.
" Ambrósio Ferreira: a silenciosa iluminação das formas"
.
Falar de uma dada produção artística, quer considerando-a na sua globalidade quer apenas num dos seus aspectos parcelares, implica sempre alguns problemas de carácter epistemológico. Em primeiro lugar aquele que vê e interpreta transporta inelutavelmente as marcas de uma subjectividade contaminada por múltiplos factores; por outro lado, o objecto, inapreensível na totalidade que é, desvela ao sujeito apenas uma das suas faces - aquela que aparece. Por estas razões a nossa leitura da obra do pintor Ambrósio Ferreira não é mais do que uma mera sugestão interpretativa, despida de qualquer pretensão universalizante.
Liberto este texto de qualquer propósito impositivo, começaremos por falar do jogo de representação que nos é apresentado nesta pintura. Assim, se o ser humano pode ser encontrado como figura central de alguns quadros, e referimo-nos às primeiras fases desta obra, o que é um facto é que o estatuto ontológico desse ser se dissolve, expandindo-se, nas fases mais recentes, para uma cosmovisão pictórica onde todas as entidades possuem idêntica dignidade: as árvores, o vento, os insectos, etc. Em consonância com as sabedorias orientais o centro desta obra não é, pois, de cariz antropológico, encontra-se antes esparso por tudo quanto existe; plurifacetada ela é uma totalidade sem centro, porque, e paradoxalmente, ele está por todo o lado. Este desenvolvimento que o pintor imprime ao seu trabalho não desemboca numa minorização deste, antes pelo contrário, o resultado é um franco enriquecimento da obra, não só, e como o sugerimos já, ontológico, mas acima de tudo estético, pois - e ilustrando com o último conjunto de quadros pintados por Ambrósio Ferreira - se a nossa percepção se prende, por exemplo, num dado fruto, logo este se turva e muda de plano, para que o mesmo quadro passe logo a falar das estações do ano, de que o anterior fruto se torna agora num mero aspecto ilustrativo. É desta característica, destreza de reflexos e remissões, que queríamos falar quando referimos há pouco a questão do enriquecimento estético, aliás, este aspecto, quanto a nós essencial nesta produção artística, aparece já nas fases anteriores: no ciclo dos anjos estes tanto nos surgem na sua tradicional conotação salvífica ligada ao transcendente ( exemplo: o tema da queda num dos quadros), como logo nos parecem acenar com o terreno ou até com o ideológico ( uma das pinturas insinua-nos mesmo um sofá visto de costas, com os seus braços-asas). Este vaivém de significações dentro de um ciclo de trabalhos ou dentro de um quadro, desagua numa inusitada articulação, que, quanto a nós, existe entre a pintura de Ambrósio Ferreira e as outras artes, nomeadamente a música e a poesia - exemplo: vendo Cintilações instantâneas sobre a folhagem (2004) não nos podemos impedir de pensar na Sagração da Primavera de Stravinsky, como anteriormente, frente aos anjos, relembraramos a Sinfonia dos Salmos do mesmo compositor; tal carga afectivo-simbólica ocorre-nos igualmente neste últimos quadros do pintor, onde as cerejeiras, a chuva e a terra nos fazem lembrar a nostalgia de Schubert ou a angústia desesperada de algumas canções de Mahler. É também conhecido o trabalho de colaboração e partilha que Ambrósio Ferreira vem desenvolvendo com alguns poetas portugueses contemporâneos. Na sequência desta ininterrupta mobilidade por nós aqui delineada recusamo-nos a presunção de integrar esta pintura em tendências estéticas de circunstância e/ou em correntes artísticas cujos cânones são, a maior parte das vezes, determinados por elementos extrínsecos ao mundo da arte. De igual modo a emoção estética, perdida numa obra que escapa à lógica dualista ocidental, pressente, para além de outras coisas, a impermanência dos fenómenos transposta para as telas com o rigor e a magia de quem sabe, como o filósofo japonês Taisen Deshimaru (1914 - 1982), que o nosso mundo é um mundo errático. Todo ele caminha aos ziguezagues com um andar de bêbado e representa num caminho que é de vida e morte (1).
