30/09/11


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 " Le faux et le vrai vert "

 
Tu ne m'attends plus avec le coeur vil
de l'horloge. Qu'importe si tu ouvres
ou fixes la désolation: il reste les heures épineuses,
dénudées, avec les feuilles qui soudain
cognent contre les vitres de ta
fenêtre, haute sur deux allées de nuages.
Il me reste la lenteur d'un sourire,
le ciel sombre d'une robe, un velours
couleur rouille enroulé sur tes cheveux
et déployé sur tes épaules et ton visage
noyé dans une eau à peine mouvante.

Coups de feuilles d'un jaune rugueux,
oiseaux de suie. D'autres feuilles
craquèlent les branches et déjà s'élancent,
enchevêtrées: le faux et le vrai vert
de l'avril, ce rictus moqueur
à la sûre fleuraison. Mais tu ne fleuris plus
tu n'ajoutes plus les jours ni les songes qui s'élèvent
de notre au-delà, tu n'as plus tes yeux
d'enfant, tu n'as plus tes mains tendres
pour chercher mon visage qui me fuit?
Reste la pudeur d'écrire des vers
de journal ou de pousser un cri dans le vide
ou dans ce coeur incroyable encore
en butte avec son temps exhaussé.

 Salvatore Quasimodo in " Ouvrier de songes ", Libraire Éditeur La Nerthe, s/c., 2008,
pp 56 - 57 ( Traduit de l'italien par Thierry Gillyboeuf ).
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29/09/11

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     " Neige "


Le soir tombe: vous nous quittez encore
chères images de la terre, arbres,
animaux, pauvres gens engoncés
dans les manteaux des soldats, mères
au ventre tari par les larmes.
Et la neige nous éclaire dans les prés
comme la lune. Oh ces morts. Frappez
au front, frappez jusqu'au coeur.
Qu' au moins quelque'un hurle dans le silence,
dans ce cercle blanc des ensevelis.

  Salvatore Quasimodo in " Ouvrier de songes ", Libraire Éditeur La Nerthe, s/c., 2008,
p 18 ( Traduit de l'italien par Thierry Gillyboeuf ).
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28/09/11


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 " Poema 5 do ciclo A dor é um abraço que afoga "


A roupa estendida a desfeitear raparigas
as mãos delas prendidas nas outras
os olhos em tanques de água,

os dedos frios alongados no pátio,

saem para a praça vestidas no céu
que vela os mortos, os cabelos
entrelaçados nos beirais da chuva

a roupa seca balançada nos olhos.

  Alexandre Nave in " Columbários & Sangradouros " Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão,
2003, p 42.
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" Poema 6 do Ciclo Mostram cicatrizes como amores "


Põem a forca ao pescoço como fímbrias

bocas de arame farpado, os nós em fúria
caiados de sangue, frestas, abandonados

são cheios de sal ao sol

são honrados, descobertos
amarrados do artelho ao cós

o surto já lhes vem convulso,
marcados onde a luz os faz.

 Alexandre Nave in "  Columbários & Sangradouros ", Quasi Edições, Vila Nova de famalicão,
2003, p 62.
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25/09/11

