17/10/13



 " Últimas palavras de Adèle H, em Villequier "


É agora público e notório
cercada de árvores afiladas
pedras demasiado pesadas
o Sena que corre perto, negro de naufrágios
o mar enrolado em ondas, a seguir

A tua distância
fez de mim animal furtivo
e tão duvidosa a reputação
Tornou-se o mundo extenso terreiro
do jogo da cabra-cega
basta muito abrir
e muito fechar as pálpebras
edificar os planos do breu
e demasiado brilho
para os olhos aguados

São teus os lugares que perdi
no desacerto das estações
deriva de barcaças sucessivas
intermináveis estrados em suspensão
Deambulei pelos quartos vazios
ao calor tropical ou nas agudas
afiadas facas do frio
Era esse o modo como, de tão longe
me abraçavas, me colavas
os vestidos aos bicos dos seios
os enregelavas
com o bafo das sombras

Sabei agora que o tempo se faz
do que em nós é vendado
de iniciais e coisas apagadas
do esquecimento que as flores reabrem

Sabei que o meu nome é apenas paixão
que a luz se entranha do leito de mármore
e as chuvas regressam para que
dias e noites inteiros se percam

E pudesse eu dizer, para sempre
algo que fosse verdadeiras e últimas palavras


  Silva, José Manuel Teixeira da. O Lugar Que Muda o Lugar. S/c.: Língua Morta, 2013, pp 22 - 23.
.