Rui Almeida, Manuel A. Domingos e Victor Oliveira Mateus, Sociedade Guilherme Cossoul (Campolide) em Lisboa, 12 de Outubro de 2013.
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Apresentação do livro Leis da Separação de Rui Almeida
Têm
os títulos dos livros, bem como as suas epígrafes, a função de nos introduzir
no horizonte ou intriga que virão a ser desenvolvidos. Assim, no mais recente poemário
de Rui Almeida, a expressão Leis da
Separação aponta-nos para algo de fixo e invariável, que, uma vez colocadas
e respeitadas condições igualmente estáveis, produzirão necessariamente os
mesmos resultados. Podemos aqui, por conseguinte, partir de um eu-poético que
se assume a si próprio como distinto da multidão, incapaz – por recusa ou por
aspectos de personalidade – de participar nos rituais do turbilhão que o cerca:
“Pode a memória de um cheiro gerar/ O pequeno lucro do afecto/ Ou queimar o
erro da norma?” (p. 8); “Pela manhã são vistos, apressados,/ A caminho do dia,
da sequência monótona/ Para onde se esvai toda a grandeza/ De cada olhar. Nem
se notam” (p. 16); “De onde vem tanto barulho?/ Que espécie de riso se expande/
Por corredores estreitos, entre paredes,/ Para chegar ao vácuo da rua?” (p. 24).
O apreender-se a si próprio como destoante e separado do vulgo incute no eu-poético indeléveis marcas de: uma
radical solidão interior – “Próximo e para lá/ Do que cabe numa linha/ De texto
formatado,/ A possibilidade de tocar/ Uma outra existência/ Alheia à distância
e ao peso/ Da matéria” (p. 9), “Será possível tocar/ Na pele do rosto de um
semelhante/ Sem deixar de sentir/ A sua temperatura?” (p. 24); intensos
reflexos de angústia e dor – “E quando te cansas/ Dessa alma de borracha,/ Tão
maleável…// Aceleras o coração,/ Acordas surpreendido// E reparas/ Que te
faltam/ Mãos e braços” (p. 30), “(…) A noite tem textura/ De caminho difícil
até/ Ao limite do mais belo.//(…) Devagar é noite e dói/ Subir à montanha com
os olhos.” (p. 34); um vincado desalento tangenciando mesmo, por vezes, um
certo pessimismo – “A isto se chama devastação,/ Cinza erguida, totens/ De
negro carvão. Nada.” (p. 35). Estes estados, que esboçam o perfil de um sujeito
que enceta uma plurifacetada busca na compreensão de si, do Outro, daquilo que
o cerca e também daquilo que ele intui que o transcende, estes estados – dizia
– são as já referidas condições de partida desse tal olhar perscrutador.