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(...) compreendemos então que a relação de assédio é levada a cabo em duas fases: uma é a sedução perversa, a outra a violência já manifesta.
A primeira fase, que o psicanalista P. C. Racamier chamou " o fazer estoirar os miolos ", pode desenvolver-se ao longo de vários anos. Ela edifica-se progressivamente durante os primeiros tempos através de um processo de sedução. É uma fase preparatória durante a qual a vítima é destabilizada e vai, progressivamente, perdendo a confiança em si própria.
Trata-se de a seduzir primeiro, para depois a influenciar (...) O sedutor vai camuflando a realidade, opera em segredo, através da surpresa.. Jamais ataca frontalmente, mas de modo indirecto visando captar o desejo do outro, de um outro que o admira, que lhe devolve uma boa imagem de si. A sedução perversa é levada a cabo considerando os instintos protectores do outro, sendo, portanto, uma sedução narcísica (...). Por essa sedução de sentido único, o perverso narcísico procura fascinar sem se deixar prender. Para J. Baudrillard, esta sedução conjura a realidade e manipula as aparências, ela não é uma energia real, é antes da ordem dos signos e dos rituais com o uso maléfico destes. (...) Não estamos no registo de uma alienação - como seria o caso da idealização amorosa  onde, para manter viva a paixão, recusamo-nos a ver os defeitos ou fraquezas do outro -, estamos antes no registo de uma incorporação cujo objectivo é destruir. A presença do outro é vista como uma ameça, jamais como uma complementaridade (...). Como em toda a manipulação, esta primeira etapa consiste em fazer crer ao interlocutor que ele é livre (...). Numa estratégia perversa, nesta primeira fase, não interessa destruir o outro, mas submete-lo a pouco e pouco e mantê-lo à disposição. Urge ter o poder, mas saber doseá-lo. As manobras são, no início, anódinas mas vão-se tornando cada vez mais violentas caso o parceiro resista. No entanto, se este é demasiado dócil, o jogo também não é excitante. É necessário que haja uma resistência suficiente para que o perverso sinta desejo de prosseguir o relacionamento, mas nunca demasiada para que ele não se sinta ameaçado. É ele que deve conduzir o jogo! O outro não é mais do que um objecto que deve permanecer no seu lugar de objecto, um objecto utilizável e nunca um sujeito interactivo (...) Durante esta fase, o agressor mantém uma tensão sobre o outro equivalente a um estado de stress permanente.
(...) A posição defensiva para a qual é empurrada a vítima condu-la a comportamentos que enervam aqueles que a cercam. Ela torna-se, então, irritadiça, choramingas, obsessiva, perdendo, por conseguinte, a sua espontaneidade. Aqueles que a rodeiam não a entendem e começam a ajuizar negativamente acerca dela. O processo adquire aqui um modo particular de comunicação alicerçado em atitudes paradoxais, mentiras, sarcasmo, escárnio e desprezo (...).
A negação de uma reprovação ou da existência do próprio conflito em si, levada a cabo pelo agressor, paralisa a vítima que não se pode defender. A agressão é perpetrada através de uma recusa em nomear o que se passa, em discutir o assunto e tentar encontrar, em conjunto, soluções. Se se tratasse de um conflito aberto, a discussão seria possível e uma solução poderia ser encontrada. Mas ao nível do registo de uma comunicação perversa, o importante é impedir o outro de pensar, de compreender, de reagir. Subtrair-se a todo o diálogo é um modo hábil da agravar o conflito, imputando-o ao outro. (...) A recusa do diálogo é um modo de dizer, sem o exprimir directamente através de palavras, que o outro não vos interessa ou até que ele não existe. Com um interlocutor qualquer quando não entendemos algo colocamos questões, mas com os perversos o discurso é tortuoso (...) e até a correspondência escrita, deixada sem resposta, é muitas vezes utilizada pelo agressor contra o seu alvo.
(...) Um outro procedimento verbal usual nos perversos é o de utilizar uma linguagem técnica, abstracta, dogmática (...) este discurso frio, puramente teórico, tem por efeito impedir aquele que escuta de pensar e, portanto, de reagir. O perverso, ao falar num tom tão douto, dá a impressão de saber, mesmo que diga a coisa mais insignificante. Ele impressiona o seu auditório com uma erudição superficial, utilizando palavras demasiado técnicas sem se preocupar com o seu sentido (...), o que importa no discurso do perverso é a forma não o fundo; parecer sábio mas para confundir (...).
As vítimas dizem, muitas vezes,  que os argumentos do seu agressor são de tal modo incoerentes que elas deveriam antes rir, mas tanta má fé enche-os é de cólera.
Um outro procedimento do perverso consiste em dar nome às intenções do outro ou em adivinhar os seus pensamentos ocultos, como se ninguém soubesse melhor do que ele o que o outro pensa.
(...) Verdade ou mentira, isso pouco importa para os perversos: o que é verdadeiro é aquilo que eles estabelecem como tal em dado momento. Estas falsificações da verdade aproximam-se, por vezes, de uma construção delirante.
(...) Em relação ao mundo exterior aquilo que predomina é o desprezo, a zombaria. O desprezo para com o parceiro odiado, para com aquilo que ele pensa e faz, mas também para com aqueles que o rodeiam. O desprezo é a arma do fraco; é uma carapaça contra os sentimentos indesejáveis. Por isso ele se esconde por detrás de uma máscara de ironia e escárnio.
Este desprezo e esta zombaria atacam particularmente as mulheres. No caso dos perversos sexuais, existe uma negação do sexo da mulher. Os perversos narcísicos, esses, negam a mulher, na sua totalidade, enquanto indivíduo. Eles sentem prazer em todo o tipo de zombaria que menospreze a mulher. Isso pode mesmo encorajar a complacência daqueles que assistem (...).
Para manter a cabeça fora de água, o perverso sente necessidade de derrotar o outro. Para tal ultiliza pequenos toques desestabilizadores, de preferência em público (...) conquistando, por vezes, aliados na assembleia. O que importa é embaraçar o outro. A hostilidade é percebida, mas fica-se na dúvida se não será uma brincadeira: o perverso parece apenas contrariar, mas na realidade ele ataca é os pontos fracos (...). Nestas agressões verbais, nesta troça, há também uma parte de jogo: é o prazer da polémica, o prazer de empurrar o outro a opor-se. O perverso narcisico, já o dissemos, ama a controvérsia. É capaz de defender um ponto de vista um dia e de defender o contrário no dia seguinte, apenas para fazer ressaltar a discussão ou, deliberadamente, para chocar. Se o parceiro não reagir o suficiente, ele encarregar-se-á de aumentar um pouco o tom da provocação (...).
O discurso do perverso narcisico encontra auditores que ele seduz e que se acabam tornando insensíveis à humilhação da vítima. Não é raro que o agressor solicite a esses outros para participar no seu trabalho de demolição.
(...) Onde o perverso narcisico se excede a si próprio é na arte de atirar as pessoas umas contra as outras, de provocar rivalidades, ciúmes. Isso pode ser feito através de insinuações, introduzindo dúvidas (...) revelando propósitos de uns acerca dos outros (...) ou através de mentiras, fomentando assim rivalidades.
O gozo supremo de um perverso é o de conseguir organizar a destruição de um indivíduo por um outro e de assistir a esse combate do qual os outros dois sairão enfraquecidos, o que reforçará, obviamente, o seu poder pessoal (...) Mas também pôr a circular rumores que, de um modo impalpável, acabarão machucando a vítima sem que esta possa descortinar a origem de tudo.
(...) Estamos agora ante uma lógica de abuso de poder através da qual o mais forte submete o mais fraco. A tomada do poder faz-se através da palavra. Dar a impressão de saber mais, de ser possuidor de uma verdade, d' "A"  verdade. O discurso do perverso é um discurso totalizante que enuncia proposições que até parecem ser universalmente verdadeiras. O perverso "sabe", ele tem razão, e tenta puxar o outro para o seu terreno levando-o a aceitar o seu discurso. Por exemplo, em vez de dizer: "Eu não gosto de Untel!", ele diz: "Untel é um parvalhão. Toda a gente sabe, e tu não podes pensar o contrário!". Seguidamente passa a uma generalização que tem por finalidade fazer deste discurso uma premissa universal, então o interlocutor diz para consigo: "Ele deve ter razão, até tem ar de saber daquilo que fala!" (...) Este discurso autosuficiente onde tudo é lançado precipitadamente não está longe do delírio interpretativo do paranóico. Um paranóico tem de encontrar um lado negativo em cada um, mesmo que esses motivos para a difamação sejam aleatórios, associados por vezes a uma qualquer possibilidade que o outro lhe oferece, mas o mais das vezes provocados por circunstâncias exteriores (...).
Resistir à dominação é expôr-se ao ódio. Nesta fase, o outro, que apenas existia como objecto útil, transforma-se num objecto perigoso do qual é preciso desembaraçar-se não importa por que meio. E eis que a estratégia perversa surge à luz do grande dia!
A fase do ódio aparece no grande dia porque a vítima reagiu, ousou recolocar-se enquanto sujeito e de recuperar um pouco de liberdade. Apesar de um contexto ambíguo ela resolve meter um limite. Um clique força-a a dizer: "Chega!" (...) No momento em que a vítima dá a impressão de lhe escapar, o agressor experimenta um sentimento de pânico e de fúria; ele rebenta.
Assim que a vítima decide expressar tudo o que sente, é preciso fazê-la calar. É uma fase de ódio em estado puro, extremamente violenta, feita de golpes baixos e de injúrias, de expressões que rebaixam, humilham e põem a ridículo tudo aquilo que é próprio do outro. E esta armadura de sarcasmo protege o perverso daquilo que ele mais teme, a comunicação.
(...) O ódio existia já durante a fase da sedução, mas estava mascarado pelo perverso, de modo a manter a relação. Tudo o que já existia de modo subterrâneo aparece agora à luz do dia e o trabalho de demolição torna-se sistemático.
Não se trata aqui de amor que se transformou em ódio como se tende a fazer crer, mas de inveja que virou ódio. Não é também essa alternância amor-ódio que Lacan chamava "odiamoração" pois, da parte do perverso jamais houve amor no sentido literal do termo. Talvez se possa, seguindo Maurice Hurni e Giovanna Stoll, falar de ódio de amor para descrever a relação perversa. Pois é, primeiro, sob o nome de amor sob uma máscara de desejo, mas não pela própria pessoa, mas por aquilo que ela tem a mais e que o perverso gostaria de se apropriar, seguidamente é um ódio escondido, ligado à frustração de não obter do outro tanto quanto desejaria. Quando o ódio então se exprime francamente, é ligado a um desejo de destruição, de aniquilação de outro. Mesmo com o tempo, o perverso jamais renunciará a este ódio (...) E, por um fenómeno de projecção, o ódio do agressor parece estar à altura daquele que ele imagina que a vítima sente por si. Ele vê-a como um monstro destruidor, violento, nefasto. (...) Este ódio, projectado sobre o outro, é para o perverso narcisico um modo de se proteger de perturbações muito mais graves, de registo psicótico.

