16/09/11

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Franz está seguro de que Jacinto vai endireitar os ombros e reerguer a cabeça. Irá, até, tornar-se num homem melhor e mais forte como a si próprio aconteceu - porque o sofrimento desfaz o egocentrismo redutor que existe em todos nós, e impulsiona a reinvenção de novos caminhos de vida. Talvez levemos demasiado tempo a perceber a mudança, a entender a nossa própria evolução, os novos desafios que a vida nos propõe. No seu caso pessoal, Franz Schonberg tinha somado alguns anos até aperceber-se do papel fulcral que a mãe desempenhara nesses dias sombrios da sua adolescência, pois tinha sido ela, com a sua lúcida e discreta inteligência, quem o acordara do torpor ( que agora lhe parecia sobretudo medo ), quem despertara o seu adormecido sentido do dever, quem lhe pedira o apoio de que precisava para continuarem ambos a cumprir a vida, por mais injusta que a vida tivesse sido, por mais enregelados e vazios que os tivesse deixado na ausência do pai. Mas era justamente em nome do pai e da sua total confiança neles dois, que teriam de continuar a viver com coragem e dignidade, como ele sempre fizera. Desafiando tradições e preconceitos, a mãe tinha reaberto a pequena loja e assumido, ela própria, as funções de alfarrabista, recusando o apoio do filho e exigindo-lhe o regresso ao liceu e ao estudo: "Cada um no seu lugar, a cumprir o seu dever, como o teu pai espera de nós dois."
Terá de partilhar com Jacinto essas memórias e lembrar-lhe que viver é a única maneira de honrar os mortos, sobretudo aqueles que mais se empenharam no nosso crescimento e na nossa formação. Só assim, vivendo e cumprindo cada dia, acabaremos por encontrar o que parecia impossível de alguma vez conseguir: a capacidade de cicatrização, a coragem de prosseguir caminho e por fim, até, as múltiplas alegrias que a vida sempre reserva a quem, apesar do sofrimento, as sabe identificar e recolher com gratidão.
Sai do consultório, no seu passo largo e tranquilo, Rua Carreira fora. Como quase todos os dias, detém-se por momentos no Bazar Alemão, em conversa com Miriam e Izaak Brusov, pergunta-lhes pelas crianças, pela saúde, pelo negócio, tornou-se uma rotina quase diária que cumpre por gosto mas, também, por uma espontânea solidariedade. Tem um grande apreço pela têmpera daquele casal que atravessou a Europa à procura de um lugar tranquilo para viver em paz, apenas para viver em paz e poder criar os seus filhos.
Incapaz de jantar ou de manter conversa de circuntância com quem quer que seja, Franz Schonberg decide não entrar no Café Kolb e vai acender o cachimbo, de que precisa com urgência, no pequeno miradouro sobranceiro à cidade e ao mar. O sol parece já muito baixo (...). Descobre-se, com algum espanto, confrontado não só com a sua própria e inesperada vulnerabilidade, mas também com a consciência de sentimentos e exigências que ainda não tinha sabido (ou ousado) reconhecer em si próprio.

Helena Marques in " O bazar alemão ", Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2010, pp 195 - 196.
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