25/09/11

.

(...) compreendemos então que a relação de assédio é levada a cabo em duas fases: uma é a sedução perversa, a outra a violência já manifesta.
A primeira fase, que o psicanalista P. C. Racamier chamou " o fazer estoirar os miolos ", pode desenvolver-se ao longo de vários anos. Ela edifica-se progressivamente durante os primeiros tempos através de um processo de sedução. É uma fase preparatória durante a qual a vítima é destabilizada e vai, progressivamente, perdendo a confiança em si própria.
Trata-se de a seduzir primeiro, para depois a influenciar (...) O sedutor vai camuflando a realidade, opera em segredo, através da surpresa.. Jamais ataca frontalmente, mas de modo indirecto visando captar o desejo do outro, de um outro que o admira, que lhe devolve uma boa imagem de si. A sedução perversa é levada a cabo considerando os instintos protectores do outro, sendo, portanto, uma sedução narcísica (...). Por essa sedução de sentido único, o perverso narcísico procura fascinar sem se deixar prender. Para J. Baudrillard, esta sedução conjura a realidade e manipula as aparências, ela não é uma energia real, é antes da ordem dos signos e dos rituais com o uso maléfico destes. (...) Não estamos no registo de uma alienação - como seria o caso da idealização amorosa  onde, para manter viva a paixão, recusamo-nos a ver os defeitos ou fraquezas do outro -, estamos antes no registo de uma incorporação cujo objectivo é destruir. A presença do outro é vista como uma ameça, jamais como uma complementaridade (...). Como em toda a manipulação, esta primeira etapa consiste em fazer crer ao interlocutor que ele é livre (...). Numa estratégia perversa, nesta primeira fase, não interessa destruir o outro, mas submete-lo a pouco e pouco e mantê-lo à disposição. Urge ter o poder, mas saber doseá-lo. As manobras são, no início, anódinas mas vão-se tornando cada vez mais violentas caso o parceiro resista. No entanto, se este é demasiado dócil, o jogo também não é excitante. É necessário que haja uma resistência suficiente para que o perverso sinta desejo de prosseguir o relacionamento, mas nunca demasiada para que ele não se sinta ameaçado. É ele que deve conduzir o jogo! O outro não é mais do que um objecto que deve permanecer no seu lugar de objecto, um objecto utilizável e nunca um sujeito interactivo (...) Durante esta fase, o agressor mantém uma tensão sobre o outro equivalente a um estado de stress permanente.
(...) A posição defensiva para a qual é empurrada a vítima condu-la a comportamentos que enervam aqueles que a cercam. Ela torna-se, então, irritadiça, choramingas, obsessiva, perdendo, por conseguinte, a sua espontaneidade. Aqueles que a rodeiam não a entendem e começam a ajuizar negativamente acerca dela. O processo adquire aqui um modo particular de comunicação alicerçado em atitudes paradoxais, mentiras, sarcasmo, escárnio e desprezo (...).
A negação de uma reprovação ou da existência do próprio conflito em si, levada a cabo pelo agressor, paralisa a vítima que não se pode defender. A agressão é perpetrada através de uma recusa em nomear o que se passa, em discutir o assunto e tentar encontrar, em conjunto, soluções. Se se tratasse de um conflito aberto, a discussão seria possível e uma solução poderia ser encontrada. Mas ao nível do registo de uma comunicação perversa, o importante é impedir o outro de pensar, de compreender, de reagir. Subtrair-se a todo o diálogo é um modo hábil da agravar o conflito, imputando-o ao outro. (...) A recusa do diálogo é um modo de dizer, sem o exprimir directamente através de palavras, que o outro não vos interessa ou até que ele não existe. Com um interlocutor qualquer quando não entendemos algo colocamos questões, mas com os perversos o discurso é tortuoso (...) e até a correspondência escrita, deixada sem resposta, é muitas vezes utilizada pelo agressor contra o seu alvo.