  Marie-France Hirigoyen in " Le harcèlement moral, la violence perverse ao quotidien ",
Éditions La Découverte et Syros, Paris, 1998, pp 111 - 141.
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Nota 1- Tradução minha.
Nota 2- Estas traduções, onde o rigor é sempre respeitado, têm, contudo, todos os defeitos das traduções em simultâneo, que não visam ser publicadas, mas apenas constar de um mero blogue-bloco de notas...
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23/09/11

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Num funcionamento perverso apenas se encontra a busca do poder, e há, sobretudo, um enorme gozo em utilizar o outro como objecto, como uma marioneta. O agressor reduz esse outro a uma posição de impotência para em seguida o destruir com toda a impunidade. Para alcançar o que deseja ele não hesitará em recorrer a todos os meios, mesmo - e acima de tudo - se isso for feito em detrimento dos outros, rebaixá-los para adquirir um boa auto-estima parece-lhe legítimo. Não há nele o mínimo respeito em relação ao outro. O que choca é a animosidade sem limites por motivos fúteis, e a total ausência de compaixão para com pessoas forçadas a suportar situações insuportáveis. Aquele que inflinge esta violência ao outro considera que ele a merece e que, portanto, não tem o direito de se lamentar. A vítima não é mais do que um objecto que incomoda e cuja identidade passa a ser negada; não lhe é reconhecido nenhum direito a um sentimento ou a uma emoção.
Frente a esta agressão que não entende, a vítima sente-se só, pois, como em todas as situações perversas, existe uma cobardia e uma complacência daqueles que a rodeiam que temem tornar-se no próximo alvo do agressor ou, por vezes até, porque fruem de modo sádico todo este espectáculo de destruição.
Num relacionamento normal, é sempre possível, ou solicitado pelo próprio conflito, colocar um limite à omnipotência do agressor, para se conseguir um equilíbrio de forças. Mas um perverso manipulador não tolera a mínima oposição ao seu poder e acabará tranformando a relação conflitual no mais absoluto ódio, ao ponto até de pretender a completa destruição daquele que funcionou aqui como seu parceiro (...). Apresentar a respectiva queixa é o único modo de se pôr um ponto final no psicoterror. Mas para tal é preciso coragem, ou estar-se esgotado ao extremo, já que isso implica uma ruptura definitiva com...

 Marie-France Hirigoyen in " Le harcèlement moral, la violence perverse au quotidien ",
Éditions La Découverte et Syros, Paris, 1998, pp 94 - 97. (1)
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(1) Tradução minha.
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22/09/11


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 " Crepúsculo I "

 
Quando às vezes te deixo
desamparado e nu
como se magoado depusesses
teu verdento contorno
na paz de um mausoléu
e me fitas ao longe
tocando-me ao de leve
na anca recolhida,
o algodão da saia a subjuga,
com a ponta dos olhos
a baça íris uiva
da cor do figo murcho
de quem só pensa em seus próprios retábulos
ansiosas epígrafes
de infância acometidas por vária derisão.
Velado de negrura
zelas por teu recato,
no deserto lampejam as pistolas
e mais não te derimo
não forço a tua mão
não ouso recusar a sede que me ofereces
e se te fosse escrava
oferta, aberta, rouca
não duvido que fosse
tua mão amputar
a língua que navega à deriva
por entre o silabar coralíneo da troça
e revulsa e agita amotinando a boca.

 Fátima Maldonado in " os presságios ", Editorial Presença, Lisboa, 1983, pp 27 - 28.
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 " Nocturno "


Quando ao adormecer
partimos à procura
da face dos antigos
amores que sufocados
renascem provisórios,
como se vai à pesca
levando numa caixa a isca torturada
ou na boca a faca se transporta
antes de mergulhar à procura das ostras,
entre as pálpebras sustemos,
sem sombra de recuo
a fé de destrinçar por entre moribundos
os limos dos desejos, as folgas da tensão,
as faces dos amados.
É sempre em quartos baixos
de vidros sobre as portas
ao fundo dos corredores
que se inclina a face por entre os nossos braços
e quando os nomes saltam da boca em alvoroço,
os ternos nomes libertos dos esquifes,
os lázaros no fim sempre ressuscitados
a cabeça ao fazer o gesto do encontro
acorda o corpo vivo que se sente enganado
e vai para a cozinha remoendo ameaças
deitar da cafeteira o jorro reluzente.

