Cultural de Macau, Guilherme Ung Vai Meng, salientava em conferência de
imprensa a propósito da promoção de um mega desfile cultural por ocasião das
comemorações do 12o aniversário da RAEM que Macau era “uma cidade de
cultura aberta”, “que apresenta uma mestiçagem de características ocidentais e
orientais”, patentes “nas construções, gastronomia, hábitos locais, línguas e
religião”[2].
A construção da identidade pós-handover alicerçou-se num
processo de incorporação e não de repressão ou eliminação do “outro” – a
construção de uma identidade nacional autónoma não tem sido a principal tarefa
na reconstrução dessa identidade. Em vez disso, várias componentes identitárias
foram deliberadamente promovidas e integradas. O sucesso do processo garantiu o
relativamente suave reingresso na China e reforçou a legitimidade do novo
governo da RAEM.
(a autora escreve segundo o novo acordo ortográfico)
*Investigadora da Universidade Aberta
Dias, Ana Paula. Macau e as Fronteiras da Identidade. Macau, 2013.
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Dias, Ana Paula. Macau e as Fronteiras da Identidade. Macau, 2013.
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