03/10/13

.
.
             Ana Maria Puga: a delicada irreverência da escrita
 
 
    O novo livro de Ana Maria Puga, Área de Serviço, apresenta-nos uma escrita de cunho vincadamente urbano e realista, onde uma função irónica e deliberadamente ambígua da linguagem, assim como o engajamento social, surgem como principais linhas de força. Por entre os vários aspectos que aparecem subjacentes a esta escrita podemos encontrar, embora de forma ténue, as marcas de autores como Fernando Assis Pacheco (cf. “Elegia por Manuel Bogalho” in A Musa Irregular pág. 149; “A Bela do Bairro”, idem pp. 151-152) e Jorge Fazenda Lourenço (cf. “Cutucando a Musa”); também a veemência do sentido, bem como alguns procedimentos rimáticos, nos fazem lembrar a assertividade de poéticas como as de Miguel Torga e de José Gomes Ferreira (é difícil lermos o verso “Feitos de lágrimas enxutas”, p. 48, sem nos recordarmos de José Gomes Ferreira!); no entanto, quer ao nível da organicidade do poema quer da estruturação do poemário parecem surgir de modo mais acentuado as influências de poetas como Alexandre O’Neill (cf. “O poema pouco original do medo” in Poesias Completas 1951/1986, pp. 143-144; “Saber viver é vender a alma ao diabo”,  idem pp. 177-179) e Mário Cesariny (cf. “poema podendo servir de posfácio” in Manual de Prestidigitação, pp. 100-102; “autografia” e “ortofrenia” in pena capital, pp. 37-39 e p. 152 respectivamente), no entanto – diga-se - a poesia de Adília Lopes não nos surge ( também) como algo de alheio a esta escrita (cf. Dobra, Poesia Reunida pp. 330-348), nem tão-pouco a mordacidade e o desvelamento cáustico bem ao gosto dos textos de Mário-Henrique Leiria.
      Área de Serviço, remete-nos, logo no início, para a ambiguidade da linguagem acima referida, já que nos chama a atenção para uma duplicidade do que se entende por esse servir tantas vezes enunciado, assim, numa primeira leitura servir será “(…) colorir/ Cada fresta/ No tabuleiro das pontes”( p. 7) ou “A estrada (…) /O azul/ Na pintura de horizontes” ( p. 8), dito de outro modo: servir será aqui colocarmo-nos ao serviço do outro e desse contexto que é o nosso, mas servir poderá também ser entendido como servilismo: “(…) as galeras/ na mordaça da corrente/ e só quer um beija-pés/ dos que partilham o remo/ na sua madeira urgente/ por negrume das marés” p. 10.
      Nesta obra de Ana Maria Puga é notória a força incutida ao sentido enquanto fonte de inquirição, contestação e recusa de um social que se apresenta à poeta de modo injusto, castrador e claustrofóbico. Assim, esse mesmo contexto e/ou quotidiano é olhado nas suas múltiplas vertentes: a histórica (“No poleiro ocidental/ Do comércio/ Das viagens/ Jaz tão velha a catedral/ De um tempo de oiro/ E voragens/ Na senda de acontecer”, in poema Porto-Galo, p. 28); ao nível dos costumes e hábitos (“Ai matriz!/ Canta-se o fado/ E o xaile entorpece mais/ Os braços/ De um povo a lavar sem rio/(…)/ Trinando/ Nas artes do cativeiro”, in poema Portugal de Xaile, p. 31; “O tempo que nós perdemos/ Na oferta de um sofá/ Mesmo esventrado e sem molas/ (Por vício de civilização/ Que nos impede de parar)/ Castiga toda a memória” in poema Pluralidade, p. 59); no campo ético-moral (“Os índios/ Os aborígenes/ Selvajaria sem alma/ Vergonhas a descoberto/ (…)/ E nós outros/ De cabeça sem recheio/ Desavergonhadamente/ Tapámos as partes/ Nesses brocados de anseio” in poema Casinô, p. 55); no terreno do económico-político, onde se visa, por exemplo, o consumismo e os off-shores: ( “As grandes superfícies brilham/ Na quantidade/ Em estoques de perfumar/ Os olhos que tudo procuram/ Na compra de abraçar a solidão “ p. 36; “ O Produto Interno Bruto – rosmaninho e cheiro/ Desaparecendo pela mão de um autoclismo/ Boiando nas águas turvas do seu catecismo/ De alargar as ilhas onde se fala estrangeiro “, p. 47). Neste olhar simultaneamente atento e acutilante de Ana Maria Puga, assoma, por vezes – poucas! – um certo desalento, uma certa mágoa: (“Quando me deito e de olhar me vou cansando/ Guardo na noite as lentes de ver ao pé/ E as ideias por casar no pensamento/ Aceitam no desconforto/ Convívios de rodapé “ in poema Insónia, p. 57; “Lamento/ Esta falta de vontade/ Esta inércia/ De ordenar significâncias/ Sobre a dor/ Que habita a alma” in poema Pluralidade, p 58), no entanto, os laivos de fuga, ou de desalentada entrega a quaisquer derrotismos que eventualmente possam surgir nesta poesia, são puramente acidentais ante um intento mais forte e claramente assumido: o de cismar (poeticamente) sobre esse acontecer, algo circense ( cf. pp. 48 – 50), que à poeta coube em sorte. Assim, e nesta linha de leitura, é impossível afastar a poesia de Ana Maria Puga de toda uma plêiade de poetas que o