  Fátima Maldonado in " os presságios ", Editorial Presença, Lisboa, 1983, pp 60 - 61.
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21/09/11

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 " Orgulho "

Pouco ou nada me importa que vós outros
vos choqueis com a forma como eu amo.
Amo a quem amo como entendo e quero amar.
Amo a quem amo por que os nervos tensos
e toda a carne e sangue do meu corpo
impõem e me gritam que assim ame.
E o que se passa aqui, dentro de mim,
somente a mim pertence porque é meu.

Ficai sabendo, pois, que força alguma
pode mudar o que nasceu quando eu nasci
e que, nem sei porquê, aconteceu.

Sabei então, para sempre e de uma vez,
que aí fora, na rua, mandais vós
- mas aqui, dentro de mim, só mando eu.

  Guilherme de Melo in " A raiz da pele ", Humanity's Friends Book, Montijo,
2011, p 24 ( Prefácio de Alice Vieira ).
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 " O pássaro amarelo "

O grande e estranho pássaro amarelo
Que eu sinto a noite inteira
ruflando as asas na janela,
tem não sei que mágico feitiço.

Quieto sobre a cama, sem dormir,
sinto-o chegar das trevas e dos medos
que moram no sem-fim do esquecimento.
Vejo-lhe os olhos fixos, parados.
Escuto-lhe as unhas longas e aduncas
raspando os vidros, pávido de horror.

Quieto sobre a cama, sem dormir,
noite após noite eu jogo o longo jogo
que é defrontar o grande e estranho pássaro amarelo
- que só não chega até mim porque há o vidro
contra o qual, em vão, ele vem lutar.

Quieto sobre a cama, sem dormir,
Lucidamente vivo, em cada noite,
um frio, perverso gozo prolongado,
esta certeza de, num qualquer dia,
eu próprio me ir ao vidro e o quebrar.

 Guilherme de Melo in " A raiz da pele ", Humanity's Friends Books, Montijo, 2011, p 65.
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 " Na tua morte "

De repente, o disco parado.
O copo vazio, a torneira fechada.
De repente, o som desligado.
No silêncio da casa gelada
ainda o cheiro breve da tua mão
na t-shirt caída no chão.

Viajas-me por dentro - e sobe em mim
a maré da saudade, o desespero,
o sem gosto do amargo gosto
de que é feito o não retorno.
O nunca mais. O fim.

  Guilherme de Melo in " A raiz da pele ", Humanity's Friends Books, Montijo, 2011, p 75.
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20/09/11


 " Três verdades contemporâneas "


Creio no invisível
Creio na levitação das bruxas
Creio em vampiros
Porque os há.

  Conceição Lima in " O País de Akendenguê ", Editorial Caminho, Alfragide, 2011, p 37.
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     "Inadiável empresa "


Jazem à beira do caminho, os destroços.
Fugitiva é a inocência
Talvez haja porém tempo
Para redimir a palavra.
Sentir é também saber neutro
Este sol
Nas contorcidas feições da manhã.

Aniquilarão todos os papiros?
Exilarão a última estátua?
Deceparão o sentido da mão?

Na derme da lava
Sob a inclemência da lavra
Vibra a praia
O projecto dos dias puros
Inadiável empresa.

   Conceição Lima in " O País de Akendenguê ", Editorial Caminho, Alfragide, 2011, p 68.
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  " Circum-navegação "


Os barcos regressam
carregados de cidades e distância.

Adormecem os grilos.
Uma criança escuta a concavidade de um búzio.

Talvez seja o momento de outra viagem
Na proa, decerto, a decisão da viragem.

Aqui se engendram alquimias
Lentos hinos bordados em lacerações
Sossegaram os mortos
Há grutas e pássaros de fogo
Rebentos de incómodos recados

O difícil ofício de lavrar a paciência.

Acontece a arte da viagem
Tanta aprendizagem de leme e remendo...

É quando o olho imita o exemplo da ilha
E todos os mares explodem na varanda.

 Conceição Lima in " O País de Akendenguê ", Editorial Caminho, Alfragide, 2011, pp 106 - 107.
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19/09/11


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Já desejei mulheres modernas como troféus.
Coleccionava corpos como selos, ajustava
o denteado, aquele ângulo a que se chama
joelho para que se não estrague no álbum,

fazia verbetes com os temas, os nomes
dos países, as cores impressas ou dos olhos,
o tom de pele sob a luz daquele candeeiro.
Sentavam-se na beira da cama, apertavam

o soutien e a luz caía desesperada - o tom
da pele nas gradações pontuadas pelos
sinais, sei-me entendido pelas noites

sucessivas de observação. Ninguém merece
desistir daquilo que mais ama - repetia para
mim e para cada uma como verdadeira razão.

  Jorge Reis-Sá in " Mulher Moderna", Ulisseia, Lisboa, 2011, p 24.
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Não sei possível vida mais desinteressante
do que esta. Levantar pela manhã sem um único
objectivo, levar o corpo à segunda repartição
de finanças, corrigir impressos a gente ainda

mais desinteressante do que eu. Assim o espero.
De nada vale esperar. Têm filhos, dois cães, um
gato, meis dúzia de cágados a rebolarem-se à vez
no esterco da água. Venho à tardinha para casa.

Poder-se-ia pensar que a tempo de me ser útil.
Mas vejo televisão só para esperar, penso
nas famílias dos cágados, no Tico e no Fofinho

com o pêlo afagado pelas crianças. Ligo a internet,
engato mais uma desesperada e rapidamente no seu
corpo estes pensamentos tão impuros são nada.

 Jorge Reis-Sá in " Mulher Moderna ", Ulisseia, Lisboa, 2011, p 27.
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18/09/11

" Estás en mí como un paisaje mío./ Me acompañan tuas olas y tus barcos. "

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 Hay hombres que parecen un paisaje "

Hay hombres que parecen un paisaje
cuando cierran la puerta
y se quedan delante de nosotros.

Recuerdo muchas veces pupilas amarillas
con rumor de hojas tristes
pisadas por el turbio zapato de la tarde.

Recuerdo las sonrisas cubiertas por la nieve
igual que la pureza,
ese valle que esconde la conjura del barro.

Y recuerdo desiertos en la piel,
el bosque vigilante con búhos en los hombros,
silencios que parecen una ciudad cansada,
escaleras y manos que sostienen
el licor tembloroso de la noche.

