31/01/11

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"À Tálida"


Levantas os claros olhos vagos,
reflexo do Jônio Mar. E alva suplicas ao
Zéfiro: "Apartem-se os delfins das águas
do meu corpo!" Toda de luz
se esvai a carne de teus flancos,
teus seios são ariscos aos ávidos amantes.

Tálida, por que te afastas
nas amplas salas do Mar? Por que te esquivas a Hipérion,
um a um descendo os degraus da escada flamejante?

Enovelas-te em concha róseo-dourada,
os ouvidos cerrados ao lamento amoroso.
Por que a recusa em véus dissimulados?
E essa lágrima, ó tristonha,
por que suspensa nos cílios de seda iluminada?
Tua beleza é cofre oculto em profundezas,
aonde mão não chega de amado algum, nem sonho.
A taça de teus lábios é oferenda
que em nada se assemelha ao vinho destes ares,
a outro Deus vertido, Tálida, casto e invisível.

Dora Ferreira da Silva in " Hídrias", Odysseus Editora, São Paulo, 2004, p 47.
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28/01/11

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Um dia, meu amor, gastei o corpo
Contra a memória da casa, as mãos
Vieram ocas pelos dias que perdia
Ou a sombra me encostou o corpo
Contra a pedra, meu amor, onde parti
Os dedos como louças entre os dias,
Minhas agulhas foram o que cansei dos
Ossos, o meu amor, quero-lhe mal, desfaço
O coração, se largo tristeza ou puro fio
O dia escurece a casa, a cal seca na
Parede, se trago, meu amor, o corpo
Que partiu, digo-te: se amanhã fosses
Silêncio, ardor ou despedida, todos os
Nomes de deus trariam o osso à casa,
Onde rebento de fogo prendo animais
Fundos ao ventre, se a memória fosse
Só a cal amarga de um dia, meu amor

Alexandre Nave in "Os dias do Amor - um poema para cada dia do ano" (Organização:
Inês Ramos), Ministério dos Livros Editores, Parede, 2009, p 357.
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26/01/11

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"Memória"
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(Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser
atingidos
os pássaros
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Daniel Faria, Explicação das árvores e de outros animais)
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E, no entanto, havia dias em que o artifício era
coisa longínqua e a insídia um linguajar de imagens
a cabriolar ao longe, tão ao longe que nem imaginar
podia. Era um tempo de desejo e súplicas, de imposições
traçadas como desnorte de mendigos. Pedidos
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de socorro também, mas muito a medo ( o quê,
vais deixar-me assim?) entre vozes que ignorávamos
porque inúteis e sem interesse. Então caminhávamos
como se tudo nos fosse permitido, e, por direito
e merecimento, elevávamo-nos do chão nesse ponto
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- nesse minúsculo ponto - onde o corpo era uma forma
de sermos deuses, irupção contínua de mistérios,
dia após dia, ano após ano, sem que lhes soubéssemos
futuro nem consistência. Toda a virtude é um excesso,
disse-te um dia, enquanto alisava a mortalha e o carro
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parava súbito nos olhos esbugalhados do indiano,
que, de um jacto e sem esforço, vendia sua imundície
a fingir rosas. A rotunda, perplexa, buzinava enraivecida.
E as folhas do tabaco a resvalarem-me pelas calças
(a mortalha? Onde está a minha mortalha?!), enquanto
o negro do pára-brisas todo rosas podres e risos (são rosas,
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meu senhor, são rosas!). Risos de quem já nada sabe.
Nem a rotunda tão pouco: com a cesta do indiano às voltas,
lá no alto. No alto também nós, mas de outro modo,
que o ar sempre fora nosso elemento: na felicidade
dos instantes e na forte evanescência que, mais dia menos
dia, acabaria por vir. Como veio. Como veio e me atingiu.
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Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, pp 30 - 31.
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25/01/11

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"Vésperas, sem oração"
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(Tu
que pronunciaste o ámen do mundo

Nelly Sachs, Caim!)
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Pelos que perderam o sentido dos inocentes
caminhos. Pelos que preenchem suas viagens
com os mais vis embustes. Pelos que conseguem
demarcar, a régua e esquadro, qualquer tipo
de fronteira, inclusive a da materialidade.
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Por todos os que não reconhecem a divindade
estampada na face do outro. Pelos grandes
mestres do aniquilamento. Pelos que esqueceram
já a possibilidade de se reencontrar... de se
reconhecerem: livres, impolutos, disponíveis.
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Pelos que alienaram de si a própria
humanidade e artificiosamente explicam
a sua violência escolhida. Por todos. Todos!
Até por ti que me cercaste quando eu
menos o esperava. Concedei-lhes,
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ó deuses, aquilo por que lutaram - mas
do outro lado. Dai-lhes o resplandecente
paraíso que tanto desejaram - mas
ao contrário. Não vos esqueceis,
ó benevolentes, ó misericordiosos,
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da vida eterna, onde eles possam fruir
para sempre e sem perdão aquilo
que fabricaram. Sede justos, ó deuses!
Justos, mas surdos, nesse último momento.
Assim na terra como no céu (e nem sequer
me importo de um enorme Ámen).
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Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, pp 40 - 41.
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24/01/11

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               " Num café da Via Monginevro "


O rapaz do café olha-me com alguma desconfiança,
mas mesmo assim fala-me, é afável. Talvez seja
do país esta necessidade de estar próximo, de irradiar
um sólido encurtar distâncias neste tempo de implosões
organizadas. O rapaz do café traz os pedidos como
equilibrista de lugarejo: a bandeja, de uma bacidez

acinzentada, bascoleja copos, latas... e a mim também,
que de equilíbrio me sofro tão incapaz de um eu a recusar-me
unidade e acerto. Certo dia alargou-se mais: que era
lá de baixo, da Ligúria. Nascera em Sestri Levanti. Se eu conhecia,
e olhou-me a ameaçar escárnio: que sim, que sim (acalmei-o),
mas só de passagem, aliás, é de passagem que tudo conheço.

