26/01/11

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"Memória"
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(Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser
atingidos
os pássaros
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Daniel Faria, Explicação das árvores e de outros animais)
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E, no entanto, havia dias em que o artifício era
coisa longínqua e a insídia um linguajar de imagens
a cabriolar ao longe, tão ao longe que nem imaginar
podia. Era um tempo de desejo e súplicas, de imposições
traçadas como desnorte de mendigos. Pedidos
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de socorro também, mas muito a medo ( o quê,
vais deixar-me assim?) entre vozes que ignorávamos
porque inúteis e sem interesse. Então caminhávamos
como se tudo nos fosse permitido, e, por direito
e merecimento, elevávamo-nos do chão nesse ponto
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- nesse minúsculo ponto - onde o corpo era uma forma
de sermos deuses, irupção contínua de mistérios,
dia após dia, ano após ano, sem que lhes soubéssemos
futuro nem consistência. Toda a virtude é um excesso,
disse-te um dia, enquanto alisava a mortalha e o carro
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parava súbito nos olhos esbugalhados do indiano,
que, de um jacto e sem esforço, vendia sua imundície
a fingir rosas. A rotunda, perplexa, buzinava enraivecida.
E as folhas do tabaco a resvalarem-me pelas calças
(a mortalha? Onde está a minha mortalha?!), enquanto
o negro do pára-brisas todo rosas podres e risos (são rosas,
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meu senhor, são rosas!). Risos de quem já nada sabe.
Nem a rotunda tão pouco: com a cesta do indiano às voltas,
lá no alto. No alto também nós, mas de outro modo,
que o ar sempre fora nosso elemento: na felicidade
dos instantes e na forte evanescência que, mais dia menos
dia, acabaria por vir. Como veio. Como veio e me atingiu.
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Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, pp 30 - 31.
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