(...) Um outro procedimento verbal usual nos perversos é o de utilizar uma linguagem técnica, abstracta, dogmática (...) este discurso frio, puramente teórico, tem por efeito impedir aquele que escuta de pensar e, portanto, de reagir. O perverso, ao falar num tom tão douto, dá a impressão de saber, mesmo que diga a coisa mais insignificante. Ele impressiona o seu auditório com uma erudição superficial, utilizando palavras demasiado técnicas sem se preocupar com o seu sentido (...), o que importa no discurso do perverso é a forma não o fundo; parecer sábio mas para confundir (...).
As vítimas dizem, muitas vezes,  que os argumentos do seu agressor são de tal modo incoerentes que elas deveriam antes rir, mas tanta má fé enche-os é de cólera.
Um outro procedimento do perverso consiste em dar nome às intenções do outro ou em adivinhar os seus pensamentos ocultos, como se ninguém soubesse melhor do que ele o que o outro pensa.
(...) Verdade ou mentira, isso pouco importa para os perversos: o que é verdadeiro é aquilo que eles estabelecem como tal em dado momento. Estas falsificações da verdade aproximam-se, por vezes, de uma construção delirante.
(...) Em relação ao mundo exterior aquilo que predomina é o desprezo, a zombaria. O desprezo para com o parceiro odiado, para com aquilo que ele pensa e faz, mas também para com aqueles que o rodeiam. O desprezo é a arma do fraco; é uma carapaça contra os sentimentos indesejáveis. Por isso ele se esconde por detrás de uma máscara de ironia e escárnio.
Este desprezo e esta zombaria atacam particularmente as mulheres. No caso dos perversos sexuais, existe uma negação do sexo da mulher. Os perversos narcísicos, esses, negam a mulher, na sua totalidade, enquanto indivíduo. Eles sentem prazer em todo o tipo de zombaria que menospreze a mulher. Isso pode mesmo encorajar a complacência daqueles que assistem (...).
Para manter a cabeça fora de água, o perverso sente necessidade de derrotar o outro. Para tal ultiliza pequenos toques desestabilizadores, de preferência em público (...) conquistando, por vezes, aliados na assembleia. O que importa é embaraçar o outro. A hostilidade é percebida, mas fica-se na dúvida se não será uma brincadeira: o perverso parece apenas contrariar, mas na realidade ele ataca é os pontos fracos (...). Nestas agressões verbais, nesta troça, há também uma parte de jogo: é o prazer da polémica, o prazer de empurrar o outro a opor-se. O perverso narcisico, já o dissemos, ama a controvérsia. É capaz de defender um ponto de vista um dia e de defender o contrário no dia seguinte, apenas para fazer ressaltar a discussão ou, deliberadamente, para chocar. Se o parceiro não reagir o suficiente, ele encarregar-se-á de aumentar um pouco o tom da provocação (...).
O discurso do perverso narcisico encontra auditores que ele seduz e que se acabam tornando insensíveis à humilhação da vítima. Não é raro que o agressor solicite a esses outros para participar no seu trabalho de demolição.
(...) Onde o perverso narcisico se excede a si próprio é na arte de atirar as pessoas umas contra as outras, de provocar rivalidades, ciúmes. Isso pode ser feito através de insinuações, introduzindo dúvidas (...) revelando propósitos de uns acerca dos outros (...) ou através de mentiras, fomentando assim rivalidades.
O gozo supremo de um perverso é o de conseguir organizar a destruição de um indivíduo por um outro e de assistir a esse combate do qual os outros dois sairão enfraquecidos, o que reforçará, obviamente, o seu poder pessoal (...) Mas também pôr a circular rumores que, de um modo impalpável, acabarão machucando a vítima sem que esta possa descortinar a origem de tudo.