Conclusão que ele entendeu, pois logo me olhou livros e papéis.
O rapaz do café tem algo de metafísico (acabei por decidir),
pois quando fala depressa não o entendo, e quando se explica
pausadamente não o entendo também. Certo dia apanhou-me
alguns versos que me haviam caído da mesa e então perguntou-me

se eu fazia poesia. Que não!, respondi-lhe peremptório,
é ela que me faz a mim; é ela que me não larga, sempre
a recusar-me razão, conformidade. O rapaz do café deixou,
por fim, seu antigo olhar. Agora tem um outro, bem mais
enigmático - coisa de fascínio com hostilidade à mistura.

Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 22.
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23/01/11

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" Fora e Dentro"


Longe de Plutão, o Verde,
a janela do céu.
Subi tantos degraus no sonho?
As paredes me apertam.
Lembro-me de Ícaro
nessas paragens sem nenhum caminho.
Mas é a única janela aberta, incerta,
por onde começar.

Não te escolhi, altura, impuseste-me o começo: grande,
me escolheste pequena,
os olhos fechados num sonho que sonhaste.

Paro e contemplo.
Dispo-me do medo, esse casulo usado.
Espero o que quiseres.
Sabes que te amo, sem chão,
com cicatrizes de nuvens.
Nem avanço ou recuo,
mas tento decifrar-te:
subitamente infinita
na espiral recurva.

Dora Ferreira da Silva in "Poesia Reunida", Topbooks Editora, Rio de Janeiro, 1999, p 96.
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22/01/11

Acerca de ... (II)

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"Pelas Tuas Mãos, o Mistério da Poesia (Impressões de

Viagem, Pelas Vias da Fertilidade do Deserto Mateusiano)."

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Motivada pela sensorial "sedução dos horizontes ávidos de luz" (p. 43) da palavra e do silêncio, manifesta-se, em Pelo deserto as minhas mãos, a Poesia como " uma lúcida desrazão que acalma" (p. 63).
Nas epifanias amorosas, os olhos da pessoa amada fazem eco, ao alcance da "primordial Alegria de quem conjuga/ amor e liberdade..." (p. 41). E isto porque, reunindo "surpresa e desejo" (p. 31), essas epifanias ultrapassam a instância da língua e ganham densidade existencial, ao reconhecer-se o ser humano como Natureza.
Daí que o poeta, desejoso também de Poesia, declara: " mas dentro dos meus olhos há mares que não domino. Mares/ anteriores às palavras. Narrativa primeira que sempre me escapa" (p. 39); trazendo, para os versos, imagens do que Félix Guattari (Les trois écologies, 1989, pp. 38 - 39) denominou "Territórios Existenciais", a integrarem as dimensões ecológicas subjectivas, ambientais e sociais, pelas quais se ressingularizam as experiências humanas. É ainda esse sentido ecológico que me parece levar o poeta a se interrogar: Que verdade tem um límpido regato (sempre às avessas consigo próprio)? Vejo-o e ao enorme oceano para que aponta. Acaso deverei eu falar de outra coisa?
O deserto, dentro e fora do poeta, promove o dizer amoroso e socializador do poema, em busca da "exuberância consentida" (p. 25) que é a vida, a fazer avançarem "os ramos" do corpo ou a conduzir a uma des-muralização, por quem lhe tem a "senha". A conjunção erótica a ser sentida e declarada pelo amante ("um pássaro degolado pelo teu corpo") completa a cena da integração ecológica entre a interioridade ( o sentimento do um-no-outro) e exterioridade (a identificação entre homem e pássaro).
Ecológicas também são as imagens da solidariedade e do engajamento mental, social, ambiental de "Como afagarei eu a terra?" (p. 37) alicerçado na vivência da alteridade, pelas veredas da compreensão da dor e do dinamismo de sobrevivência dos que passaram pelas guerras e tiveram corpo e alma mutilados.
Assim, a fertilidade do deserto, como em João Cabral de Melo Neto ("Cultivar o deserto/ como um pomar às avessas") faz brotar os mistérios do corpo no corpo do poema, a revelarem, em expressões antológicas, a "desordem do mundo" (p. 35), a desordem do corpo, a desordem do poético que, em Pelo deserto as minhas mãos, num "misto de assombro e agonia, estranho dizer" é, decerto, poesia.
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Angélica Soares
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Nota - A primeira obra que li, em 2003, da Profª Dra. Angélica Soares da Universidade Federal do Rio foi um interessante ensaio sobre a escrita de algumas mulheres-poetas brasileiras. A partir daí lancei-me para outros livros seus nomeadamente um sobre Álvares de Azevedo.
O artigo acima transcrito data de 2005 e diz respeito a um livro meu de 2004.
Estes textos não são parte de correspondência privada (cartas, mails, etc.), no entanto, caso os seus autores me informem eles serão imediatamente removidos.
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20/01/11

Acerca de ...