Hay hombres aeropuerto,
hombres de luna con tejado, hombres
que llegan de la selva y buscan rascacielos
y son como minutos en un reloj de arena.

Así que cuando vuelvo solitario a mi casa,
y me recibe el mar en mis ojos castaños,
el mar azul y libre
con espuma de agosto en el espejo,
agradezco a la vida
la ocasión que me ha dado de mirarte.

Estás en mí como un paisaje mío.
Me acompañan tus olas y tus barcos.
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Luis García Montero in " Un invierno propio ", Editorial Visor Libros, Madrid, 2011, pp 47 - 48.
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17/09/11

" Duele siempre un misterio en la complicidad./ Los recuerdos ayudan a olvidar. "

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 " Los recuerdos ayudan a olvidar "

Vuelvo a sentir la noche de su voz
y a caminar por ella.
La ventana encendida y un balcón
apagado en la casa.
Eso había en su voz, como había en el mundo
una calle sin luz,
de postigos cerrados, y una sola ventana
que ardía silenciosa.
Eso había en la calle, una luz encendida.
Eso había en la noche de su voz,
un balcón apagado.

Vuelvo a sentir la duda de su abrigo
doblar la esquina solitaria,
cuando yo la seguía. Vuelvo a oír
pasos que no hacen ruido y un deseo
de cruzar el invierno sin ser vista.
Eso había en su abrigo
cuando me descubrió y cerramos los ojos
para seguir viviendo
en donde no se sabe.
Eso había en su abrigo.
Eso había en la casa.

Ahora que vuelvo a penetrar a ciegas
en el amor antiguo, dejando que me lleve,
que me conduzca mi cuerpo con sus manos
al fondo de la piel y de la noche,
dentro de sí, no llego a comprender
si el balcón apagado y el abrigo de entonces
guardaban el secreto de esta cita futura
o si la voz de ahora esconde mi pasado.
Eso hay en la noche y en su cuerpo de hoy,
ventanas encendidas, un balcón
amadamente oscuro
y otro cuerpo de ayer.
Eso hay en la casa.

Duele siempre un misterio en la complicidad.
Los recuerdos ayudan a olvidar.
Los recuerdos envuelven
como unos brazos,
como unas piernas,
como un destino.

Hablo más de la cuenta, ya lo sé.
Nos unen mis recuerdos y sus ojos cerrados.

  Luis García Montero in " Un Invierno Propio ", Editorial Visor Libros, Madrid, 2011, pp 131 - 132.
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16/09/11

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Franz está seguro de que Jacinto vai endireitar os ombros e reerguer a cabeça. Irá, até, tornar-se num homem melhor e mais forte como a si próprio aconteceu - porque o sofrimento desfaz o egocentrismo redutor que existe em todos nós, e impulsiona a reinvenção de novos caminhos de vida. Talvez levemos demasiado tempo a perceber a mudança, a entender a nossa própria evolução, os novos desafios que a vida nos propõe. No seu caso pessoal, Franz Schonberg tinha somado alguns anos até aperceber-se do papel fulcral que a mãe desempenhara nesses dias sombrios da sua adolescência, pois tinha sido ela, com a sua lúcida e discreta inteligência, quem o acordara do torpor ( que agora lhe parecia sobretudo medo ), quem despertara o seu adormecido sentido do dever, quem lhe pedira o apoio de que precisava para continuarem ambos a cumprir a vida, por mais injusta que a vida tivesse sido, por mais enregelados e vazios que os tivesse deixado na ausência do pai. Mas era justamente em nome do pai e da sua total confiança neles dois, que teriam de continuar a viver com coragem e dignidade, como ele sempre fizera. Desafiando tradições e preconceitos, a mãe tinha reaberto a pequena loja e assumido, ela própria, as funções de alfarrabista, recusando o apoio do filho e exigindo-lhe o regresso ao liceu e ao estudo: "Cada um no seu lugar, a cumprir o seu dever, como o teu pai espera de nós dois."
Terá de partilhar com Jacinto essas memórias e lembrar-lhe que viver é a única maneira de honrar os mortos, sobretudo aqueles que mais se empenharam no nosso crescimento e na nossa formação. Só assim, vivendo e cumprindo cada dia, acabaremos por encontrar o que parecia impossível de alguma vez conseguir: a capacidade de cicatrização, a coragem de prosseguir caminho e por fim, até, as múltiplas alegrias que a vida sempre reserva a quem, apesar do sofrimento, as sabe identificar e recolher com gratidão.
Sai do consultório, no seu passo largo e tranquilo, Rua Carreira fora. Como quase todos os dias, detém-se por momentos no Bazar Alemão, em conversa com Miriam e Izaak Brusov, pergunta-lhes pelas crianças, pela saúde, pelo negócio, tornou-se uma rotina quase diária que cumpre por gosto mas, também, por uma espontânea solidariedade. Tem um grande apreço pela têmpera daquele casal que atravessou a Europa à procura de um lugar tranquilo para viver em paz, apenas para viver em paz e poder criar os seus filhos.
Incapaz de jantar ou de manter conversa de circuntância com quem quer que seja, Franz Schonberg decide não entrar no Café Kolb e vai acender o cachimbo, de que precisa com urgência, no pequeno miradouro sobranceiro à cidade e ao mar. O sol parece já muito baixo (...). Descobre-se, com algum espanto, confrontado não só com a sua própria e inesperada vulnerabilidade, mas também com a consciência de sentimentos e exigências que ainda não tinha sabido (ou ousado) reconhecer em si próprio.

