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Recordo-me de um derradeiro presente de John. Foi no meu aniversário, 5 de Dezembro de 2003. Começara a nevar em Nova Iorque cerca das dez da manhã, à tarde já havia vinte centímetros de neve acumulada e esperava-se quase outro tanto. Lembro-me de que a neve tombara em avalanche do telhado de ardósia de Igreja Episcopal de São Tiago para a rua. O plano para nos encontrarmos com Quintana e Gerry no restaurante foi cancelado. Antes do jantar, John sentou-se junto da lareira na sala de estar e pôs-se a ler em voz alta para eu ouvir. O livro que estava a ler era um romance meu, A Book of Common Prayer, que por acaso ele tinha na sala porque estava a reler a fim de ver como é que algo resultava tecnicamente. A sequência que ele estava a ler em voz alta era uma em que Leonard, marido de Charlotte Douglas, visita a narradora, Grace Strasser-Mendana, e lhe dá a saber que o que está a acontecer no país que a família dela governa não vai acabar bem. A sequência é complicada ( era de facto a sequência que John tencionara reler para ver como é que funcionava tecnicamente), é interrompida por outra acção e exige que o leitor apanhe o subtexto do que Leornard Douglas e Grace Strasser-Mendana dizem um ao outro. "Caramba", disse-me John ao fechar o livro. "Não me voltes a dizer que não sabes escrever. O meu presente de aniversário é isto."
Recordo-me de que as lágrimas me vieram aos olhos.
Estou a senti-las agora.
Em retrospectiva, fora este o meu pressentimento, a minha mensagem, o nevão precoce, o presente de aniversário que ninguém mais poderia dar-me.
Restavam a John vinte e cinco noites de vida.
Joan Didion in " O Ano do Pensamento Mágico ", Gótica, Lisboa, 2006, pp 171 - 172.
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