"Podia saber mais de tudo"
Podia saber mais de tudo,
Deixar-me enredar nesses enganos,
Confiar na incerteza de outros dias.
Podia renegar-me, talvez nunca como agora,
Podia saber quem eras tu e os demais,
Fintar o futuro e o passado,
Que o acaso fosse concreto e determinado.
Podia não estar aqui,
Ser material de outra estrutura,
Escolher a chuva que me ensopa,
Queimar-me ao vento, ao sul,
Onde o sal soubesse tanto a despedida como eu,
Para que me esqueça delas, enfim.
É melhor assim...
O peito aberto, sem condições e tratados,
Morder o presente, mutilado,
Querer o mais difícil dos prazeres,
Esquecer o amargo das canções,
Enfim.
Daniel Costa-Lourenço in "Heróis (chamamento)", Chiado Editora, s/c., 2010, p 74.
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( Nota - este poema tem como epígrafe quatro versos de David Mourão-Ferreira, aliás, grande parte dos poemas desta obra têm epígrafes, mas todas colocadas no final da página. Preceito metodológico interessante! Dos não sei quantos livros que li nos últimos anos, este é o segundo em que constatei semelhante "instrução de leitura".)
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