Regresso: Victor Oliveira Mateus e o romance em verso
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Não se lê a poesia de Victor Oliveira Mateus desavisadamente, ou, melhor dizendo, não se frui nela seu melhor quando sem algumas chaves.
A primeira é que Victor, na contramão do que faz a maioria dos poetas, não nos apresenta jamais uma coletânea de poemas escritos num dado período de tempo. Não se trata de uma antologia, reunida ao gosto e ao acaso. Victor é autor de livros. Foi assim em suas obras anteriores e é assim, talvez mais do que nunca, em Regresso. Nele, como nos outros livros, cada texto é pensado dentro de um todo orgânico que a tudo estrutura e anima.
A segunda é que estamos diante um autor que faz quase poesia em prosa, ou prosa poética, se preferirmos. Sua cadência rítmica, larga, bárbara é muitas vezes narração, tantas outras especulação - que da forma do verso apenas se apropriam. Daí os cortes imprevistos no final das linhas, daí ainda a sintaxe vigorosa, poucas vezes nominal, como nominal seria de se esperar do que usualmente chamamos poesia, uma sintaxe repleta de advérbios, como a marcar o momento e a circunstância, repleta ainda de parêntesis e de travessões explicativos. Essa descrição me lembra a descrição que Ricardo Reis faz da poesia de Álvaro de Campos:
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O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior, determina-os ele pelos fins dos versos.
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(Pessoa, Fernando in Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986)
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(Porém, essa observação está inserida dentro de uma apreciação, ao jeito de Reis, elogiosa. E ninguém duvida que a poesia de Álvaro de Campos é, de fato, poesia. Assim como ninguém duvide que a poesia de Victor Mateus, seja ela usuária da prosa ou dela inquilina, atinge o que Poe chama de princípio poético, que é a súbita elevação do espírito e a comoção que desta decorre.)
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A terceira, e talvez importante: a poesia de Victor implica uma experiência que eu chamaria, mais que meramente de prosa em versos, de romance em verso - romance não linear, à mercê do fluxo de consciência. Nela a voz poética funcina como narrador-protagonista, e não, de fato, como um eu lírico.
E esse narrador vai, através de idas e vindas da memória, relatando, construindo um cenário, cosendo acontecimentos e estruturando um outro, um tu, ora próximo, ora remotíssimo, a quem volta e meia se dirige. Em Regresso, o cenário é a cidade de Turim. Por entre seus parques e alamedas, seus cafés cosmopolitas, deambula (como ele mesmo diz no título de um dos poemas) o protagonista, insistindo que a ela volta como que para resgatar o perdido - perdido esse que implica uma perda pessoal, alguém que a seu lado estava e já não está. Suas reflexões abarcam uma considerável gama de temas, que têm como centro a condição humana, sua luta contra a dissipação e o esquecimento.
Porém, lateralmente, se vai erguendo um outro edifício narrativo-conceitual, o da formação. Porque esse tu perdido, o outro, e sua perda foi etapa de aprendizado para que, ao fim e ao cabo, o protagonista enxergasse sua própria pequenez e a pequenez, o isolamento, a soberba, o desdém do indivíduo em face da voragem do tempo e das caras numa metrópole europeia, como vemos na cena em que o protagonista conversa com o garçom em um café enquanto rabisca um poema. Há, no passado, as etapas inelutáveis até que se chegue a uma suposta paz interior, e que tem muito mais de suposta do que de paz realmente.
Estamos, portanto, diante de um romance de formação em versos, à feição de tantos romances de formação em prosa - experimento sobremaneira interessante e inquietante, porque prova que a poesia serve para muito mais do que o mero exercício do lirismo (não que lirismo falte aqui, principalmente nas pinceladas impressionistas com que ergue sua fragmentária e atarefada Turim). Prova de que a poesia narra tão bem quanto a prosa, embora com características inerentes àquela. E que, ainda, narrando, e o fazendo em forma de romance, obtém um inequívoco efeito de verosimilhança.
É livro, pela própria pequena extensão, que se lê de uma assentada, e na ordem dada dos poemas. E Victor sabe que tem de ser assim. Sabe que o estado que deseja de seu leitor não suporta duas ou três horas ininterruptas, e, por isso, adensa-o, fá-lo breve. Sabe que seu romance, porque romance, requer fluidez e sequência, e, porque poesia, exige uma atenção concentrada, atenta à polissemia das imagens e metáforas.
É livro, enfim, que se lê com o prazer da novidade formal e em que se encontra o elemento de surpresa que sempre norteou, e ainda norteia, a boa poesia.
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Cláudio Neves
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18/01/11

"Os homens acreditam (...)que as mulheres são vulneráveis(...) ao passo que as mulheres se riem(..)da vulnerabilidade infantil e infinita dos homens."