Mas o
caminho apresenta-se, neste cismar poético, eivado de escolhos, já que o poeta
jamais designa através de um conceito unívoco esse território que lhe surge
como fundante, não só da sua busca, mas igualmente do seu estar-aqui, e isso
ocorre não por qualquer vacilação do olhar, mas porque ante o inominável serão
sempre poucas e redutoras as palavras, mas, apesar de tudo, ele insiste: “Ao
que pode e não pode rouba sempre/ A morte, assombra a quantia/ Lenta do alto. “
(p.8), esta ideia do Alto surge-nos
ainda no poema da página 14; o eterno - “Longe, a ideia de continuar/ Sempre a
sentir/ O movimento,/ Distinto da realidade/ Sustida pelo tempo,” (p.9); “A
paz, podem dizê-lo,/ Tem curvas breves:// É frágil em seus limites/
Irracionais.// O lugar das coisas invisíveis/ É a flor dos silêncios.” (p. 11);
o centro - “Queres e não vês/ E tomas o acesso/ Mais directo ao centro/ E há
nevoeiro e não chegas/ A tempo, mas onde?,//(…) e não sabes/ Onde chega a tua
força/ E não tens lugar/ E não ouves e não cantas/ A breve melodia.// E ainda
assim.” (p. 40). Esta consciência de uma incapacidade estrutural que é
intrínseca ao acto de nomear o que está para além de um aqui imediatista, já o
poeta a tinha sentido em livros anteriores: “Ascende ao presente a vaga/
Firmeza aplicada ao que sucede,/ Distracção do tempo/ Assumida em palavras
sobrepostas/ Para construir um nome. ( in “Caderno de Milfontes”, p. 12). Este
pudor, ou este recato, do nomear jamais é incompatível com a necessidade de
busca, e isso surge-nos logo a partir do primeiro livro de Rui Almeida: “É por
não buscarmos o que nos salva ou/ Por não sabermos beber da secura dos lábios/
Que nos transportamos para fora dos campos/ Sujeitos à pequenez e à aparência
de abundância/ Como seres que perderam a consciência do riso. “ ( in “ Lábio
Cortado”, p 7). A inquirição poética contida em Leis da separação surge-nos marcada por quatro aspectos
fundamentais: a Dúvida – o poeta, nunca chama a si posições de carácter
dogmático ou onde uma certa assertividade se apodere da sua escrita, isto é, os
momentos de angústia e de desalento acima referidos aparecem, algumas vezes,
geminados com momentos de: dúvida - “Cada passo é próximo/ Demais para chegar//
A um fim. Incerto/ Limite/ Do fluxo da vida.” (p.31), “Mais acima e mais para
dentro,/ Sustentado por ideias,/ Possibilidades de sonho// A concretizar/ Em
caminhos de areia/ Solta por entre/ Abundante vegetação.” (p.32); ironia,
muitas vezes magoada – “Iremos aparecer,/ O nosso rosto será/ Visível em
fotografias,/ Muitos anos depois,// E sairemos bem/ na contramoda que
construirmos.” (p. 12), “ Todos felizes da vida/ por serem humanos;/ Até o
maneta,// Que atrapalha o trânsito/ Com obscenidades/ Por não ter nada a
perder.// (e esse mais do que os outros)” (p. 17); de utilização, aqui e ali,
de um argumentário poético alicerçado em Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino,
nomeadamente as Teorias da” Matéria e Forma” e a da” Potência e Acto” - “Age no
poder da forma o cheiro/ Da memória, assinala/ O fim da leitura… “ (p. 8), “
Distinto da realidade/ Sustida pelo tempo,// Concretizado no acto/ de ir ao
encontro.” (p. 9), “Até às formas completas/ Que revestem o essencial.” (p. 26);
a ideia de ciclo - o itinerário do eu-lírico (como o da criação poética
expresso, subliminarmente, no poema da página 22), nesta sua errância por um
aqui que lhe surge assumidamente imperfeito e lacunar, não aparece como um
processo linear onde as etapas se somem umas às outras, na poesia de Rui
Almeida são recorrentes as hesitações, as dúvidas, a consciência da sua própria
fragilidade, onde o eu vacila para logo se reerguer e retomar o seu caminho,
aliás, não é por acaso que as referências à noite, à nevoa, à sombra, etc.,
como instâncias impeditivas ou bloqueadores da acção, são abundantes nesta
obra: “ A paz, podem dizê-lo,/ Tem curvas breves:” (p. 11), “Encerram as fontes/
Fragmentos/ Ciclos de esperança,/ Respostas incertas.” (p. 26).