Helena Marques in " O bazar alemão ", Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2010, pp 195 - 196.
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14/09/11

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Na verdade, poderia responder, a quem me perguntasse, que Combray compreendia outras coisas mais e existia em outras horas. Mas como o que eu então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste, nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. Na verdade, tudo isso estava morto para mim.
Morto para sempre? Era possível.
Há muito de acaso em tudo isso, e um segundo acaso, o da nossa morte, não nos permite frequentemente esperar por muito tempo os favores do primeiro.
Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles que perdemos se acham cativas nalgum ser inferior, num animal, num vegetal, numa coisa inanimada, efectivamente perdidas para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos sucede passar perto da árvore, entrar na posse do objecto que lhe serve de prisão. Então elas palpitam, chamam-nos, e, logo que as reconhecemos, está quebrado o encanto. Libertadas por nós venceram a morte e voltam a viver connosco.
É assim com o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objecto material ( na sensação que nos daria esse objecto material) que nós nem suspeitamos. Esse objecto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.
Muito anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar já não existia para mim, quando, por um dia de Inverno, ao voltar para casa, vendo a minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra os meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por quê, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de S. Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada de mais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. A bebida despertou-a mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intacto à minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar; criar. Está em fase de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz.
E recomeço a perguntar a mim mesmo qual poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia nenhuma prova lógica, mas a evidência da sua felicidade, da sua realidade ante a qual as outras se desvaneciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo pensamento ao instante em que tomei a primeira colherada de chá. Encontro o mesmo estado, sem nenhuma luz nova. Peço a meu espírito um esforço mais, que me traga outra vez a sensação fugitiva. E para que nada quebre o impulso com que ele vai procurar captá-la, afasto todo o obstáculo, toda a ideia estranha, abrigo os meus ouvidos e a minha atenção contra os rumores da casa vizinha. Mas sentindo que o meu espírito se fatiga sem resultado, forço-o, pelo contrário, a aceitar essa distracção que eu lhe recusava, a pensar noutra coisa, a refazer-se antes de uma tentativa suprema. Depois, pela segunda vez, faço o vácuo diante dele, torno a apresentar-lhe o sabor ainda recente daquele primeiro gole e sinto estremecer em mim qualquer coisa que se desloca, que desejaria elevar-se, qualquer coisa que teriam desancorado, a uma grande profundeza; não sei o que seja, mas aquilo sobe lentamente; sinto a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas.
Por certo, o que assim palpita no fundo de mim, deve ser a imagem, a recordação visível que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até chegar até mim. Mas debate-se demasiado longe, demasiado confusamente; mal e mal percebo o reflexo neutro em que se confunde o ininteligível turbilhão das cores agitadas; mas não posso distinguir a forma, pedir-lhe, como ao único intérprete possível, que me traduza o testemunho do seu contemporâneo, do seu inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me indique de que circunstância particular, de que época do passado é que se trata.
Chegará até à superfície da minha clara consciência essa recordação, esse instante antigo que a atracção de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, remover, levantar no mais profundo de mim mesmo? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou, tornou a descer talvez; quem sabe se jamais voltará a subir do fundo da sua noite? Dez vezes tenho de recomeçar, inclinar-me em sua busca. E, de cada vez, a covardia que nos afasta de todo o trabalho difícil, de toda a obra importante, aconselhou-me a deixar aquilo, a tomar o meu chá pensando simplesmente nos meus cuidados de hoje, meus desejos de amanhã, que se deixam ruminar sem esforço.
E de súbito a lembrança apareceu-me. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Leónia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la no seu quarto. O simples facto de ver a madalena não me havia evocado coisa alguma antes de que a provasse; talvez porque, como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, a sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, daquelas lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se desagregava; as formas (...) se haviam anulado ou então, adormecidas, tenham perdido a força de expansão que lhes permitiria alcançarem a consciência. Mas quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas - sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis -, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.
E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava (embora não soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava o meu quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos da mesma (...) e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã à noite, por qualquer tempo, a praça por onde me mandavam antes do almoço, as ruas por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia de água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se enchem de cores, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e os nenúfares do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha chávena de chá.

  Marcel Proust in " Em busca do tempo perdido, Vol. 1 - no caminho de Swann", Edição Livros
do Brasil, Lisboa, s/d., pp 46 - 50 ( Tradução de Mário Quintana ).
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13/09/11


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  " Desespero "

 
É sempre inverno aqui,
nas páginas deste caderno com três folhas de
trevo.

O galo canta, nos meus baldios.
Despertam os sonhadores e os cães.

Um homem caminha,
com um fardo de erva e canas, na direcção das
montanhas.
Uma densa nuvem cresce,
pouco a pouco,
sobre as campas lavadas pela chuva, onde ele
se deita,
voltado para baixo.

E eu, que vejo tudo isto,
não encontro as palavras certas para o desespero.

  José Agostinho Baptista in " Filho Pródigo ", Assírio & Alvim, Lisboa, Lisboa, 2008, p 92.
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12/09/11

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  " Depoimento "


Não há céu que me queira depois disto,
Nem deus capaz de ouvir-me.
Um homem firme
É firme até no céu,
E até diante
Do Criador!
É o que eu diria se, ressuscitado,
Fosse chamado
A depor!

  Miguel Torga in " Poesia Completa ", Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000, p 501.
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08/09/11

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 " Tempo "


Talvez um bálsamo ignorado se derramasse
sobre a sua cicatriz.
Como um perfume,
como o toque subtil de dois dedos exangues.
Ao voltar à direita,
a caminho do guindaste,
sabia que o esperava uma barca sem remos,
e mais para cima havia um alpendre, com
trepadeiras que subiam.

Era isto o que o tempo fazia:
recomeçar, eternamente, um trabalho de oficinas
lentas.
Enredar no peito roseiras queimadas pela
estação das trevas.

E assim ia,
deambulando pelos campos,
com um archote inútil, que o vento, apagava.

 José Agostinho Baptista in " Filho Pródigo ", Assírio & Alvim, Lisboa, 2008, 48.
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 " Cegueira "


Há muito que sabia o que o esperava quando,
surgindo do nada, olhou à volta,
cego pela claridade.
Subiu lentamente a ribeira e encontrou as grutas,
e aí bebeu,
enquanto esperava a senhora da escuridão.

E ela chegou, de repente, e disse:
abandona os remos, abandona o leme,
porque o teu destino é um barco parado na
montanha.
E ele levantou-se, como se já nada quisesse,
e ouviu a estranha ave que anuncia a morte.

Noa montanha, ardiam dois archotes.
As casas, do outro lado, pareciam de cera,
dementes e imóveis.
O mar fazia ouvir a sua canção eterna.
Há muito que sabia que o clamor das viagens
tinha chegado ao fim.