Dormi mal, uma vez mais; em Péreiaslav parecia não poder ser de outra maneira. Os homens grunhiam, roncavam; assim que eu me amodorrava o ranger dos dentes do jovem Waffen-SS vinha cortar-me o sono e arrancava-me dele bruscamente. Nesta sonolência pastosa, o rosto de Ott e o crânio do soldado russo confundiam-se: Ott, caído no meio da poça de água, abria muito a boca e deitava-me a língua, uma língua espessa e cor-de-rosa e fresca, como se me convidasse a beijá-lo. Despertei angustiado, fatigado. Ao pequeno-almoço, tive um novo acesso de tosse, depois violentos vómitos; refugiei-me num corredor vazio, mas nada deitei fora. Quando voltei para a messe Hafner estava à minha espera com um telex:" Kharkov acaba de cair, Herr Hauptsturmfuhrer. O Standartenfuhrer quer tê-lo em Poltava."(...)
Quando acordei não ultrapassáramos ainda nem Lubny. O comboio parava muitas vezes, devido aos alertas, ou para deixar passar composições prioritárias. Ao pé da casa de banho, travei conhecimento com um Major da Luftwaffe, que voltava de um gozo de licença para se reunir ao seu esquadrão em Poltava. Havia cinco dias que deixara a Alemanha. Falou-me do moral dos civis do Reich, que permaneciam confiantes embora a vitória se fizesse esperar, e ofereceu-nos muito amavelmente um pouco de pão (...). A cada paragem contemplava demoradamente a tristeza das gares russas. Os equipamentos acabados de instalar pareciam já vetustos; as silvas e as ervas bravas invadiam as vias; aqui e ali, apesar da época do ano, avistava-se a cor de uma flor tenaz, perdida entre o saibro embebido de óleo negro.(...) Nas gares de triagem, viam-se à espera filas intermináveis de vagões sujos, manchados de óleo, enlameados, carregados de trigo, de carvão, de ferro, de petróleo, de gado, de todas as riquezas da Ucrânia ocupada apreendidas para serem enviadas para a Alemanha.(...) O nacional-socialismo quisera fazer com que cada alemão, no futuro, pudesse ter a sua modesta parte das coisas boas da vida; ora, nos limites do Reich, isso revelara-se impossível; essas coisas, agora, obtinhamo-las tirando-as aos outros. Era justo? Enquanto tivessemos a força e o poder, sim, porque no que se refere à justiça, não há instância absoluta, e cada povo define a sua verdade e a sua justiça. Mas se um dia a nossa força enfraquecesse, se o nosso poder fraquejasse, então teríamos de sofrer a justiça dos outros, por mais terrível que fosse. E também isso seria jisto.(...)
São cerca de cento e vinte quilómetros de Poltava a Kharkov: a viagem necessitou de um dia inteiro. Entrávamos na cidade atravessando bairros exteriores devastados com as paredes calcinadas, deslocadas, derrubadas, por entre as quais, varridas à pressa, se acumulavam pequenos amontoados de carcaças torcidas e queimadas do material de guerra desperdiçado pela inútil defesa da cidade. O Vorkommando instalara-se no hotel Internacional, no flanco de uma imensa praça central (...). Requisitei uma pequena suite mais ou menos habitável, Deixei Hanika entender-se com as janelas e o aquecimento (...).
No quarto, Hanika conseguira tapar as janelas com papelão e lonas, e descobrira algumas velas para garantir a iluminação; mas as divisões da suite continuavam glaciais. Durante um longo momento, sentado no divã enquanto ele aquecia o chá, deixei-me ocupar por uma fantasia: a pretexto do frio, convidava-o a dormir comigo (...). Seduzir um subordinado, ainda que aquiescente, estava fora de questão; mas havia muito tempo que não pensara em coisas assim e não procurei resistir à doçura daquelas imagens. Olhava-lhe a nuca e perguntava-me se ele teria já alguma vez conhecido uma rapariga (...) eu considerava essas nucas (...) compreendendo subitamente com uma nitidez aterradora que os homens nada controlam, nada dominam, que são todos eles crianças e até mesmo brinquedos, aí postos para prazer das mulheres, um prazer insaciável e mais soberano ainda pelo facto de os homens acreditarem controlar as coisas, acreditarem dominar as mulheres, quando a realidade é que as mulheres os absorvem, arruínam a dominação e dissolvem o controle deles, para deles tomarem afinal de contas muito mais do que eles querem dar. Os homens acreditam com toda a honestidade que as mulheres são vulneráveis, e que é preciso aproveitarem-se dessa vulnerabilidade ou protegerem-na, ao passo que as mulheres se riem, com tolerância e amor ou então com desprezo, da vulnerabilidade infantil e infinita dos homens, da sua fragilidade, dessa friabilidade tão próxima da perda permanente de controle, essa derrocada perpetuamente ameaçadora, essa vacuidade encarnada numa carne tão forte. É bem por isso, sem a mais pequena dúvida, que as mulheres tão raramente matam. Sofrem muito mais, mas terão sempre a última palavra. Eu bebia o meu chá. Hanika fizera-me a cama com todos os cobertores que conseguira encontrar; peguei em dois deles e deixei-lhos no divã da divisão de entrada, onde ele iria dormir. Fechei a porta e masturbei-me rapidamente, depois adormeci logo a seguir, com as mãos e o ventre manchados de esperma. (...)
Como em Kiev, tratei de montar a minha rede de informadores; o que se tornava ainda mais necessário dada a existência de uma população variegada, cheia de imigrados de toda a URSS, entre os quais se escondiam decerto numerosos espiões e sabotadores...
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Jonathan Littell in "As Benevolentes", Publicações D. Quixote, Lisboa, 2007,
pp 152 - 159 ( Tradução de Miguel Serras Pereira).
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17/01/11


" Órfica "
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Não me destruas, Poema,
enquanto ergo
a estrutura do teu corpo
e as lápides do mundo morto.
Não me lapidem, pedras,
se entro na tumba do passado
ou na palavra-larva.
Não caias sobre mim, que te ergo,
ferindo cordas duras,
pedindo o não-perdido
do que se foi. E tento conformar-te
à forma do buscado.
Não me tentes, Palavra,
além do que serás
num horizonte de Vésperas.
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Dora Ferreira da Silva in "Poesia Reunida", Topbooks Editora, Rio de Janeiro, 1999, p 89.
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" Assim, meu amor, se estiveres longe,/ assim falo contigo... "

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" A escrava"

Agora eu sou um jovem senhor,
e tu és a minha escrava. Vá, não me digas
que não, palerma; eu sei bem que é um sonho;
mas o sonho de que vivo é a verdade.

Comprei-te, bem longe daqui,
àquele velho de turbante, um dia em que estava
muito infeliz. E como soluçavas,
logo um beijo te dei, seguido de boas
coisas e de doces palavras. Agora és minha,
és a coisa que tenho; poderia minha menina
até bater-te; mas longe disso só bem
te farei; far-te-ei entre dois beijos
se não mo disseres, pensar ao menos: É belo,
quando se é escravo, ter um amo bom.

Assim, meu amor, se estiveres longe,
assim falo contigo, que já na cama,
mal acordo, no meu coração começo
a falar-te, a pensar em ti, a delirar.

Umberto Saba in "Poesia", Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, p 141 ( selecção,
tradução, introdução e notas de José Manuel de Vasconcelos).
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14/01/11

" Questo pane ha il sapore d'un ricordo,/ mangiato in questa povera osteria, "

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"Dopo la tristezza"

Questo pane ha il sapore d'un ricordo,
mangiato in questa povera osteria,
dov'è píù abbandonato e ingombro il porto.

E della birra mi godo l'amaro,
seduto del ritorno a mezza via,
in faccia ai monti annuvolati e al faro.

L'anima mia che una sua pena ha vinta,
con occhi nuovi nell'antica sera
guarda un pilota con la moglie incinta;

e un bastimento, di che il vecchio legno
luccica al sole, e con la ciminiera
lunga quanto i due alberi, è un disegno

fancuillesco, che ho fatto or son vent'anni.
E chi mi avrebbe detto la mia vita
così bella, con tanti dolci affanni,

e tanta beatitudine romita!