A separação
que o poeta, como vimos já, sente relativamente à conformidade, ao
turbilhão, à essencialidade do Outro e ao que intui subsistir para além do Aqui,
e que ele assume com uma lucidez angustiante e com o desalento próprio de quem
teme que esse qualquer encontro redentor não venha, alguma vez, a ser possível,
afasta a poesia de Rui Almeida, pelo menos no que diz respeito a este livro,
dos intentos poéticos de outros autores: Vergílio Alberto Vieira, nas suas
últimas obras, é claro quanto à identificação da transcendência (que ele
significa sempre com maiúscula!) e a sua espera jamais aparece como dolorosa ou
atormentada: “ Nada vêem os olhos, que tudo vêem,/ com a primeira luz do dia;/
a treva que, a pouco e pouco, das minhas mãos/ se afasta é, agora, que nada me
pertence,/ pertença minha; um ramo de sombra apressa então/ a inquieta brancura
do caminho.” ( in “Amante de um só dia”, p 13); em José Tolentino Mendonça são
também bastante atenuados os momentos de desconforto e insegurança na espera: “
Os naufrágios são belos/ sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?” (in
A que distância deixaste o coração”, p 28), “Nenhuma sombra ameaça tua porção
de luz/ ainda que solte o vento/ medos antigos pelos atalhos// Uma só palavra
restitui/ a imensidão “ ( Idem, p. 41), “ Nós não os ouvimos/ mas os desertos,
os oceanos, os cimos remotos/ ensinam-te finalmente o que não entendes//
Descobres uma casa/ noutras direcções/ a igual distância/da vida que deixamos
para trás” ( in “ O viajante sem sono” pp. 35 – 36),aliás, esta ideia de manter
a sombra à distância era já visível num
livro anterior de Tolentino Mendonça: “Se fechar meus braços outro os abrirá/
no escuro da roda as orações são perpétuas” ( in “longe não sabia”, p. 13). Uma
outra plêiade de autores encontra-se ainda mais distanciada da poesia de Leis da Separação, grupo esse que pode
ser exemplificado aqui através da escrita laudatória de José Augusto Mourão: “
tu semeaste no nossa vida/ a semente do infinito e da beleza/ para que em cada
tempo brotem formas novas/ de convivialidade e graça entre aqueles/ que a dor
performa e acinzenta “ ( in “ O nome e a forma”, p. 121). O modo como Rui
Almeida estabelece, e vivencia, AS LEIS
DA SEPARAÇÃO aproximam-no antes de poetas como: Maria Carpi, Daniel Faria e
até mesmo de Paul Celan. Veja-se, por exemplo, a última estrofe do poema da
página 33: “Só com a grande coragem/ Da desilusão/ Se chega ao riso mais
branco/ Por dentro.”, compare-se agora esta estância com um terceto de Maria
Carpi: “não tenho mãos/ O meu ofício/ não é cinzelar; tão só pedra bruta/ ser,
dentro das entranhas do ver.” ( in “A força de não ter força”, p 88). A
desilusão (ou o não ter mãos) não serão, então, condição necessária ao aplanar
de todo um território a partir do qual agora, e de modo estruturalmente
diferente, se possam edificar pontes? Dito de outro modo: colocadas que foram
as variáveis necessárias da vivência poética (inconformidade, angústia, solidão
interior…), respeitadas depois as condições da errância e da inquirição (
dúvida, ironia, busca cíclica…), não se chegará, necessariamente na óptica do
poeta, a um resultado insofismável que fixará a lei, e que será, neste cismar
poético, a visão de que o todo é fragmentário e onde tudo é separado de tudo?
Sendo assim, o poema da página 39 – já prenunciado pelo da página 36 –
surgir-nos-á como corolário da magnífica e bem desenhada aventura poética
traçada por Rui Almeida em Leis da
Separação , e que é essa certeza do coração (cf. poemas das páginas 21 e
26, bem como a pouca fiabilidade concedida aos sentidos e à razão esparsa pelos
vários poemas) de que só apreendendo a separação,
poderemos (ainda) aceder a essa “Coisa mais simples e mais/ Larga, anterior
à necessidade/ De justiça.” (p.39) e nela, finalmente, encontrarmos acolhimento e aconchego.
VICTOR OLIVEIRA MATEUS
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