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Ana
Maria Puga: a delicada irreverência da escrita
O novo livro de Ana Maria Puga, Área de Serviço, apresenta-nos uma
escrita de cunho vincadamente urbano e realista, onde uma função irónica e
deliberadamente ambígua da linguagem, assim como o engajamento social, surgem
como principais linhas de força. Por entre os vários aspectos que aparecem
subjacentes a esta escrita podemos encontrar, embora de forma ténue, as marcas
de autores como Fernando Assis Pacheco (cf. “Elegia por Manuel Bogalho” in A Musa Irregular pág. 149; “A Bela do
Bairro”, idem pp. 151-152) e Jorge Fazenda Lourenço (cf. “Cutucando a Musa”); também a veemência do sentido, bem como alguns
procedimentos rimáticos, nos fazem lembrar a assertividade de poéticas como as
de Miguel Torga e de José Gomes Ferreira (é difícil lermos o verso “Feitos de
lágrimas enxutas”, p. 48, sem nos recordarmos de José Gomes Ferreira!); no
entanto, quer ao nível da organicidade do poema quer da estruturação do
poemário parecem surgir de modo mais acentuado as influências de poetas como
Alexandre O’Neill (cf. “O poema pouco original do medo” in Poesias Completas 1951/1986, pp. 143-144; “Saber viver é vender a
alma ao diabo”, idem pp. 177-179) e
Mário Cesariny (cf. “poema podendo servir de posfácio” in Manual de Prestidigitação, pp. 100-102; “autografia” e “ortofrenia”
in pena capital, pp. 37-39 e p. 152
respectivamente), no entanto – diga-se - a poesia de Adília Lopes não nos surge
( também) como algo de alheio a esta escrita (cf. Dobra, Poesia Reunida pp. 330-348), nem tão-pouco a mordacidade e o
desvelamento cáustico bem ao gosto dos textos de Mário-Henrique Leiria.
Nesta obra de Ana Maria
Puga é notória a força incutida ao sentido enquanto fonte de inquirição,
contestação e recusa de um social que se apresenta à poeta de modo injusto,
castrador e claustrofóbico. Assim, esse mesmo contexto e/ou quotidiano é olhado
nas suas múltiplas vertentes: a histórica (“No poleiro ocidental/ Do comércio/ Das
viagens/ Jaz tão velha a catedral/ De um tempo de oiro/ E voragens/ Na senda de
acontecer”, in poema Porto-Galo, p.
28); ao nível dos costumes e hábitos (“Ai matriz!/ Canta-se o fado/ E o xaile
entorpece mais/ Os braços/ De um povo a lavar sem rio/(…)/ Trinando/ Nas artes
do cativeiro”, in poema Portugal de
Xaile, p. 31; “O tempo que nós perdemos/ Na oferta de um sofá/ Mesmo
esventrado e sem molas/ (Por vício de civilização/ Que nos impede de parar)/ Castiga
toda a memória” in poema Pluralidade,
p. 59); no campo ético-moral (“Os índios/ Os aborígenes/ Selvajaria sem alma/
Vergonhas a descoberto/ (…)/ E nós outros/ De cabeça sem recheio/ Desavergonhadamente/
Tapámos as partes/ Nesses brocados de anseio” in poema Casinô, p. 55); no terreno do económico-político, onde se visa, por
exemplo, o consumismo e os off-shores: ( “As grandes superfícies brilham/ Na
quantidade/ Em estoques de perfumar/ Os olhos que tudo procuram/ Na compra de
abraçar a solidão “ p. 36; “ O Produto Interno Bruto – rosmaninho e cheiro/
Desaparecendo pela mão de um autoclismo/ Boiando nas águas turvas do seu catecismo/ De alargar as ilhas onde se
fala estrangeiro “, p. 47). Neste olhar simultaneamente atento e acutilante de
Ana Maria Puga, assoma, por vezes – poucas! – um certo desalento, uma certa
mágoa: (“Quando me deito e de olhar me vou cansando/ Guardo na noite as lentes
de ver ao pé/ E as ideias por casar no pensamento/ Aceitam no desconforto/
Convívios de rodapé “ in poema Insónia, p.
57; “Lamento/ Esta falta de vontade/ Esta inércia/ De ordenar significâncias/
Sobre a dor/ Que habita a alma” in poema Pluralidade,
p 58), no entanto, os laivos de fuga, ou de desalentada entrega a quaisquer
derrotismos que eventualmente possam surgir nesta poesia, são puramente
acidentais ante um intento mais forte e claramente assumido: o de cismar
(poeticamente) sobre esse acontecer, algo circense ( cf. pp. 48 – 50), que à
poeta coube em sorte. Assim, e nesta linha de leitura, é impossível afastar a
poesia de Ana Maria Puga de toda uma plêiade de poetas que o cânone tem tido o
cuidado de manter sob vigilância, veja-se- por exemplo – o “Canto e Lamentação
na Cidade Ocupada” de Daniel Filipe, sobretudo o poema 2.:
“ Canto porque estou vivo e amarrado/ à condição de ser fiel e agreste./ Porque
em vão nos destroem a memória/ com máquinas, rodísios, honorários “ (in A invenção do amor e outros poemas, pp.
52 – 53); o poema” Canção combatente” de Armindo Rodrigues: “ Por prémio
chega-nos/ nunca termos prémio,/ senão na nossa própria consciência, em nós
moldada/ por activa opção “( in O
horizonte e a ave- Canto Fausto – Dialéctica do vento, p. 78) ou o poema “Esta
é a cidade” de António Gedeão: “Esta
é a Cidade, e é bela./ Pela ocular da janela/ foco o sémen da rua./ Um
formigueiro se agita,/ se esgueira, freme, crepita, ziguezagueia e flutua.” (
in Poesia Completas, 1956 – 1967, p.
86), refiro aqui apenas poetas já desaparecidos, no entanto, este lúcido e crítico olhar para a cidade, ou
melhor: este olhar pela cidade, tem-se mantido actual porejando em poéticas quer
de autores já consagrados quer de outros que vêm pertencendo às gerações mais recentes.
Assim, se ao nível formal o Área de
Serviço se mantém enraizado nas escritas referidas no primeiro parágrafo,
já no que diz respeito à inquietação fundamental, e fundante, de toda a criação
que lhe subjaz, este livro acaba por se integrar num continuum onde poéticas de
indefectível qualidade se inscrevem.
VICTOR OLIVEIRA MATEUS
(Livraria " Pó dos Livros " em Lisboa, 3 de Outubro de 2013. )
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