Umberto Saba in " Poesia", Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, p 76.
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13/01/11

Textos em catálogos de Exposições - II

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"Realidade e Erosão na obra de Domingos Camponez"

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Um atempado olhar em torno da obra pictórica de Domingos Camponez conduz-nos de imediato àquilo que tem sido uma das suas vertentes fundamentais - a constante insatisfação ante temas, técnicas, formas e perspectivas: incansável observador do que o cerca o pintor não se fixa num único modo de apreender esse real que o surpreende e inquieta.

Em 2003, aquando da sua Exposição na Biblioteca Municipal David Mourão-Ferreira, Domingos Camponez constrói um universo de forte pendor matemático: o figurativo geométrico impõe então as suas leis aos materiais que o artista aí utiliza - madeira, serapilheira, óleo, acrílico e tela em linho ou em algodão. Alguns anos depois - e para referirmos apenas duas das suas mostras - o pintor decide expor na Fabula Urbis um conjunto temático que intitulou Gavetos. Ali estávamos já perante uma outra linguagem, panóplia de aguarelas que nos acicatavam a atenção para aquilo que tantas vezes insistimos em não ver nesta ritualizada existência urbana que é a nossa.

Agora, com esta nova Exposição, Domingos Camponez insiste em desdobrar-se, uma vez mais, quer quanto ao modo de olhar o real quer quanto às técnicas por que opta para expressar as suas observações. O tema é forte. Forte e abrangente - a Erosão. Não só uma erosão entendida como degenerescência de tecidos moleculares ou corpos no seu todo, ou vista como decomposição de elos afectivos e outros descalabros das relações interpessoais, ou ainda como o mero desgaste de paisagens físicas. A Erosão de que Domingos Camponez fala nesta nova Exposição é uma corrosão globalizadora da qual nada nem ninguém se pode eximir. Ante a veemência do tema o autor regressa aqui ao abstraccionismo e aos quadros de grandes dimensões, para que a estupefacção do visitante seja estimulada ao extremo numa mescla de espanto e de incitamento à consciencialização. Nestes novos quadros o pintor raramente se socorre do pincel, optando preferencialmente pela espátula e por técnicas mistas: óleo/China e óleo/acrílico, com as quais organiza os seus fundos predominantemente frios (sobretudo brancos e com vários matizes de cinzento) onde se virão incrustar depois - quais iniludíveis gritos de alerta - as cores mais fortes como o vermelho, o laranja e os diversos tipos de azul. Vemos, portanto, que os meios de que se socorre Domingos Camponez, nesta sua nova Exposição, apresentam uma dual finalidade: o estimular da emoção estética do visitante através dos instrumentos e artifícios já referidos, mas também o alertar de todos frente a essa multifacetada Erosão que nos cerca e onde somos chamados a viver, Erosão essa que atinge os seres (veja-se o quadro das duas girafas), bem como os recursos de que necessitam para se manter neste planeta que é, afinal, a nossa casa comum (repare-se igualmente na pintura que aborda a questão da pescaria nocturna).
Esta Exposição consegue, por conseguinte, articular de forma nítida e eficaz essas réstias de Belo que falam (ainda) à sensibilidade dos homens com as linhas de um Sentido que urge preservar, para que a vida mantenha o que em si é dignidade e capacidade de transfiguração.
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Victor Oliveira Mateus (Lisboa, 10/1/2011).
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Nota - alguns destes textos, após a sua entrega aos respectivos destinatários, acabo por me desinteressar do seu destino. Um pouco como se eles já não fossem meus. Assim, relativamente ao primeiro sei que estava a ser traduzido para espanhol (cheguei mesmo a ver o esboço do Catálogo), pois a referida Exposição iria percorrer várias cidades de outros países. No que diz respeito a este segundo texto, julgo saber que a Exposição irá decorrer em duas salas de um dos museus da zona de Belém, em Lisboa, mas não sei ainda mais pormenores...
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12/01/11

