12/01/12


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                   A  TRAPEZISTA  DA  RUA  DÊ

               (Breve conto imoral muito edificante)

 


De dentro dos seus 70 anos a trapezista era a figura mais controversa do circo. Com a sua cinturinha-tonel, as suas sapatilhas 46 e o seu tufo piloso sobre o malar direito em todos despertava um misto de fascínio e rancor. Laurinda marreca, a mulher que fazia de tartaruga nos espetáculos das quintas-feiras, ajeitando a bossa do peito, costumava dizer: "parece uma caneca que a minha tia-avó tinha... quando eu não queria comer, traziam o raio da caneca e eu não deixava nem uma massa." Os outros riam. Serafim loiro, o anão, era o único que se mantinha em silêncio: olhar gélido, apreensivo. Mas a velha trapezista lá ia: altiva e hierática atravessava a turbamulta, executava o seu augusto número e logo recolhia à roulotte encostada à vedação da rua Dê, uma das várias ruas do acampamento. " E não há quem lhe dê um sopapo?", vociferava a marreca, cheia de ódio; " Ó mulher, deixa a velha, coitadinha!", vinha em socorro a equilibrista, " não vês que ela não tem os alqueires bem medidos!"; " Sim, sim!", voltava a marreca, " Ela sabe é muito!" E lá ficava rosnando para dentro. O anão registava: olhar penetrante.
A trapezista, de facto, alimentava um sonho, o seu único sonho: ser dona do circo! Argemiro, o real proprietário, já lhe tinha feito a radiografia e deixara bem claro para si próprio: " Antes casar com a marreca ou com os repugnantes ademanes do palhaço rico com suas sedas e chifons, antes isso do que aquela mostrenga", e atirava com as portas, furioso. Vendo que dali não levava nada, a trapezista, que não era mulher para se dar por vencida assim sem mais nem menos, virou o periscópio para o ilusionista, o meio-irmão de Argemiro, mas também aqui - a infeliz - viu a sua estratégia gorada, sobretudo depois de ter assistido ao espectáculo do dia 13, quando o desastrado ilusionista baralhou as caixas e, após ter serrado uma mulher ao meio, o serrote e o chão ficaram ensopados de vermelho, enquanto Ildebranda, a arrumadora, brandamente levou sumiço. Só que a trapezista não parava de olhar para as alturas: queria para sempre aqueles lugares que tão episodicamente visitava. Argemiro, já farto da velha, e temendo que a traição assumisse proporções incontroláveis, propôs ao meio-irmão: " E se a pusessemos no número dos pinguins? Com aqueles pés 46 passava despercebida." Mas tudo se revelava impraticável, condenado ao fracasso, pois as piruetas da velha - qual mestra de equitação - acabavam sempre contornando vielas e cotovelos. E foi por esta altura que o anão loiro, há muito fazendo-lhe uma marcação cerrada, apanhou a estratégia macabra: sentado atrás dos montes de feno dos póneis, ouviu a trapezista conspirando. Ela queria um levantamento geral! " Aliás", ronronava ela com seu ar de falsete, " um golpe de estado num estado que é um circo, até parece coisa bem normal". Serafim teve um baque - finalmente! E dali confessou tudo à surda-muda da bilheteira, que sempre fora a sua mais atenta ouvinte e leal conselheira. A surda-muda, depois de lhe ler as maiores nos lábios, foi peremptória: " ÓÓÓ-MMMÁÁÁ  TÓÓÓ-CÁÁ ", o anão, feliz com a anuência, e ainda nesse dia, subiu (ele) ao ponto mais alto do circo, onde passou a noite escondido num dos refegos laterais da lona do teto e ali se deixou ficar, sem adormecer, esperando, esperando, esperando.
No dia seguinte, por coincidência dia de finados, já no fim da matiné, lá vinha a trapezista velha para a sua extraordinária exibição. Os seus pézinhos 46 eram música no lajedo: CHAP-CHAP-CHAP. Serena, oh, tão deliciosamente serena! CHAP-CHAP-CHAP! Reluzente passou por entre a ignorante assistência, tangenciou os ínfimos colegas, e foi também reluzente que subiu aos píncaros. " Agora só com uma mão!", berrava o altifalante. Voltas e reviravoltas, piruetas e negaças - tudo especialidade da casa! " Agora só com um pé!", voltava o altifalante à carga. E foi quando os tambores começaram a rufar para o ousado momento final, que o desastre aconteceu: " E agora, senhoras e senhores, pede-se o máximo silêncio, vamos assistir a um arriscado salto mortal de um trapézio para outro ainda mais acima!" A velha, confiante, sorriu, olhou sobranceiramente para baixo, ajeitou-se, voltou a olhar, voltou a sorrir e... iniciou o salto. E foi exactamente aqui que Serafim, o anão, saltou da enrugada lona, estendeu a mão com uma enorme tesoura cintilante e... ZÁS!... cortou as cordas do segundo trapézio. Terror geral. Ouviu-se da boca dos espectadores um enorme OHOHOHOH, da boca da surda-muda um perverso IHIHIH e um TCCHOP no fosso da orquestra, que até acordou o primeiro violino. O salto mortal da trapezista da rua Dê fora mesmo mortal! As lantejoulas do rasgado maiô choviam agora como copiosa neve de presépio, enquanto a cabeça, que se desatarraxara, assomava debaixo da poltrona P34 de primeira plateia. " Não olhem pra mim, não olhem pra mim, eu não estou metido nisto", cacarejava o timorato ilusionista. " Pobrezinha, tanto subiu, tanto subiu, que perdeu a cabeça!... Ficou foi agora aqui um grande cheiro a merda", afagou a marreca a bossa do peito. " Sempre foste muito invejosa!", respondeu-lhe a equilibrista. " Meus senhores, vamos mas é voltar ao trabalho!", ordenou Argemiro, pouco à-vontade. IHIHIHIH, insistiu a surda-muda que, sem os outros verem, e debaixo dos seus longos cabelos, recolocou nos ouvidos a sofisticada prótese auditiva.

            Victor  Oliveira  Mateus
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