  José Agostinho Baptista in "Filho Pródigo ", Assírio & Alvim, Lisboa, 2008, p 41.
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07/09/11

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O espaço, lâmpada acinzentada e chuvosa, neste final
de estação. Ou talvez um enigma, aquém das sereias
a vicejar no rio, que logo se mistura com a sonolência
dos táxis, com o correr apavorado e sem destino
de quantos ainda o teimam - ameaçado e sem remédio.
A estação, por seu lado, é mero ponto no final

do espaço. Um mapa em tons de azul conspurcado
com seus bancos de jardim ( a despropósito),
seus jogos de partidas e chegadas, seu ronronar
de carruagens, de altifalantes, da máquina vermelha
dos refrigerantes a reflectir-se na vacilante
imobilidade dos placares. E é por aqui que (sempre)
nos cruzamos - alegoria de cruz e ramos;

de turbilhão e medo nas mais ácidas vésperas
em que cedo - meu silêncio... e espanto, neste poema
( nem estação nem canto ), tão-só lembrança,
tão-só imagem de um aprendiz secreto a vislumbrar
o longe, o verde, a intacta ferida, que atentamente
vai decifrando nesse aberto terraço onde se recusa
o banal e onde o sol é todo o espaço.

    Victor Oliveira Mateus in Revista Letras Com Vida, Nº 4. Lisboa: CLEPUL da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2º semestre 2011, p 211.
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Do sítio onde estava não te podia ver. Isto é:
não eras mais do que pedaços de formas
que depois eu completava com a janela do fundo
e o teu cabelo a encenar desordem. Vinha depois

um murmúrio cavo bater-me no sofá, algo a fingir
jogo ou vontade, ou as duas coisas à mistura -
que da alma em desalinho pouco consegue
saber, quem, como eu, tem por hábito sentar-se

à contraluz. Do sítio onde estava não te podia
ouvir. Isto é: não eras mais do que passos
lá dentro, a porta que não voltou a fechar-se,
o decidido puxar da cama. Enfim, no sítio

onde eu estava coseu-me o desejo um cós
de imagens ( arrojadas e novas ) e a tua luz
costurou-me uma bainha no coração.

  Mateus, Victor Oliveira in A Tua Luz Costurou-me uma Bainha no Coração de daniel gonçalves. Fafe:
Editora Labirinto, 2012, p 54.
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06/09/11

" E o gato volta as costas dignamente/ desistindo do enigma fluvial. "

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 " Poema XVII do capítulo Paisagens, Apesar "

Alguém se lembrou um dia
de pôr uns peixes no tanque da rega.
A finalidade não era evidente
e podia temer-se irem os peixes
acabar no campo de milho.
De facto, deram-se bem, nadando
entre os limos do fundo, visíveis
apenas a espaços, no orgulho
solitário de grandes senhores
aquáticos, partilhando, displicentes,
a sua casa com as rãs.
Um gato, no muro de pedra, procura
por momentos compreendê-los.
Alguém lança uma pedra. A água
ondula, em preguiça circular.
E o gato voltas as costas dignamente
desistindo do enigma fluvial.

  Graça Videira Lopes in " Paisagens e outros lugares a discutir ", Arte Comum,
Lisboa, 2005, p 71.
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" (...) Enquanto isso,/ é sempre bom conhecer Amsterdão. "

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 " Memórias de família "

O famoso médico Davi Negro, morador
às Portas do Rosário, disse um dia
de manhã que mais valia um judeu
vivo que dois mortos, posto o que
viajou para Amsterdão - se não foi
ele foi o primo; de qualquer forma,
os tempos iam maus, na foz
do Tejo: terramotos, milagres,
espantosos sinais de apocalipse
comprovado. Davi Negro, cidadão
de Lisboa um pouco crédulo, pisgou-se
uma manhã; e com teres e haveres,
(bastos haveres) rumou a norte, num
navio flamengo. Pelo apocalipse, por
cá, ainda esperamos. Enquanto isso,
é sempre bom conhecer Amsterdão.

  Graça Videira Lopes in " Paisagens e outros lugares a discutir ", Arte Comum,
Lisboa, 2005, p 22.
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" Um rei que não regressa é um rei morto,/ mesmo que os seus olhos nos fitem na distância, "

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 " Neblina "

A melancolia é um barco encalhado
no meio do Tejo, numa manhã de nevoeiro.
Chora o Cais das Colunas, num filme
a preto e branco, a memória dos que partiram
para o deserto sem regresso do império:
gaivotas acenando em terra, voando
em círculo sobre os mastros, onde flutuam,
imóveis, os estandartes do tempo.
Um rei que não regressa é um rei morto,
mesmo que os seus olhos nos fitem na distância,
no espanto de um tesouro por encontrar.
Há dias em que, na espuma do Tejo, o que regressa
são os navios dos que o seguiram rumo ao sul.

  Graça Videira Lopes in " Paisagens e outros lugares a discutir ", Arte Comum, Lisboa, 2005, p 12.
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05/09/11

 
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 " Amo-te assim sem corpo "

 
amo-te assim sem corpo.
sem dias que sacodem lembranças.
sem últimas coisas.
sem ouvires de língua.
sem palavras que respiram pelo
nariz de outras.
sem compromissos abdominais.
sem o coração no bolso.
sem ruídos obscenos que
indiciam nudez.
sem borboletas vulgares
sobre o poema.
sem o conhecimento de toda a gente.
sem o teu conhecimento
ou existência.
amo-te assim sem corpo
com todo o meu corpo,
lembranças,
últimas coisas,
ouvires de língua,
palavras ardentes como
febres frias,
compromissos fundidos noutros,
o coração dobrado,
as braçadas da vida
nua e lenta como a borboleta
neste poema.
amo-te assim sem vida.
sem morte.
sem corpo.

Sylvia Beirute in " Uma prática para desconcerto ", 4 Águas, s/c., 2011, p 19.
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" Allen Ginsberg industries "


é um temperamento ser longínqua.
nunca tive um projecto.
completudes no osso. tive contradições
que me começaram a entender
e fui descoberta por uma geração
sem geração, quando eu só queria
escrever poesia. é óbvio que tive
as minhas preocupações,
mas todas se resumiam a letras.
as letras são partes de palavras
e ninguém parece saber.
é o mesmo que o órgão
em relação ao corpo. não é diferente.
por exemplo a palavra amor:
o poder da letra "o" é diferente
da letra "r". muito diferente.
a palavra poderia viver sem essa
última letra, mas não sem o "o".
alguns poetas parecem escrever
e fazer amor sem "o".