Textos em catálogos de Exposições - I


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" Ambrósio Ferreira: a silenciosa iluminação das formas"
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Falar de uma dada produção artística, quer considerando-a na sua globalidade quer apenas num dos seus aspectos parcelares, implica sempre alguns problemas de carácter epistemológico. Em primeiro lugar aquele que vê e interpreta transporta inelutavelmente as marcas de uma subjectividade contaminada por múltiplos factores; por outro lado, o objecto, inapreensível na totalidade que é, desvela ao sujeito apenas uma das suas faces - aquela que aparece. Por estas razões a nossa leitura da obra do pintor Ambrósio Ferreira não é mais do que uma mera sugestão interpretativa, despida de qualquer pretensão universalizante.
Liberto este texto de qualquer propósito impositivo, começaremos por falar do jogo de representação que nos é apresentado nesta pintura. Assim, se o ser humano pode ser encontrado como figura central de alguns quadros, e referimo-nos às primeiras fases desta obra, o que é um facto é que o estatuto ontológico desse ser se dissolve, expandindo-se, nas fases mais recentes, para uma cosmovisão pictórica onde todas as entidades possuem idêntica dignidade: as árvores, o vento, os insectos, etc. Em consonância com as sabedorias orientais o centro desta obra não é, pois, de cariz antropológico, encontra-se antes esparso por tudo quanto existe; plurifacetada ela é uma totalidade sem centro, porque, e paradoxalmente, ele está por todo o lado. Este desenvolvimento que o pintor imprime ao seu trabalho não desemboca numa minorização deste, antes pelo contrário, o resultado é um franco enriquecimento da obra, não só, e como o sugerimos já, ontológico, mas acima de tudo estético, pois - e ilustrando com o último conjunto de quadros pintados por Ambrósio Ferreira - se a nossa percepção se prende, por exemplo, num dado fruto, logo este se turva e muda de plano, para que o mesmo quadro passe logo a falar das estações do ano, de que o anterior fruto se torna agora num mero aspecto ilustrativo. É desta característica, destreza de reflexos e remissões, que queríamos falar quando referimos há pouco a questão do enriquecimento estético, aliás, este aspecto, quanto a nós essencial nesta produção artística, aparece já nas fases anteriores: no ciclo dos anjos estes tanto nos surgem na sua tradicional conotação salvífica ligada ao transcendente ( exemplo: o tema da queda num dos quadros), como logo nos parecem acenar com o terreno ou até com o ideológico ( uma das pinturas insinua-nos mesmo um sofá visto de costas, com os seus braços-asas). Este vaivém de significações dentro de um ciclo de trabalhos ou dentro de um quadro, desagua numa inusitada articulação, que, quanto a nós, existe entre a pintura de Ambrósio Ferreira e as outras artes, nomeadamente a música e a poesia - exemplo: vendo Cintilações instantâneas sobre a folhagem (2004) não nos podemos impedir de pensar na Sagração da Primavera de Stravinsky, como anteriormente, frente aos anjos, relembraramos a Sinfonia dos Salmos do mesmo compositor; tal carga afectivo-simbólica ocorre-nos igualmente neste últimos quadros do pintor, onde as cerejeiras, a chuva e a terra nos fazem lembrar a nostalgia de Schubert ou a angústia desesperada de algumas canções de Mahler. É também conhecido o trabalho de colaboração e partilha que Ambrósio Ferreira vem desenvolvendo com alguns poetas portugueses contemporâneos. Na sequência desta ininterrupta mobilidade por nós aqui delineada recusamo-nos a presunção de integrar esta pintura em tendências estéticas de circunstância e/ou em correntes artísticas cujos cânones são, a maior parte das vezes, determinados por elementos extrínsecos ao mundo da arte. De igual modo a emoção estética, perdida numa obra que escapa à lógica dualista ocidental, pressente, para além de outras coisas, a impermanência dos fenómenos transposta para as telas com o rigor e a magia de quem sabe, como o filósofo japonês Taisen Deshimaru (1914 - 1982), que o nosso mundo é um mundo errático. Todo ele caminha aos ziguezagues com um andar de bêbado e representa num caminho que é de vida e morte (1).
A recusa de uma representação de pendor fixista leva Ambrósio Ferreira, no que respeita à dicotomia pintura figurativa/ abstraccionismo, a uma posição de equidistância em relação a ambos os pólos. Deliberada, esta orientação é já por ele clarificada numa entrevista aquando de uma das suas exposições (2); demarcando-se aí, de modo frontal e nítido, do enfadonho e do estéril em que acabaram caindo respectivamente as pinturas dos séculos XIX e XX. Para o pintor as telas têm assunto e forma, urge, por conseguinte, não acenturar nenhum destes aspectos. Convém enfatizar, portanto, o engenho com que se coloca aqui o equilíbrio, o justo-meio bem ao gosto das filosofias ocidentais, ao serviço da impermanência dos fenómenos, tese fundamental nas filosofias orientais. Detenhamo-nos agora um pouco, e a título exemplificatico, em dois dos quadros deste último período, para tentarmos aclarar o que temos vindo a dizer: no subnúcleo Elogio ao vento e à chuva encontramos a obra Cerejeiras açoitadas pelo vento (acrílico s/ tela, 100x0,81), onde o figurativo e o abstracto dialogam com mestria e a percepção oscila, sem se conseguir decidir, entre o reconhecimento de pinceladas que exteriorizam o furor de pulsões, que se destinam unicamente a transmitir à sensibilidade de quem vê a violência de um ímpeto originário, e a dança, quase audível, das copas das árvores ali mesmo à nossa frente. O mesmo sucede num outro item: Inverno. Aí encontramos o quadro Memórias do poeta velho (acrílico s/ tela, 150x100) - que descortinam nela a nossa sensibilidade e o nosso entendimento? Um leque de pinceladas que nos enfeitiçam a visão sem que o saibamos porquê? Ou a degenerescência da própria memória: as dendrites pendendo como pequeninos tentáculos podres e as sinapses, já sem préstimo, corroídas pelo branco da tela? Por fim, e acerca do diálogo interartes que anteriormente dissemos vislumbrar nesta pintura, atente-se à poeticidade, não só dos próprios quadros, mas também das frases/versos com que eles são nomeados.
Esta é, em jeito de conclusão, a indelével marca que Ambrósio Ferreira imprime ao seu trabalho: qual artíficie pintando fugazes, mas luzentes, imagens e formas; não revelando nunca a chave com que produz e ilumina essas mesmas formas: sem alarde, despojadamente, em silêncio, demarcando-se de uma pintura assente no tudo querer dizer e da prestidigitação grosseira dos malabaristas da forma. E é demarcando-se igualmente do bulício do mundo contemporâneo que o pintor opta, não só pela rejeição dos efeitos fáceis, mas acima de tudo pela autenticidade com que distingue o essencial do que é ilusório e impermanente, desvelando-nos sempre este último com a agudeza de quem sabe que os sofrimentos são provenientes da ilusão, que consiste em não reconhecer a vacuidade dos fenómenos, e é isso que nos faz atribuir-lhes uma realidade que eles não têm... (3). Por conseguinte, é esse vazio fenoménico que enche hoje as telas de um pintor, que, compassiva e despretensiosamente, tece a magia da silenciosa iluminação das formas.
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(1) Pierre Crépon, Les fleurs de Boudha, Paris, Éditions Albin Michel, 1991, p 305.
(2) Cf. Gazeta do Interior, Castelo Branco, 14 de Janeiro de 1994.
(3) Kalou Rinpoché, La voie du Boudha, Paris, Éditions du Seuil, 1993, p 77.
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Victor Oliveira Mateus (Lisboa, 11/8/2007).
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10/01/11

"(...) em seu totalitário desvario/ apenas procurou um espaço ou subúrbio de paisagem. "

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" XIII "

