Dormi mal, uma vez mais; em Péreiaslav parecia não poder ser de outra maneira. Os homens grunhiam, roncavam; assim que eu me amodorrava o ranger dos dentes do jovem Waffen-SS vinha cortar-me o sono e arrancava-me dele bruscamente. Nesta sonolência pastosa, o rosto de Ott e o crânio do soldado russo confundiam-se: Ott, caído no meio da poça de água, abria muito a boca e deitava-me a língua, uma língua espessa e cor-de-rosa e fresca, como se me convidasse a beijá-lo. Despertei angustiado, fatigado. Ao pequeno-almoço, tive um novo acesso de tosse, depois violentos vómitos; refugiei-me num corredor vazio, mas nada deitei fora. Quando voltei para a messe Hafner estava à minha espera com um telex:" Kharkov acaba de cair, Herr Hauptsturmfuhrer. O Standartenfuhrer quer tê-lo em Poltava."(...)
Quando acordei não ultrapassáramos ainda nem Lubny. O comboio parava muitas vezes, devido aos alertas, ou para deixar passar composições prioritárias. Ao pé da casa de banho, travei conhecimento com um Major da Luftwaffe, que voltava de um gozo de licença para se reunir ao seu esquadrão em Poltava. Havia cinco dias que deixara a Alemanha. Falou-me do moral dos civis do Reich, que permaneciam confiantes embora a vitória se fizesse esperar, e ofereceu-nos muito amavelmente um pouco de pão (...). A cada paragem contemplava demoradamente a tristeza das gares russas. Os equipamentos acabados de instalar pareciam já vetustos; as silvas e as ervas bravas invadiam as vias; aqui e ali, apesar da época do ano, avistava-se a cor de uma flor tenaz, perdida entre o saibro embebido de óleo negro.(...) Nas gares de triagem, viam-se à espera filas intermináveis de vagões sujos, manchados de óleo, enlameados, carregados de trigo, de carvão, de ferro, de petróleo, de gado, de todas as riquezas da Ucrânia ocupada apreendidas para serem enviadas para a Alemanha.(...) O nacional-socialismo quisera fazer com que cada alemão, no futuro, pudesse ter a sua modesta parte das coisas boas da vida; ora, nos limites do Reich, isso revelara-se impossível; essas coisas, agora, obtinhamo-las tirando-as aos outros. Era justo? Enquanto tivessemos a força e o poder, sim, porque no que se refere à justiça, não há instância absoluta, e cada povo define a sua verdade e a sua justiça. Mas se um dia a nossa força enfraquecesse, se o nosso poder fraquejasse, então teríamos de sofrer a justiça dos outros, por mais terrível que fosse. E também isso seria jisto.(...)
São cerca de cento e vinte quilómetros de Poltava a Kharkov: a viagem necessitou de um dia inteiro. Entrávamos na cidade atravessando bairros exteriores devastados com as paredes calcinadas, deslocadas, derrubadas, por entre as quais, varridas à pressa, se acumulavam pequenos amontoados de carcaças torcidas e queimadas do material de guerra desperdiçado pela inútil defesa da cidade. O Vorkommando instalara-se no hotel Internacional, no flanco de uma imensa praça central (...). Requisitei uma pequena suite mais ou menos habitável, Deixei Hanika entender-se com as janelas e o aquecimento (...).
No quarto, Hanika conseguira tapar as janelas com papelão e lonas, e descobrira algumas velas para garantir a iluminação; mas as divisões da suite continuavam glaciais. Durante um longo momento, sentado no divã enquanto ele aquecia o chá, deixei-me ocupar por uma fantasia: a pretexto do frio, convidava-o a dormir comigo (...). Seduzir um subordinado, ainda que aquiescente, estava fora de questão; mas havia muito tempo que não pensara em coisas assim e não procurei resistir à doçura daquelas imagens. Olhava-lhe a nuca e perguntava-me se ele teria já alguma vez conhecido uma rapariga (...) eu considerava essas nucas (...) compreendendo subitamente com uma nitidez aterradora que os homens nada controlam, nada dominam, que são todos eles crianças e até mesmo brinquedos, aí postos para prazer das mulheres, um prazer insaciável e mais soberano ainda pelo facto de os homens acreditarem controlar as coisas, acreditarem dominar as mulheres, quando a realidade é que as mulheres os absorvem, arruínam a dominação e dissolvem o controle deles, para deles tomarem afinal de contas muito mais do que eles querem dar. Os homens acreditam com toda a honestidade que as mulheres são vulneráveis, e que é preciso aproveitarem-se dessa vulnerabilidade ou protegerem-na, ao passo que as mulheres se riem, com tolerância e amor ou então com desprezo, da vulnerabilidade infantil e infinita dos homens, da sua fragilidade, dessa friabilidade tão próxima da perda permanente de controle, essa derrocada perpetuamente ameaçadora, essa vacuidade encarnada numa carne tão forte. É bem por isso, sem a mais pequena dúvida, que as mulheres tão raramente matam. Sofrem muito mais, mas terão sempre a última palavra. Eu bebia o meu chá. Hanika fizera-me a cama com todos os cobertores que conseguira encontrar; peguei em dois deles e deixei-lhos no divã da divisão de entrada, onde ele iria dormir. Fechei a porta e masturbei-me rapidamente, depois adormeci logo a seguir, com as mãos e o ventre manchados de esperma. (...)
Como em Kiev, tratei de montar a minha rede de informadores; o que se tornava ainda mais necessário dada a existência de uma população variegada, cheia de imigrados de toda a URSS, entre os quais se escondiam decerto numerosos espiões e sabotadores...
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Jonathan Littell in "As Benevolentes", Publicações D. Quixote, Lisboa, 2007,
pp 152 - 159 ( Tradução de Miguel Serras Pereira).
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