A recusa de uma representação de pendor fixista leva Ambrósio Ferreira, no que respeita à dicotomia pintura figurativa/ abstraccionismo, a uma posição de equidistância em relação a ambos os pólos. Deliberada, esta orientação é já por ele clarificada numa entrevista aquando de uma das suas exposições (2); demarcando-se aí, de modo frontal e nítido, do enfadonho e do estéril em que acabaram caindo respectivamente as pinturas dos séculos XIX e XX. Para o pintor as telas têm assunto e forma, urge, por conseguinte, não acenturar nenhum destes aspectos. Convém enfatizar, portanto, o engenho com que se coloca aqui o equilíbrio, o justo-meio bem ao gosto das filosofias ocidentais, ao serviço da impermanência dos fenómenos, tese fundamental nas filosofias orientais. Detenhamo-nos agora um pouco, e a título exemplificatico, em dois dos quadros deste último período, para tentarmos aclarar o que temos vindo a dizer: no subnúcleo Elogio ao vento e à chuva encontramos a obra Cerejeiras açoitadas pelo vento (acrílico s/ tela, 100x0,81), onde o figurativo e o abstracto dialogam com mestria e a percepção oscila, sem se conseguir decidir, entre o reconhecimento de pinceladas que exteriorizam o furor de pulsões, que se destinam unicamente a transmitir à sensibilidade de quem vê a violência de um ímpeto originário, e a dança, quase audível, das copas das árvores ali mesmo à nossa frente. O mesmo sucede num outro item: Inverno. Aí encontramos o quadro Memórias do poeta velho (acrílico s/ tela, 150x100) - que descortinam nela a nossa sensibilidade e o nosso entendimento? Um leque de pinceladas que nos enfeitiçam a visão sem que o saibamos porquê? Ou a degenerescência da própria memória: as dendrites pendendo como pequeninos tentáculos podres e as sinapses, já sem préstimo, corroídas pelo branco da tela? Por fim, e acerca do diálogo interartes que anteriormente dissemos vislumbrar nesta pintura, atente-se à poeticidade, não só dos próprios quadros, mas também das frases/versos com que eles são nomeados.
Esta é, em jeito de conclusão, a indelével marca que Ambrósio Ferreira imprime ao seu trabalho: qual artíficie pintando fugazes, mas luzentes, imagens e formas; não revelando nunca a chave com que produz e ilumina essas mesmas formas: sem alarde, despojadamente, em silêncio, demarcando-se de uma pintura assente no tudo querer dizer e da prestidigitação grosseira dos malabaristas da forma. E é demarcando-se igualmente do bulício do mundo contemporâneo que o pintor opta, não só pela rejeição dos efeitos fáceis, mas acima de tudo pela autenticidade com que distingue o essencial do que é ilusório e impermanente, desvelando-nos sempre este último com a agudeza de quem sabe que os sofrimentos são provenientes da ilusão, que consiste em não reconhecer a vacuidade dos fenómenos, e é isso que nos faz atribuir-lhes uma realidade que eles não têm... (3). Por conseguinte, é esse vazio fenoménico que enche hoje as telas de um pintor, que, compassiva e despretensiosamente, tece a magia da silenciosa iluminação das formas.
.
(1) Pierre Crépon, Les fleurs de Boudha, Paris, Éditions Albin Michel, 1991, p 305.
(2) Cf. Gazeta do Interior, Castelo Branco, 14 de Janeiro de 1994.
(3) Kalou Rinpoché, La voie du Boudha, Paris, Éditions du Seuil, 1993, p 77.
.
.
Victor Oliveira Mateus (Lisboa, 11/8/2007).
.