. o antigo arquitecto das almas andou de cidade em cidade
porque é um desvairado. rastejou subjugado sem que
uma delas o acolhesse em seu divino e surreal canto. filho
unigénito da oração fraccionada em seu totalitário desvario
apenas procurou um espaço ou subúrbio de paisagem. nele
descansa toda a eternidade das borboletas azuis contaminadas
pela antiga estrela do sol. esperou só a apoteose do prodígio
do verbo e a luminescência sobre os seres que respiram pelas
artérias. e pereceu na ausência da abundância expelindo o
derradeiro halo do vómito. o excremento ácido e avassalador
das mariposas ofuscas de luz. as suas raízes alastram agora
pelas frechas sanguíneas do asfalto. e aí desabrocham hoje
pragas raras de gramíneas. a blasfémia redentora da utopia.
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João Rasteiro in "Diacrítico", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 47.
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09/01/11

". no princípio a intimidade do mundo brilhava descomunal sobre infindáveis labirintos. "


" V "
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. no centro da loucura move-se o milagre que asfixia a própria
boca com a seiva das flores de calcário. então miragem e
memória misturam-se com a fímbria dos dedos, aí desejo e
lascívia povoam habitáculos das primeiras cópulas. e pelo
criador em seu centrípeto desconcerto todas as crias foram
feitas no espelho das águas calcinando de eterna demência a
casa de jacob. no princípio a intimidade do mundo brilhava
descomunal sobre infindáveis labirintos. o céu vociferava o
seu santo nome porquanto a luz das fábulas é a cúpula de um
meteoro sagrado. depois perdeu-se o medo das visões. e nelas
se adivinhou o rosto do temor.
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João Rasteiro in "Diacrítico", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 19.
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07/01/11

" Son amie n'arrêtait pas de tousser, elle était continuellement malade, de plus elle attendait un bébé."


J'étais rentré à Rome en laissant à Paris le secret de ma maladie. J'y fis cependant entorse pour Matou à force d'être tanné par lui sur la cause de mon assombrissement. Il n'y avait pas un jour où il ne revenait à la charge: "Mais enfin qu'est-ce qu'il t'arrive Hervelino? Tu es devenu tout bizarre... Tu as changé... Quelque chose te préocupe? Je t'aime beaucoup, il est normal que je me soucie de toi..." Je fis d'abord semblant de ne pas saisir le sens de ses injonctions, puis je l'envoyai bouler, mais il ne lâchait pas prise. Enfin, alors que nous étions tous deux seuls, je laissai tomber la vérité, je lui dis texto que j'avais des inquiétudes au sujet de ma santé, et, sans exiger aucune précision supplémentaire, il ne me posa plus aucune question. Mais l'aveu comprenait quelque chose d'atroce: dire qu'on était malade ne faisait qu'accréditer la maladie, elle devenait réelle tout à coup, sans appel, et semblait tirer sa puissance et ses forces destructrices du crédit qu'on lui accordait. De plus, c'était un premier pas dans la séparation qui devait conduire au deuil. Le soir même Matou sonnait à ma porte pour m'offrir l'objet que je cherchais depuis des semaines, un luminaire stellaire, lui avait dégoté en un tournemain comme un magicien, et c'était sa façon à lui de me dire que la lampe en forme d'étoile, malgré mon inquiétude, m'éclairerait encore longtemps. Et nous allâmes danser ensemble, jusqu'à l'extrême limite de nos forces, pour nous démontrer que nous avions encore du souffle, et que nous étions bien en vie. Mais j'avais aussi de inquiétudes au sujet de Matou, car, avant de devenir mon grand ami, il avait été mon amant, cinq ans plus tôt, à une période qui devait coincider avec le temps rétroactif de la contamination, le suivre ou le précéder de peu. Son amie n'arrêtait pas de tousser, elle était continuellement malade, de plus elle attendait un bébé. En prenant des gants, je déclarai à Matou qu'à cause de cette situation, la gestation de l'enfant qui remontait à trois mois, je lui conseillais de faire le test, sans en parler toutefois à son amie pour ne pas l'inquiéter. Je plongeai Matou dans état d'angoisse abominable, qu'il fut contraint de murer au plus profond de lui, retourné dans son pays, et s'interrogeant sans relâche au cours des insomnies, en fixant les feuilles du frêne qui bruissait dans l'ombre par la fenêtre, sur le bien-fondé de cette démarche, torturé par son hésitation, décidant de faire le test, puis y renonçant. Le matin de son départ, à bout de tout, il alla tendre son bras nu à l'aiguille comme, empêtré dans les ronces d'une promenade inextricable, on se décide à sauter d'un mur trop haut, et emporta en échange son numéro de loterie, qu'il remit à la personne en qui il avait une entière confiance. Matou était revenu à Rome, nous marchions ensemble dans le jardin, son amie plus loin avec une autre connaissance, il portait ce soir-là sa gabardine bleue et son chapeau, cela faisait des jours, depuis son retour, qu'il était morfondu, terne et agressif, il me chuchota: "Ça y est, j'ai fait le test..." Je lui demandait, avec avidité: "Et alors?" C'était un moment difficile, où l'on pauvait penser que l'autre avait des doutes sur la véritable transparence, en cet instant, de votre coeur. Matou venait de recevoir le coup de fil de cet ami qui s'était fait passer pour lui avec son nméro. "Et alors c'est bon..." me dit Matou sans intonation. Je souriais, j'étais, n'est-ca pas louche de le préciser? profondément et sincèrement soulagé.
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Hervé Guibert in " À l'ami qui ne m'a pas sauvé la vie", Éditions Gallimard, Paris,
1990, pp 164 - 166.
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" Viens, je te réclame, / Viens, consume-moi."


