21/10/13



   " Ranho  Baba  Merda "

 - Mas isso é um verso?
 - É.
 - Mas esse gajo não é um que fala de gaivotas, e
tretas de sol e gatos?
 - Pois, fala de todas as tretas que há no mundo e de
outras por haver. Já estou a notar que és daqueles que
acham que a poesia ou tem asinhas ou tesão. A
metafísica e o tesão ou a sua falta, podem dispensar-
se. Há tanta outra coisa para olhar, não?
 - Mas esses tipos, os tais poetas, não fazem uns
livros merdosos, fininhos, só com um bocado da
página escrita?
 - Piadola pouco original, essa. Estás farto de saber
que uma frase pode dizer mais coisas do que meia
dúzia de best-sellers digestivos e imbecis.
 - Mas esses é que interessam à maralha e têm capas
porreiras. Não achas que a vida é imbecil e temos de
procurar digeri-la com capas porreiras?
 - É uma maneira de ver a coisa. Se calhar, há fases
assim...
 - Bem, pensando melhor, "merda" e "gaivotas" têm
muito a ver, porque na minha rua os tejadilhos dos
carros fartam-se de apanhar lostras desses poéticos
bichos.
 - Não ajavardes...
 - Afinal, quais é que são os bons poetas?
 - Não há um poetómetro, claro, apesar dos esforços
de fazedores de cânones. A boa poesia tem tudo: uma
coisa e o seu contrário.
 - Como assim?
 - Olha para este outro verso de mesmo gajo, dos
gatos e do sol, como dizes, mas também da baba, ranho
e merda:
 Não colecciones dejectos o teu destino és tu.


  Lourenço, Inês. Ephemeras. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2012, pp 40 - 41.
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