cânone tem tido o cuidado de manter sob vigilância, veja-se- por exemplo – o “Canto e Lamentação na Cidade Ocupada” de Daniel Filipe, sobretudo o poema 2.: “ Canto porque estou vivo e amarrado/ à condição de ser fiel e agreste./ Porque em vão nos destroem a memória/ com máquinas, rodísios, honorários “ (in A invenção do amor e outros poemas, pp. 52 – 53); o poema” Canção combatente” de Armindo Rodrigues: “ Por prémio chega-nos/ nunca termos prémio,/ senão na nossa própria consciência, em nós moldada/ por activa opção “( in O horizonte e a ave- Canto Fausto – Dialéctica do vento, p. 78) ou o poema “Esta é a cidade” de António Gedeão: “Esta é a Cidade, e é bela./ Pela ocular da janela/ foco o sémen da rua./ Um formigueiro se agita,/ se esgueira, freme, crepita, ziguezagueia e flutua.” ( in Poesia Completas, 1956 – 1967, p. 86), refiro aqui apenas poetas já desaparecidos, no entanto, este lúcido e crítico olhar para a cidade, ou melhor: este olhar pela cidade, tem-se mantido actual porejando em poéticas quer de autores já consagrados quer de outros que vêm pertencendo às gerações mais recentes. Assim, se ao nível formal o Área de Serviço se mantém enraizado nas escritas referidas no primeiro parágrafo, já no que diz respeito à inquietação fundamental, e fundante, de toda a criação que lhe subjaz, este livro acaba por se integrar num continuum onde poéticas de indefectível qualidade se inscrevem.
     Finalmente, convém enfatizar que Ana Maria Puga, apesar de privilegiar o território do sentido, consegue escapar, contudo, a um prosaísmo estritamente linear e denotativo – e isto apesar de um momento (sete estrofes, pp 11 -13) assumidamente de carácter dialógico – e fá-lo através de três procedimentos estilísticos: jamais se afasta do verso curto; recorre com frequência à rima: (“ Menos uma folha de plátano/ De boca calada no chão/ No alargamento da avenida/ Que apressa o concurso da vida/ Emoldurando a distracção”, poema Desobrigada, p. 26) e dota a palavra de um tom lúdico e assumidamente ambíguo de modo a interpelar o leitor, a provocá-lo e a integrá-lo como momento último da obra. Esta última vertente aparece-nos como o carácter mais representativo da poesia de Ana Maria Puga: o lúdico pode, neste livro, irromper através de momentos de intertextualidade (cf. o título “ Os touros sempre se debatem “, p. 32, que nos remete para a película “ Os cavalos também se abatem”; o verso “De um povo a lavar sem rio “, p. 31, a enviar-nos não só para um fado, mas também para um poema de Pedro Homem de Melo; o verso “Nos doze magníficos” que acena ao filme “Os sete magníficos” e ainda o verso “Haja desconcertos sem Imperador”, p. 48, numa aproximação clara à “Valsa do Imperador” de Johann Strauss...), irrompe igualmente através de jogos de palavras que muitas vezes rondam a paronímia (canteiros/carteiros, p. 30; inferno/inverno, p 59…), procedimentos de aglutinação de vocábulos ou de desmembramento dos mesmos com irónicas modulações  (Vejam-se os títulos “A cara à vela das descobertas”, p. 46 - desmembramento de caravela - e “ Porto-Galo “, p. 28, que encima um texto sobre a realidade lusa  ) ou de uma ironia irreverente e, por vezes, denunciatória ( “ Todos os passos roxos/ Que murcham de aperto/ Em cada pescoço a soldo/ Numa vontade sem braços”  in poema Portugal, p. 44).
       Convém ainda assinalar a inflexão que ocorre nesta obra entre as páginas 68 e 69: na primeira estamos ainda num território Sem partilha entre sensações inúteis, enquanto que na segunda se inicia um clima esperançoso, se edifica o “Albergue da recriação” (p. 82), até porque “Mesmo tarde é sempre cedo” ( in poema Eros p. 88) desde que ”Haja som no poder de regular a vaga” (in  poema Eros p. 88). A poesia de Ana Maria Puga, por conseguinte, jamais entronca nas posições de cariz essencialista do Discurso Poético, onde – regra geral – o em-si e o para quê do dito discurso coincidem, nem sequer aqui importam os dizeres de cariz visionário… à poeta apenas interessa o real concreto onde os homens se pensam e se constroem, isto é, apenas lhe interessa esse cismar “Nesta teia enferrujada a que chamamos cidade “ (p. 82) “Regando cada canteiro da vida” (p. 84) – Nada mais! O último poema de Área de Serviço é, aliás, emblemático deste posicionamento: “ E o homem que ama – bebe a brisa/ Vai e afunda os pés no sol da terra/(…)/ De mão entranhada na vida das cores/ Avança nas suas pinturas de guerra/ Contra as portas fechadas sem concílio/ E nunca desiste…  “ ( p. 90).
 
 
                                                                                       VICTOR  OLIVEIRA  MATEUS
 
                                                           (Livraria " Pó dos Livros " em Lisboa, 3 de Outubro de 2013. )
.