"Le cantique éternel chanté dès l'exil"
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Ton épouse exilée, sur la rive étrangère
Peut chanter de l'Amour le cantique éternel
Puisque, mon Doux Jésus, tu daignes sur la terre
Du feu de ton Amour l'embraser comme au Ciel.
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Mon Bien-Aimé, Beauté suprême
A moi tu te donnes toi-même
Mais en retour
Jésus, je t'aime
Et ma vie n'est qu'un seul acte d'amour!
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Oubliant ma grand misère
Tu viens habiter en mon coeur.
Mon faible Amour, ah quel mystère!
Suffit pour t'enchaîner, Seigneur.
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Mon Bien-Aimé etc...
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Amour qui m'enflamme
Pénètre mon âme
Viens, je te réclame,
Viens, consume-moi.
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Ton ardeur me presse
Et je veux sans cesse
Divine fournaise
M'abîmer en toi.
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Seigneur, la souffrance
Devient jouissance
Quand l'âme s'élance
Vers toi sans retour.
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Thérèse Martin, de Lisieux in " O Alto Voo da Cotovia", Relógio D'Água Editores,
Lisboa, 1999, p 186.
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06/01/11

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               " 5. "

"Vai pra Delfos" - um sino, um martelo, sei lá,
ou um encosto, atacava sem trégua, moía
a cabeça, e "aspirina, meu Deus, por favor
aspirina", abro o vidro vazio, fecho o vidro,
" eu tô louco", o remédio: poesia alemã;
leio enquanto dirijo - uma noz, a palavra,
alvorece, avermelha na boca da pítia,
e do invólucro duro não dá pra escapar,
nem da hepatotomia -, tá bom, tô melhor;
sempre fico melhor perto desse alemão;
chego a Delfos; inverno; bem poucos turistas;
uns ciprestes, terreno rochoso, montanhas,
cinco meias-colunas, ou seis, muita pedra
e uma imensa vontade de ter um porquê;
" o melhor, água pura, mas ouro, de noite,
como fogo fervendo arrebata, supremo... "
- bom agouro, talvez: uma águia bem longe,
uma brisa soprando o segredo que esconde.

Érico Nogueira in " Dois ", É Realizações Editora, São Paulo, 2010, p 49.
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05/01/11


                 " 20. "

Se dois (ou mais de dois) se relacionam,
daí resulta com-, ou dissonância:
as coisas que se juntam, se friccionam,
estão em qual dos pratos da balança?

O meu olho pousou em certo arbusto,
sem saber que era arbusto só de espinhos:
quase, então, se apagou, e a muito custo
descobriu outro olho no caminho.

Pólos contrários de aquoleoso ímã,
os olhos se abraçaram sem se unir,
como sons que dissoam numa rima e
não se fundem num só - um lá, um aqui.

Crânio e tórax, razão e sentimento,
buraco e o que com ele faça par,
dialogam sem trégua; num momento
há de chegar silêncio, espero. Há.

Érico Nogueira in " Dois", É Realizações Editora, São Paulo, 2010, p 42.
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04/01/11

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" Personagem "


Deixava que o olhar seguisse
meio perdido meio assente
em pormenores do terreno sem que os visse

era frio: e no entanto aquilo por que ia sempre fora

matéria ardente,
miragem de uma atenção alucinada

ainda não sei hoje que nome dar àquilo
o amor não é tão duro

Maria Andresen in "Lugares, 3", Relógio D' Água Editores, Lisboa, 2010, p 55.
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03/01/11

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" JUST PUT A LOT OF LOVE IN IT
(Johnny Guitar, Nicholas Ray)"


Nada neste lugar é simples; nada para além do fogo que
num ápice devora
o meu saloon de espera: (Johnny tu eras
a minha questão com a vida) onde param vultos
negros como corvos e a sua destreza pequena

mas ela, Vienna, usa o branco, o vermelho, o piano
ela sabe curta a sorte e curta a rédea que a segura
e que toda a morte é súbita nos saloons
por isso te espera Vienna nesse lugar limite
(e são lugares limite todos os lugares da vida) ao som
da roleta a girar como uma esperança - just put
a lot of love in it

Maria Andresen in "Lugares, 3", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2010, p 18.
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02/01/11

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         " MEDITERRÂNEO
(Méditerranée de Jean-Daniel Pollet) "
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Há ecos secos de estridência e ignorância
rodeamos devagar a casa emudecida e grande
e olhamos
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como de roda atroam os insectos
como no rosto jacente o tempo é luminoso
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e se obstina, paralelo ao sol, à corrosão do sal
- esta é a condição que nos espanta, sob o cerco
atroante dos insectos
.
olhamos isto devagar e nada vemos
e disso é que falamos: da obstinação do sol
sobre as ruínas
.
a rapariga de vermelho, que aos torsos se mistura,
a rapariga em branco, sob um sono branco
.
e a rapariga que abotoa a blusa azul enquanto passa
um vento de doçura e quente, um vento que consente:
rosa aberta ao canto rouco obstinado
.
porque são rápidos cegos e ligeiros os gestos
nessa dança
.
todo o rosto é solo arável, todo o rosto dado
à incubação do sol, à luz propícia, este é o zumbido
das abelhas - robustas, em círculo apoderadas
da procura
.
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Maria Andresen in " Lugares, 3", Relógio D' Água Editores, Lisboa, 2010, p 15.
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01/01/11

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" memória 2 "


devo-te o diálogo de todas as gerações
desde as pontas do silêncio às profundezas
da alma do mar. devo-te
saber de mim como a folha branca
sabe da palpitação do traço da palavra
do sangue.

e devo-te a demora com que espero
que a poesia adormeça.

Álamo Oliveira in " andanças de pedra e cal", BLU edições, s/c., 2010, p 35.
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Poema 2 de " três poemas (breves) do corvo"
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nada como pressentir a vida e a morte sem incómodo.
ali homens e coisas vivem desse pressentimento - apenas.
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quando chove há um búzio de abrigo para cada um
e quando há sol transforma-se na manta de repouso.
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o mar por sua vez manso ou bravo dá um ar
de descanso que até parece domingo.
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Álamo Oliveira in "andanças de pedra e cal", BLU edições, s/c., 2010, p 12.
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