04/06/11

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" O Lázaro"


O Lázaro sou eu, não foi o Outro,
o das migalhas e das chagas podres.
O Lázaro sou eu, aqui sentado
à mesa do Vice-Rei
a mastigar com nojo estes faisões!...
Sou eu, vestido de holanda,
a pregar a nudez que sempre usei
nas grandes ocasiões!...

Sou eu, nado e criado para amar,
e que não sei amar!
Sou eu, que disse não e me perdi!
Que vi Deus e nunca acreditei!
Que vi a estrada impedida
e passei!...

Sou eu, que não sou feliz no Céu nem no Inferno,
porque no Céu há paz, e no Inferno há guerra,
e a minha Paz é outra, e a minha Guerra é outra...
Sou eu, tão Grande e Pequeno
que nem sirvo para grão
da parábola da mostarda!
Sou eu, que há vinte e sete anos
vivo sem Anjo da Guarda!

Sou eu, que ou tudo ou nada, ou Vida ou Morte,
e acerto sempre na Morte!
Que espeto sempre o punhal
onde não quero ferir!...
Que sou assim, às cegas e às golfadas,
como as dores abençoadas
de parir!

Sou eu, que me disse adeus
e fiquei à minha espera!...
E que naquela manhã de ano bissexto
- que podia ter sol e teve chuva -
recebi nestes meus braços
o esqueleto verdadeiro
da saudade amargurada
de quem não tem ausentes nem distâncias!

Sou eu, o louco sem asas
que se lança dos abismos a cantar
a Canção do Inocente...
E que do fundo desse sonho novo
atira a praga
que o traga
àquela redentora incompreensão
do seu povo!...

Sou eu, o Alfa e o Ómega
e os sentidos singulares
que o Anjo-Satanás me prometeu!...
Sou este Nobre-Vilão descalço e de gravata,
sou este jornal sem data
que traz a infausta notícia
que ninguém leu!...

Sou eu - e mostro-me todo!
Quem puder, arranque os olhos
e venha cheio de Fé
ver o Lázaro real
que não vem nos Evangelhos
mas é!...

  Miguel Torga in "Poesia Completa", Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000, pp 69 - 70.
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