(...) Estamos agora ante uma lógica de abuso de poder através da qual o mais forte submete o mais fraco. A tomada do poder faz-se através da palavra. Dar a impressão de saber mais, de ser possuidor de uma verdade, d' "A"  verdade. O discurso do perverso é um discurso totalizante que enuncia proposições que até parecem ser universalmente verdadeiras. O perverso "sabe", ele tem razão, e tenta puxar o outro para o seu terreno levando-o a aceitar o seu discurso. Por exemplo, em vez de dizer: "Eu não gosto de Untel!", ele diz: "Untel é um parvalhão. Toda a gente sabe, e tu não podes pensar o contrário!". Seguidamente passa a uma generalização que tem por finalidade fazer deste discurso uma premissa universal, então o interlocutor diz para consigo: "Ele deve ter razão, até tem ar de saber daquilo que fala!" (...) Este discurso autosuficiente onde tudo é lançado precipitadamente não está longe do delírio interpretativo do paranóico. Um paranóico tem de encontrar um lado negativo em cada um, mesmo que esses motivos para a difamação sejam aleatórios, associados por vezes a uma qualquer possibilidade que o outro lhe oferece, mas o mais das vezes provocados por circunstâncias exteriores (...).
Resistir à dominação é expôr-se ao ódio. Nesta fase, o outro, que apenas existia como objecto útil, transforma-se num objecto perigoso do qual é preciso desembaraçar-se não importa por que meio. E eis que a estratégia perversa surge à luz do grande dia!
A fase do ódio aparece no grande dia porque a vítima reagiu, ousou recolocar-se enquanto sujeito e de recuperar um pouco de liberdade. Apesar de um contexto ambíguo ela resolve meter um limite. Um clique força-a a dizer: "Chega!" (...) No momento em que a vítima dá a impressão de lhe escapar, o agressor experimenta um sentimento de pânico e de fúria; ele rebenta.
Assim que a vítima decide expressar tudo o que sente, é preciso fazê-la calar. É uma fase de ódio em estado puro, extremamente violenta, feita de golpes baixos e de injúrias, de expressões que rebaixam, humilham e põem a ridículo tudo aquilo que é próprio do outro. E esta armadura de sarcasmo protege o perverso daquilo que ele mais teme, a comunicação.
(...) O ódio existia já durante a fase da sedução, mas estava mascarado pelo perverso, de modo a manter a relação. Tudo o que já existia de modo subterrâneo aparece agora à luz do dia e o trabalho de demolição torna-se sistemático.
Não se trata aqui de amor que se transformou em ódio como se tende a fazer crer, mas de inveja que virou ódio. Não é também essa alternância amor-ódio que Lacan chamava "odiamoração" pois, da parte do perverso jamais houve amor no sentido literal do termo. Talvez se possa, seguindo Maurice Hurni e Giovanna Stoll, falar de ódio de amor para descrever a relação perversa. Pois é, primeiro, sob o nome de amor sob uma máscara de desejo, mas não pela própria pessoa, mas por aquilo que ela tem a mais e que o perverso gostaria de se apropriar, seguidamente é um ódio escondido, ligado à frustração de não obter do outro tanto quanto desejaria. Quando o ódio então se exprime francamente, é ligado a um desejo de destruição, de aniquilação de outro. Mesmo com o tempo, o perverso jamais renunciará a este ódio (...) E, por um fenómeno de projecção, o ódio do agressor parece estar à altura daquele que ele imagina que a vítima sente por si. Ele vê-a como um monstro destruidor, violento, nefasto. (...) Este ódio, projectado sobre o outro, é para o perverso narcisico um modo de se proteger de perturbações muito mais graves, de registo psicótico.

  Marie-France Hirigoyen in " Le harcèlement moral, la violence perverse ao quotidien ",
Éditions La Découverte et Syros, Paris, 1998, pp 111 - 141.
.
Nota 1- Tradução minha.
Nota 2- Estas traduções, onde o rigor é sempre respeitado, têm, contudo, todos os defeitos das traduções em simultâneo, que não visam ser publicadas, mas apenas constar de um mero blogue-bloco de notas...
.