 Sylvia Beirute in " Uma prática para desconcerto ", 4 Águas, s/c., 2011, p 50.
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 " O beijo de Rodin "


não quero fazer filhos
sobre desejos adicionais
e tardios, desejos sobre a tela tardia da tarde,
desejos sobre o azul infindável
de boas razões indesejáveis.
não quero desejos de desejos,
desejos que retiram desejo a desejos de
tempo raso
e de feitio de autopertença e
leves contradições sem alarme e gafanhotos.

não é em vão
que o beijo de rodin é de pedra.

  Sylvia Beirute in " Uma prática para desconcerto " , 4 Águas, s/c., 2011, p 60.
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 " Poema 26 do capítulo Caligraphias "


hoje seremos outros ao acordar:
da janela aberta, orquestrando nevoeiros,
escutaremos o sibilar insuspeito da penumbra
a inquietude do acorde menor
escreverá a letras de fogo a solidão das asas.

dormes um pouco mais:
um gotejar de vazio convence-te a ficar
mas nada explica esta demora
o corpo terno hibernando de mansinho
dando um indefeso descanso à sombra diligente

lá fora o dia acossado pelo medo à mercê das
luzes estridentes
e aqui a tua pele espreguiça quente, beijando os
lençóis descartáveis
enquanto os músculos se rendem a este crime
perfeito perpetrado
a bandeira a meia-haste no palácio do sono
protege o casulo transparente em que habitas
por agora

sem arrependimentos,
perdemos a tinta fresca do café,
as fotografias anónimas no túnel do marquês
e o paciente virar dos placares publicitários
amanhã vou entregar-me à deriva

deixarei de ser bicho-de-conta sem pressa
e procurarei abrigo nas paragens de autocarro

Ricardo Gil Soeiro in " Caligraphia do Espanto ", Edições Húmus, Ribeirão, 2010, p 40.
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04/09/11


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" Poema 42 do capítulo Caligraphias "


a conta gotas,
sou eu quem ama a suave melancolia ( sforzando ).

é possível que nos possamos encontrar uma nova
vez,
as palavras têm uma paciência infinita.

 Ricardo Gil Soeiro in " Caligraphia do Espanto ", Edições Húmus, Ribeirão, 2010, p 56.
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02/09/11

" olha, portugal/ começo a ficar deveras ressentida! "


 "Portugal"

portugal
eu tenho vinte e quatro anos e tu fazes-me sentir
como se fosse nova demais para ti, embora me lem-
bres que estou a caminhos dos trinta.
que culpa tenho eu
que as únicas mulheres da história portuguesa em
fascículos
eram uma padeira que nunca existiu e umas quantas
rainhas loucas, mães e megeras
só porque escolheste um treçolho na ponta do dedo
indicador?

não imaginas como nem sequer fico húmida quando
ouço o hino nacional
não estou virada p'ra te levantar o esplendor
( decerto as minhas egrégias avós me compreendem )

ontem fui às compras com a Maga Patalógika
- a vida está cara
a cara com o mal
é o que dá dar
a outra face -
e ela em vez de me dar uma poção, a querer conven-
cer-me que com um ben-u-ron tudo passa
até esta hemorragia de lágrimas e pétalas em salga
esta mucosidade lusa a escorrer pelo atlântico e a
acender lusos

portugal
um dia fechei-me no parlamento a ver se te
compreendia
mas a única coisa que apanhei
foi uma otite

olha, portugal
eu quero lá saber da nação! - mas levo-te sem-
pre no bolso para ver as horas a transformar-
me no Coelho Branco
olha, portugal
eu quero lá saber da nação! - mas pelo sim
pelo não
vou votando quando não faço aviões de papel

portugal, estás a ouvir-me?
eu sei que não. as mulheres falam de mais,
não é? olha só este poema que já vai em duas
páginas

portugal
eu nasci em mil novecentos e oitenta e quatro
cheguei tarde de mais para a festa dos cravos
mas ainda assim
puseram-me um prato na mesa
- estou agora a almoçar
faltam talheres, copo, guardanapo e compa-
nhia - nada de ressentimentos
ainda tenho a mão que me sobrou de escrever
uma guerra nunca contada
faltam as barrigas de freira para a sobremesa
que não devem tardar
- eles dizem que este banquete será sempre bom
demais para mim
esquecem-se que somos nós que levantamos a
mesa e lavamos a louça e tentamos aquecer
os restos
no micro-ondas

eu nasci em mil novecentos e oitenta e quatro
a venezuelana Astrid Carolina Herrera Irrazábal
é eleita Miss Mundo - nada de ressentimentos

eu nasci em mil novecentos e oitenta e quatro
mário soares estava no poder e segue-se-lhe
cavaco silva - nada de ressentimentos
à parte o facto de em dois mil e seis voltarem os
bonecos bolorentos de uma colecção antiga às
vitrinas presidenciais

olha, portugal
começo a ficar deveras ressentida!

portugal,
vou propor-te dois projectos eminentemente na-
cionais - porque está visto que um só não chega
que bebas um litro e meio d'água por dia, andes
meia hora a pé e durmas as oito horas
e que vamos todos e todas
aprender renda de bilros

portugal
gostava de vestir-me de ti
se numa noite de inverno

Rita Grácio in " Três Poetas Portugueses ", RG Editores, São Paulo, 2011,
pp 24 - 26 ( Organização de Álvaro Alves de Faria ).
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01/09/11


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 " Galo preto "

Convém ignorar o canto
de quem se julga
o senhor do sol e da lua.
Ele empina o corpo rijo
para anunciar fatos
que são puro veneno.
Melhor um despertador
para informar as horas.

Olhe para o pescoço,
a vibração da língua,
as faíscas das esporas.
Todas as veias pulsam
com desejo de morte.
Quer as cristas dilaceradas,
o inimigo com má sorte
e a rinha tinta de sangue.

Crédulos o imolam
para que seja o arauto
da entrada da alma
em um mundo de luz.
Porém, antes da degola,
o último canto conduz
mais um condenado
às portas do purgatório.

  Donizete Galvão in " O homem inacabado ", Portal Editora, São Paulo, 2010, p 44.
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(Nota - a palavra "fatos", do 5º verso da primeira estrofe, engloba-se na categoria das palavras de dupla grafia...).
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