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Não se lê a poesia de Victor Oliveira Mateus desavisadamente, ou, melhor dizendo, não se frui nela seu melhor quando sem algumas chaves.
A primeira é que Victor, na contramão do que faz a maioria dos poetas, não nos apresenta jamais uma coletânea de poemas escritos num dado período de tempo. Não se trata de uma antologia, reunida ao gosto e ao acaso. Victor é autor de livros. Foi assim em suas obras anteriores e é assim, talvez mais do que nunca, em Regresso. Nele, como nos outros livros, cada texto é pensado dentro de um todo orgânico que a tudo estrutura e anima.
A segunda é que estamos diante um autor que faz quase poesia em prosa, ou prosa poética, se preferirmos. Sua cadência rítmica, larga, bárbara é muitas vezes narração, tantas outras especulação - que da forma do verso apenas se apropriam. Daí os cortes imprevistos no final das linhas, daí ainda a sintaxe vigorosa, poucas vezes nominal, como nominal seria de se esperar do que usualmente chamamos poesia, uma sintaxe repleta de advérbios, como a marcar o momento e a circunstância, repleta ainda de parêntesis e de travessões explicativos. Essa descrição me lembra a descrição que Ricardo Reis faz da poesia de Álvaro de Campos:
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O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior, determina-os ele pelos fins dos versos.
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(Pessoa, Fernando in Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986)
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(Porém, essa observação está inserida dentro de uma apreciação, ao jeito de Reis, elogiosa. E ninguém duvida que a poesia de Álvaro de Campos é, de fato, poesia. Assim como ninguém duvide que a poesia de Victor Mateus, seja ela usuária da prosa ou dela inquilina, atinge o que Poe chama de princípio poético, que é a súbita elevação do espírito e a comoção que desta decorre.)
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A terceira, e talvez importante: a poesia de Victor implica uma experiência que eu chamaria, mais que meramente de prosa em versos, de romance em verso - romance não linear, à mercê do fluxo de consciência. Nela a voz poética funcina como narrador-protagonista, e não, de fato, como um eu lírico.
E esse narrador vai, através de idas e vindas da memória, relatando, construindo um cenário, cosendo acontecimentos e estruturando um outro, um tu, ora próximo, ora remotíssimo, a quem volta e meia se dirige. Em Regresso, o cenário é a cidade de Turim. Por entre seus parques e alamedas, seus cafés cosmopolitas, deambula (como ele mesmo diz no título de um dos poemas) o protagonista, insistindo que a ela volta como que para resgatar o perdido - perdido esse que implica uma perda pessoal, alguém que a seu lado estava e já não está. Suas reflexões abarcam uma considerável gama de temas, que têm como centro a condição humana, sua luta contra a dissipação e o esquecimento.
Porém, lateralmente, se vai erguendo um outro edifício narrativo-conceitual, o da formação. Porque esse tu perdido, o outro, e sua perda foi etapa de aprendizado para que, ao fim e ao cabo, o protagonista enxergasse sua própria pequenez e a pequenez, o isolamento, a soberba, o desdém do indivíduo em face da voragem do tempo e das caras numa metrópole europeia, como vemos na cena em que o protagonista conversa com o garçom em um café enquanto rabisca um poema. Há, no passado, as etapas inelutáveis até que se chegue a uma suposta paz interior, e que tem muito mais de suposta do que de paz realmente.
Estamos, portanto, diante de um romance de formação em versos, à feição de tantos romances de formação em prosa - experimento sobremaneira interessante e inquietante, porque prova que a poesia serve para muito mais do que o mero exercício do lirismo (não que lirismo falte aqui, principalmente nas pinceladas impressionistas com que ergue sua fragmentária e atarefada Turim). Prova de que a poesia narra tão bem quanto a prosa, embora com características inerentes àquela. E que, ainda, narrando, e o fazendo em forma de romance, obtém um inequívoco efeito de verosimilhança.
É livro, pela própria pequena extensão, que se lê de uma assentada, e na ordem dada dos poemas. E Victor sabe que tem de ser assim. Sabe que o estado que deseja de seu leitor não suporta duas ou três horas ininterruptas, e, por isso, adensa-o, fá-lo breve. Sabe que seu romance, porque romance, requer fluidez e sequência, e, porque poesia, exige uma atenção concentrada, atenta à polissemia das imagens e metáforas.
É livro, enfim, que se lê com o prazer da novidade formal e em que se encontra o elemento de surpresa que sempre norteou, e ainda norteia, a boa poesia.
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Cláudio Neves
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